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8 de outubro de 2025

Milei em queda: o colapso do ultraliberalismo argentino

O presidente argentino, Javier Milei, durante cerimônia na Bolsa de Valores de Buenos Aires - Foto Reuters de Mariana Nedelcu.

A suposta “vitória fiscal” de Milei é uma ilusão.

Da promessa libertária à ruína econômica

Há dois anos de sua diplomação como presidente da Argentina, Javier Milei enfrenta o esgotamento de um projeto que nasceu cercado de fanatismo e promessas de “refundação” do país. O presidente ultraliberal, que chegou ao poder sob o lema do motosserra, viu ruir o discurso de pureza ética e eficiência econômica que o transformara num fenômeno midiático.

A renúncia de José Luis Espert, seu principal candidato nas eleições legislativas de outubro, após denúncias de envolvimento com dinheiro do narcotráfico, selou um momento simbólico: o governo que prometia “varrer a velha política” acabou tragado por ela — e por escândalos de natureza ainda mais grave.

O episódio expõe a desordem moral, política e econômica de um governo que misturou ideologia de mercado com autoritarismo, arrogância e improviso. O colapso de Milei não se explica por sabotagens externas, mas por um erro conceitual profundo: acreditar que se pode gerir uma nação como se corta um orçamento — à força, sem diálogo e sem empatia social.

O escândalo Espert e a desmoralização do discurso anticorrupção

A saída de Espert, que era a principal aposta de Milei para garantir maioria legislativa na província de Buenos Aires, desmonta a narrativa moralista de que o “libertarismo” seria antídoto contra o clientelismo. As denúncias de que recebeu US$ 200 mil de um empresário investigado por tráfico de drogas — e a admissão do pagamento, sob o pretexto de consultoria — atingem diretamente a credibilidade do governo.

Milei, que construiu sua imagem sobre a “moral dos honestos”, reagiu com o mesmo expediente da velha política: aceitou a renúncia sem explicações e buscou culpados externos. O fato é que o presidente perdeu o controle sobre a agenda pública. A renúncia veio na esteira de derrotas no Congresso, que derrubou vetos presidenciais e restabeleceu verbas para universidades e hospitais pediátricos. O ultraliberalismo argentino começa a ruir. 

Um país asfixiado: o preço social do “motosserra”

O autoproclamado “choque de gestão” de Milei se converteu num choque de miséria. A inflação não cedeu como prometido, o desemprego cresce, e a pobreza alcança níveis comparáveis aos da crise de 2001. Nas ruas de Buenos Aires, famílias da classe média recorrem a filas de doações e bancos de alimentos.O corte drástico de subsídios, a privatização de setores estratégicos e o congelamento de investimentos públicos colapsaram a estrutura de serviços essenciais. O governo cortou verbas para alimentação escolar, reduziu aposentadorias e contingenciou recursos das universidades, enquanto preserva benefícios fiscais para o agronegócio exportador e grupos financeiros estrangeiros.

A retórica do “não há dinheiro” transformou-se em dogma cínico. Há dinheiro, sim — mas apenas para os rentistas e para sustentar uma política cambial voltada a agradar investidores. O Estado que Milei jurava extinguir tornou-se o fiador dos lucros privados.

O autoritarismo e o isolamento político

Incapaz de negociar, Milei governa por decretos. O Congresso o enfrenta, as províncias resistem, e as ruas se insurgem. O país vive um estado de conflito permanente. A repressão policial contra greves e manifestações estudantis tornou-se rotina. Professores, sindicalistas e aposentados são tratados como inimigos internos. O presidente que dizia defender a liberdade agora criminaliza a dissidência. A deterioração moral atinge também o entorno presidencial. Karina Milei, irmã e chefe de gabinete do presidente, é investigada por contratos irregulares. O discurso ético do governo foi substituído por uma lógica de poder familiar, opaca e centralizada.

O colapso econômico e o fracasso do experimento ultraliberal

A suposta “vitória fiscal” de Milei é uma ilusão contábil. O déficit foi reduzido à custa da recessão: a economia encolheu, a arrecadação caiu, e o consumo interno desabou. A redução de gastos virou instrumento de paralisia. A indústria argentina opera com capacidade ociosa, e a produção agrícola sofre com a retração da demanda interna. O ajuste, longe de estabilizar a moeda, expôs o país à vulnerabilidade externa. O Fundo Monetários Internacional (FMI) e os Estados Unidos, que inicialmente saudaram o “experimento corajoso”, agora alertam para o risco de colapso social.

