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1 de outubro de 2025

Isto não é literatura!

  

Crédito Foto de um sebo – Tatiana Rute Pontes Lima do Arquivo pessoal.

Na literatura podemos compreender a prosa ficcional como instrumento de revelação e, ao mesmo tempo, de ação e de criação da realidade.

Que é a literatura? 

Desde Aristóteles, pelo menos, sabemos que definir algo é estabelecer seu gênero e aquilo que o diferencia, isto é, definir uma coisa significa, por um lado, dizer aquilo que essa coisa é, e, por outro lado, o que a diferencia das demais. Assim, definir significa estabelecer os limites daquilo que é e do que não é determinada coisa. Definir, portanto, equivale a determinar, estabelecer as fronteiras de algo. 

Se digo, “a arte é a expressão de algo de certa forma” – ou seja, a arte, nesse sentido, se caracteriza como um conteúdo (mensagem) e uma forma (suporte) – então, digo também que “tudo que não se ajustar a essa definição não é arte”. Nesse caso, entretanto, a definição é tão ampla e as fronteiras são tão vastas que poucos discordarão que se trata efetivamente de uma definição de arte. O problema aqui é de outra natureza, pois fundamentalmente essa definição é tão abrangente que acaba por não definir. Digamos, “toda modalidade expressiva envolve forma e conteúdo. Quanto maior o alcance da definição (extensão) menor será a sua precisão (compreensão). 

Um exemplo concreto pode ajudar a compreender melhor o problema. Se aplicarmos a fórmula anterior e defendermos, por acaso, que o romance Torto Arado, de Itamar Vieira Jr., não é literatura por supostamente negligenciar o caráter formal necessário à prosa, estaríamos afirmando que é possível escrever sem qualquer suporte formal? Evidentemente que não. Afirmar que Torto Arado não é literatura porque descuidaria do caráter formal exigido à prosa equivale, nesse contexto enunciativo, a dizer que a literatura requer uma intenção formal expressa na obra. A resposta a essa questão – se o referido romance é ou não arte (literatura) – exigiria a análise do caso particular e a sua adequação à definição de literatura. Perceba que recaímos na circularidade do argumento: a mera adequação a uma definição não atesta sua validade. Antes de demonstrar que determinada definição se aplica a alguma obra, é preciso, primeiro, averiguar se a definição, de fato, estabelece o que é a coisa em questão – no nosso caso, a literatura. É preciso responder: o que é a literatura? Por ora, convém esquivar-se dessa questão. 

O que é escrever? 

Repare, leitor possível, que este texto começa discutindo a possibilidade de estabelecer o que é uma definição; em seguida passa à definição de “arte” em geral, depois à de “literatura”, inadvertidamente à de “prosa” e, por fim, ao caso específico do romance Torto Arado, de Itamar Vieira Jr. Do mais geral ao mais específico, da maior extensão à maior compreensão. Isso se deve à necessidade de pensar a especificidade da linguagem de que falamos. Se se defende o engajamento da literatura, por exemplo, não se trata, evidentemente, de engajar do mesmo modo também as artes em geral. Da mesma forma, pode-se exigir o engajamento da literatura em prosa sem, com isso, confundi-la com a poesia. 

A prosa, em geral, compreende o gesto ostensivo de apontar para algo, em outras palavras, a escrita em prosa remete a alguma coisa que lhe é exterior. Todavia, como diria o filósofo francês Jean-Paul Sartre, “ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinado modo. E o estilo, decerto, é o que determina o valor da prosa”1. Trata-se da relação entre o significado (“o que se diz”) e o significante (“como se diz”). Ou ainda, ao gosto do pós-estruturalismo, é o jogo entre os significantes que produz o sentido (significado) do texto, afinal, o significado não é fixo e depende em larga medida da ação do leitor. Na literatura, a intenção formal parece, de fato, constituir um elemento necessário, assim, defender algo corresponde a defender algo de determinada forma. Ainda que se possa argumentar que toda forma de expressão sempre defende uma posição, e que a liberdade é um pressuposto necessário que acarreta a responsabilidade como seu correlato, ainda assim, não se pode perder de vista o caráter formal que compõe a literatura. Toda arte é engajada, mas é engajada à sua maneira. 

