Bolsonarismo não é só uma preferência eleitoral: é uma máquina de distorcer realidade. Nasceu do amálgama entre moralismo seletivo, punitivismo de ocasião e um populismo que grita “ordem” enquanto sabota a lei. Em 2025, a coreografia ficou explícita: a Câmara acelerou a urgência do PL da Anistia para os condenados e investigados do 8 de janeiro — o maior ataque institucional desde 1964 — abrindo caminho para limpar a ficha de quem tentou incendiar a República. Ao mesmo tempo, a pauta que aliviaria o bolso do trabalhador — isenção de IR até R$ 5 mil — virou novela: o governo enviou o projeto, o Senado (CAE) aprovou e remeteu à Câmara, mas a tramitação anda a passo de tartaruga enquanto a energia política se gasta em blindagens corporativas.
No front judicial, a narrativa do “nada aconteceu” ruiu. A PGR denunciou o núcleo golpista e descreveu, em linguagem nada ambígua, a trama para romper o Estado de Direito, com Jair Bolsonaro no centro da articulação — o enredo do decreto para intervir no processo eleitoral e da mobilização para deslegitimar o resultado vai muito além de bravata de palanque. Não bastasse, Eduardo Bolsonaro virou alvo de inquérito no STF por coação no curso do processo e tentativa de obstrução, após peregrinar nos EUA pela aplicação de sanções do tipo Lei Magnitsky contra ministros do Supremo — exportação de conflito institucional travestida de “patriotismo”.
E é aqui que entra Bauru — não como exceção, mas como sintoma. Enquanto o país enfrenta a anatomia de um projeto autoritário, parte da imprensa local faz de conta que não é com ela. Rádios que já foram sinônimo de serviço público preferem a curadoria da conveniência: editorializam a favor de “anistias camaradas”, relativizam a tentativa de golpe, e deixam para “depois” o debate que interessa ao assalariado — como a faixa de IR até R$ 5 mil. A pauta urgente vira irrelevante; e o irrelevante, manchete. Aí está o truque: esvaziar o fato, inflar o enredo. Enquanto isso, quem pagou imposto o ano inteiro continua pagando — e quem atacou a democracia ganha prioridade de agenda.
Em Bauru, a história se repete em escala local, com o beneplácito de microfones outrora altivos. A Auri-Verde, conduzida por Alexandre Pittoli, e a 96 FM, com o economista Reinaldo Cafeo à frente do programa Cidade 360°, tornaram-se ilustrações perfeitas desse fenômeno: seletividade editorial como método e conformismo como linha de conduta.
De Pittoli, esperava-se a tradição da rádio que já foi referência em agilidade informativa. O que se ouve, contudo, é a reprodução acrítica de pautas convenientes à direita nacional, a priorização de agendas bolsonaristas travestidas de “voz da cidade” e um noticiário onde a apuração cede espaço à militância disfarçada de prestação de serviço. É a reinvenção do papel da imprensa: de mediadora crítica a porta-voz de bolha ideológica.
a 96 FM, o cenário é mais sofisticado — e, por isso, mais grave. O programa Cidade 360°, apresentado como “plural” e “abrangente”, torna-se exemplo didático da apropriação seletiva do jornalismo. Ali, o economista Reinaldo Cafeo exerce uma função curiosa: analista econômico para a plateia conservadora, mas incapaz de dedicar a mesma energia crítica à Avenida Faria Lima, onde o PCC lavou bilhões, ou a políticos que aparecem sorridentes em fotos com suspeitos de vínculos criminosos. Café frio, servido em doses de catastrofismo seletivo: rigor para criticar governos progressistas, silêncio cúmplice quando os holofotes deveriam incomodar aliados de ocasião.
Assim como o bolsonarismo nacional recorta a imprensa para sustentar seu ethos negacionista, em Bauru a imprensa radiofônica pratica a mesma alquimia: destaca manchetes convenientes, ignora fatos incômodos e oferece respostas simplificadas à complexidade do real. A estratégia é idêntica: apropriar-se da credibilidade histórica da imprensa local — construída em décadas de serviço público — para transformá-la em insumo discursivo a serviço de um grupo político.
O resultado? O mesmo observado em escala nacional: a conversão sistemática de responsabilidades. Onde há desmonte institucional, culpa-se a esquerda. Onde há captura econômica por facções criminosas, a pauta desaparece. Onde há alianças espúrias, a notícia perde fôlego. Não se trata de informar: trata-se de reinterpretar, de domesticar a realidade para caber no estreito repertório de uma bolha que se desfaz, mas que ainda dita o tom dos microfones.
Se o jornalismo existe para confrontar poder, em Bauru há microfones que desaprenderam a fazer perguntas difíceis. É por isso que este texto existe: para lembrar que não há neutralidade possível entre a ordem constitucional e a anistia do golpismo; entre aliviar a vida de quem ganha até R$ 5 mil e aliviar a barra de quem tentou rasgar a Constituição. O resto é ruído — ou, como diria o próprio bolsonarismo, “narrativa”.
Autor: Fernando Redondo – Publicado na página do Facebook do autor.

Nenhum comentário:
Postar um comentário