 O FMI que elogiou Milei no início de 2024 por aplicar um ajuste “audacioso”, muda de tom e passa a alertar para riscos sociais e políticos devido à queda da renda e à explosão da pobreza (como constou em comunicados do FMI após a 8ª revisão do programa argentino em meados de 2025). Os EUA, que desde o primeiro momento apoiaram Milei como “aliado estratégico”, em discursos recentes do Departamento de Estado expressaram preocupação com a instabilidade social e o impacto das políticas de austeridade sobre a governabilidade.

A desorganização das cadeias produtivas, o desemprego e a perda de poder aquisitivo deterioraram o tecido social. A “refundação da pátria” se converteu num projeto de destruição do Estado e da cidadania.

Diplomacia de submissão e o isolamento da Argentina

Na arena internacional, Milei optou pelo servilismo ideológico. Hostilizou parceiros estratégicos como Brasil e China, afastou-se do Mercosul e atrelou-se a Donald Trump e à extrema direita global.

A situação se agravou quando, em plena crise social e com inflação acima de 200%, Milei aceitou de forma submissa o pacote de “ajuda” de 20 bilhões de dólares oferecido por Donald Trump — um acordo selado à margem da Assembleia Geral da ONU e visto por muitos analistas como um gesto eleitoral disfarçado de solidariedade. Na prática, o socorro financeiro, condicionado à compra de equipamentos militares e à abertura de setores estratégicos a empresas norte-americanas, simboliza a perda de soberania e o retorno da tutela de Washington sobre Buenos Aires. Trump, em busca de protagonismo internacional e de vitórias fáceis para sua campanha interna, encontrou em Milei o discípulo ideal: um governante disposto a entregar o país em troca de sobrevida política.

O resultado é o isolamento diplomático mais grave desde a redemocratização. Enquanto Lula projeta o Brasil como articulador de um novo multilateralismo, com diálogo no BRICS e liderança climática rumo à COP-30, a Argentina mergulha num solipsismo reacionário que a exclui dos grandes debates do século XXI.

As urnas se aproximam: o julgamento popular do fracasso

As eleições legislativas de outubro serão o primeiro veredito popular sobre o governo Milei. Os sinais são inequívocos: protestos crescentes, queda de aprovação, perda de aliados e denúncias de corrupção corroem as bases do poder. O libertarismo, apresentado como revolução moral, revelou-se um populismo financeiro sem rumo e sem compaixão. Milei prometeu libertar o mercado e acabou escravizando o povo argentino ao dogma do capital.

Sua eventual tentativa de reeleição encontrará um país devastado, exausto e descrente. Nenhum governo sobrevive quando confunde destruição com reforma, sofrimento com eficiência, e austeridade com virtude. A Argentina já pagou caro demais por essa ilusão.

Lula e Milei: dois caminhos, duas histórias

Enquanto Milei corta, Lula reconstrói. O contraste é brutal: o Brasil retoma o crescimento com redistribuição de renda, valorização do salário mínimo e expansão de políticas sociais. O Estado brasileiro volta a ser instrumento de inclusão e planejamento, não um inimigo da sociedade.

Na Argentina, a motosserra virou símbolo da ruína; no Brasil, o diálogo e a reconstrução consolidam um modelo de desenvolvimento social e soberano. A experiência argentina serve de advertência para todo o Sul Global: o ultraliberalismo não é alternativa, é abismo. Milei prometeu o futuro e entregou o passado — um passado de autoritarismo, fome e submissão.

A lição argentina

O governo Milei talvez entre para a história não como revolução libertária, mas como experimento fracassado de desumanização econômica. A renúncia de Espert, o colapso fiscal, a fuga de capitais e o desespero das ruas formam o retrato de um país que acreditou que bastava destruir para reconstruir.

Mas a sociedade argentina, orgulhosa e politizada, saberá reagir. Em outubro, começará a escrever o capítulo seguinte e talvez encerrar o pesadelo de um liberalismo sem alma e sem povo. 

Autora: Maria Luiza Falcão Silva - PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da UNB e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. Autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England.

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