O que é, afinal, escrever? Podemos compreender a prosa ficcional como instrumento de revelação e, numa mesma feita, de ação e criação da realidade do real. Mas o que isso significa? 

Por um lado, a literatura é capaz de expressar instâncias da realidade que a abordagem meramente teórica não consegue. Como atesta Aristóteles, novamente, sabemos que a ficcionalização do real é uma forma de subjugar a experiência imediata à necessidade causal. Narrar é uma das maneiras de organizar a experiência e a própria vida, isto é, contar uma história consiste em organizar os acontecimentos de acordo com um princípio ordenador, com começo, meio e fim. O caráter contingente da existência atesta que as coisas são em si mesmas sem sentido. A pergunta pelo sentido das coisas exige, então, a mediação da consciência humana, ou seja, a razão demanda uma estrutura de racionalidade. A literatura nos ensina sobre o sentido do real. 

Por outro lado, também, é por via das variações imaginárias que a literatura expressa o caráter concreto da existência e projeta sentido sobre o absurdo da vida. Noutras palavras, ao projetar sentido sobre a experiência concreta, a ficcionalização contribui para criar aquilo que efabula. Na literatura, parafraseando Sartre, é preciso mentir para dizer a verdade2, isto é, a ficcionalização do real é a única maneira de acessar instâncias inauditas do real. É por intermédio da consciência imaginante, então, que projetamos significado sobre o movimento contingente da vida. Afinal, como insistia Antônio Cândido, não existe experiência humana ao longo da história sem e fabulação. Em suma, como diz Jacques Rancière, “toda vida se inventa ao se dizer”.3 

Por que escrever? 

Há o célebre caso da auto ficção, no qual a forma engaja a prosa nos interesses particulares daquele que escreve. De Annie Ernaux à Emmanuel Carrère, passando por célebres influenciadores, a forma ficcional expressa o engajamento do escritor, mas em alguns casos, esse engajamento é a manifestação da conformidade do autor com seus condicionamentos históricos. Entretanto, existe também aqui a intenção formal e o engajamento do escritor, mesmo que essa intenção formal se apresente na forma de um realismo ingênuo e subjetivista e esse engajamento se expresse como manutenção da ordem estabelecida. 

Douglas Barros, no artigo Eu, eu mesmo e mais eu: a crise da ficção literária é a crise da imaginação, advoga que a atual crise da literatura não é propriamente da literatura em si, mas da ficção enquanto forma estética capaz de transcender a realidade imediata. Argumenta que o romance clássico, que unia imaginação e crítica social, perdeu espaço na modernidade tardia, assim a auto ficção, dominante hoje, está presa ao “eu”, à imanência do real e às exigências do mercado, funcionando mais como produto do neoliberalismo do que como criação artística transformadora. Esse movimento reflete uma crise da imaginação coletiva, já que a ficção cedeu lugar à personalização, à exposição da vida privada e à lógica do mercado. No fundo, a crise da ficção literária expressa a incapacidade de imaginar alternativas para além do mundo moldado pelo capitalismo neoliberal e pelos algoritmos. 

Não existe uma finalidade inexorável inscrita num céu metafísico que exija que o processo histórico se realize na forma da Justiça. Um compromisso histórico é apenas uma aposta, de tal modo que é absolutamente possível que autores engajem sua literatura no projeto pessoal de ganhar um Nobel. Afinal, “Nobel é sucesso, sucesso é venda”. Sabemos, não é de hoje, que no neoliberalismo a existência é valorada a partir da lógica de mercado. 

Para quem escrevemos? 

Se estamos perdendo a capacidade de realizar tarefas que exijam algum esforço, e se a realidade guiada pela lógica do algoritmo nos induz à satisfação imediata (Brain rot ?!), então, o esforço que o exercício formal requer tornou-se um obstáculo aos leitores médios. É preciso não ter medo de dizer as coisas claramente, se o público leitor nada mais é que um nicho de mercado, posto que existe um mercado literário, a definição de literatura passa por seus consumidores. Os escritores, por sua vez, produzem para serem consumidos e o mercado editorial também define o que é literatura. O crítico – se é que ainda existe essa pretensa “eminência parda” (éminence grise) – deve fomentar a pergunta fundamental sobre o que é a literatura e, com isso, promover o novo cânone literário, assim, a definição de literatura também passa pela crítica. O autor, por fim, só pode esperar pelos prêmios e pelas listas dos mais vendidos, sem se furtar, evidentemente, da definição de literatura. A função social da literatura nos nossos dias é muito mais a manutenção da ordem estabelecida do que a transformação da sociedade, mesmo no caso das criações originais e engajadas nos temas emergentes, pois escrevemos para um público previamente estabelecido e domesticado. 

Não nascemos prontos, nos humanizamos mediados pelas produções culturais e pela história, isto é, os seres humanos se humanizam mediatizados pela cultura, e, nesse registro, a arte ocupa um lugar privilegiado. Somos produto da história, mesmo que não deixemos de ser seus produtores. No entanto, é preciso lembrar mais uma vez que não há nada inscrito num céu inteligível que garanta que os escritores devam buscar a glória ou a transformação da sociedade. Escreve-se para um publico que, embora necessite da efabulação, não quer imaginar um outro mundo possível. 

Situação do escritor contemporâneo 

Como defende o professor Jorge Coli, arte é aquilo que acreditamos que é arte. Coli argumenta que a cultura, por meio de instituições e discursos de especialistas, influencia o que é considerado arte, e o valor de uma obra está ligado à nossa capacidade de interagir com ela. O conceito de arte não é universal, mas dependente do contexto histórico e social, e a experiência artística é um ato de interpretação que ultrapassa a definição puramente formal. Assim, não haveria uma definição fixa de arte, mas um convite à reflexão sobre como a arte é percebida e construída, o valor e a identidade de uma obra estariam ligados à cultura e à experiência que o público tem com ela, e não apenas à sua forma ou técnica. 

Sartre, mais uma vez, faz uma defesa incisiva da literatura contemporânea, pois compreende que a arte literária é algo vivo, em contínua transformação, por estar inserida na história. Dessa forma, não se pode capturar o sentido da literatura em uma definição rígida; nesse registro, é impossível traçar fronteiras precisas entre o que é e o que não é literatura. Logo, seria inviável estabelecer o gênero e a diferença específica que determinariam sua definição. Será literatura aquilo que as pessoas envolvidas com a prática literária reconhecem como tal; a questão, apenas, é saber se se trata de boa ou má literatura. Será literatura aquilo que é criado em determinado contexto histórico e para esse contexto específico. A pergunta sobre a definição da arte deve permanecer em aberto, como questão. Percebemos não apenas que a questão está aberta, mas talvez que, para fazer justiça à complexidade da relação, ela deva permanecer assim. Como se sabe, em filosofia, a solução de um problema muitas vezes equivale apenas a truncar a potencialidade reflexiva de uma questão, ou daquilo que deveria permanecer como questão. 

Ainda sobre a impossibilidade de determinar o que é literatura, Sartre tem uma fórmula instigante, diz o filósofo, análogo à moral a arte inventa suas próprias regras. A moral é como uma obra de arte, a arte é como a moral, não há valores eternos. Está inscrita aqui sua corrosiva crítica à metafísica clássica e a imobilidade das formas, na literatura contemporânea Sartre vislumbra a “superioridade que os cães vivos têm sobre os leões mortos”4. Assim, o filósofo conclama os autores contemporâneos: passem mensagens, pois “a mensagem é a alma feita objeto”5. Ainda que o valor da prosa ficcional dependa da sua forma de apresentação. 

No final das contas, trata-se de resistir a tentação de tomar a coisa para si, de dizer o que ela é e o que ela não é. Por um lado, porque isso dá poder, por outro, porque aqueles que são herdeiros do cânone literário, são também herdeiros dessa estrutura de poder. Em larga medida, é isso que caracteriza uma definição: uma disputa por poder.  

Autor: Thiago Rodrigues é doutor e mestre em filosofia pela Unifesp. É professor e coordenador no Centro Universitário Assunção. Autor dos livros Fenomenologia crítica, filosofia e literatura: uma incursão nos primeiros textos de Sartre (2014), A Necessidade do Ensaio: o ensaio como experiência filosófica (2023) e Algo sobre como criar pássaros: imaginação, imaginário e realidade humana em J. P. Sartre (2024).  Publicado no Site Le Monde Diplomatique Brasil.

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