É
fato confessado pelo ex-chefe supremo das Forças Aramadas general Villas
Bôas que o Alto Comando em 2018 deu um golpe na democracia brasileira, ferindo
o inciso 45 do artigo 5º da Constituição que diz: "constitui crime
inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares,
contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.
O
sentido era pressionando o STF para manter-se distante utilizar o juiz Sérgio
Moro (exímio na aplicação do law fare) para alijar Lula do pleito presidencial,
condenando-o por qualquer crime que fosse “por crime indeterminado” e pô-lo na
prisão onde ficou por mais de 500 dias. Desta forma, abrir-se-ia o caminho para
eleição ex-capitão compulsoriamente reformado por mau comportamento, Jair
Bolsonaro. O que de fato ocorreu.
Conhecemos
a bíblica “desolação da tribulação” que sobreveio ao nosso país com o
presidente eleito. Ocupou militarmente o Estado com 11 mil militares em
distintas funções de comando ou de administração. Não soube guardar a dignidade
que o mais alto cargo da nação exige e entregou-se a difamações, mentiras
diretas, aos fake news, ao uso vergonhoso de palavrões com soberano desprezo da
imprensa.
Mente
assassina, preferiu incentivar a compra de mais armas por civis do que elaborar
um plano de enfrentamento da covid-19 que já fez mais de 220 mil vítimas e nos
aproximando de 10 milhões de infectados. Na avaliação mundial, o Brasil ficou
em último lugar nas políticas sanitárias contra o covid-19 e na aplicação da
vacinação à população.
A
nossa democracia que historicamente sempre foi de baixa intensidade, agora, sob
Bolsonaro e comparsas, foi estraçalhada nem chegando a ser de baixíssima
intensidade. Ela virou uma farsa e suas principais instituições um disfarce de
legalidade, por mais que se diga que “as instituições funcionam”. Cabe
perguntar a quem?
Não
à política sanitária mínima, não à justiça necessária aos milhões de
desempregados, aos indígenas e quilombolas, não ao cuidado da natureza em
devastação, não em defesa contra ameaças diretas ao STF nem contra um propósito
declarado de golpe militar. Sob o disfarce da legalidade se blindam notórios
corruptos, concede-se facilmente habeas corpus a políticos indiciados por
ilegalidades e até por crimes e permanecem impunes as centenas de feminicídios
e ofensas e até assassinatos dos LGBTI.
Vou
me permitir usar as palavras de dois sociólogos porque encontrei neles as
melhores expressões que expressam o que sinto e penso acerca de nossa presumida
democracia: Thiago Antônio de Oliveira Sá, sociólogo e professor universitário
(cf. O sequestro das instituições brasileiras, em Carta Maior de 14/02/2021) e
de Pedro Demo, colega de estudos no Brasil e na Alemanha, professor na
Universidade de Brasília, uma das inteligências mais brilhantes que conheço com
vasta obra de pesquisa científica. Delas sirvo-me apenas de tópicos
significativos do livro Introdução à Sociologia: Complexidade, Interdisciplinaridade
e Desigualdade Social, Editora Atlas, São Paulo 2002 pp, 329-333) onda
diretamente aborda o tema da democracia no Brasil.
Começo
com Oliveira Sá no referido artigo em Carta Maior: O público é um anexo do
privado. A perícia cede lugar à malícia. A corrosão institucional se visualiza
facilmente: obscurantistas e mal educados como ministros da Educação; um
ecocida que passa sua boiada sobre o meio ambiente; uma ruralista à frente da
agricultura nos envenena com seus mais de 500 agrotóxicos legalizados; uma
evangélica fundamentalista cuida das mulheres e demais minorias com seu
machismo e sua obsessão com a sexualidade alheia.
Não
nos esqueçamos do primeiro ministro da Saúde, lobista dos planos privados, a
estender sua mão visível sobre o SUS. Um emissário do mercado financeiro dirige
o ministério da economia. Um maluco, pária orgulhoso e antiglobalista (seja lá
o que isso for), faz do Brasil vexame internacional nas relações exteriores. Um
racista à frente da Fundação Palmares. Polícia Federal convertida em
guarda-costas particular da presidência e de seus filhos.
A
Procuradoria-Geral da República a livrar a cara do empreendedor das
rachadinhas. Um militar na Saúde dispensa maiores explicações.... juízes que
têm lado, vejam-se os novos vazamentos das tramoias nada republicanas de Moro, Dallagnol
e seus comparsas. Absurdo, mas não surpreendente: a velha conversão das instâncias
judiciais em arma de grupos dominantes. Para perseguição de adversários, para
inviabilizar suas candidaturas em favor de outros.
Não
perde em contundência Pedro Demo. O que escreveu em 2002 vale muito mais para
2021: Nossa
democracia é encenação nacional de hipocrisia refinada, repleta de leis
“bonitas”, mas feita sempre, em última instância, pela elite dominante para que
sirva a ela do começo até o fim. Nossa democracia espelha, cruamente, a ‘luta
pelo poder’ no sentido mais maquiavélico da luta por privilégios.
Político
sem privilégios é figura espúria em nosso cenário – desde logo é gente que se
caracteriza por ganhar bem, trabalhar pouco (comentário meu: vide o ex-deputado
Jair Bolsonaro por sucessivos mandatos), fazer negociatas, empregar parentes e
apaniguados, enriquecer-se à custa dos cofres públicos, entrar no mercado por
cima.
Mas
há exceções que confirmam a regra... A própria Constituição de 1988 não abriga
propriamente projeto nacional coletivo, afinado sob a batuta da justiça e da
equalização de oportunidades, mas proposta corporativista retalhada por meio da
pressão particularizada: os magistrados fizeram o seu capítulo, bem como
a polícia, as universidades, o legislativo, o judiciário, o Executivo e a
iniciativa privada.
É
a tão decantada por Ulysses Guimarães de “Constituição Cidadã”, mas que detém
concepção corporativista extrema, muito distante dos interesses das maiorias...
Fazem-se muitas propostas, mas sem qualquer ligação com embasamento financeiro
e institucional...N o final fizemos outra vez imitação barata do welfare state.
Mas
há coisas boas como a lei de responsabilidade fiscal para evitar que se gaste o
que não se arrecada. O Legislativo longe de defender ideias, propostas,
equidade, defende verbas, fatias de poder, privilégios exclusivos. É o lugar
principal da negociata, do toma la dá cá... Não é, pois, difícil de mostrar que
nossa democracia é apenas formal, farsante, que convive solenemente com a
miséria das grandes maiorias. Se ligássemos democracia com justiça social,
nossa democracia seria sua própria negação.
Não
se nota na classe política dominante em geral qualquer gesto dirigido a
superar mazelas históricas plantadas em privilégios absurdos para poucos.
Nossa pobre política lancinante se traduz na miséria de nossa democracia. Por
isso é tão importante manter a ignorância política das massas” (333).
A
realidade política sob Bolsonaro é muito pior do que a desenhada acima. Visa
reconduzir o país à fase pré-iluminista, da universalização do saber, dos
direitos e da democracia na direção regressiva a tempos obscuros do pior da
Idade Média tardia, não da Idade Média áurea com suas imensas catedrais, com a
criação de universidades, com suas sumas teológicas, com seus sábios, místicos
e santos. Tudo o que foi criado nos governos Lula-Dilma que tivesse sabor
popular ou inserção dos empobrecidos na sociedade foi literalmente desmontado
de forma criminosa pois implicou sofrimento aos que já sempre sofreram
historicamente.
Causa-nos
espanto e indignação ao constatar que aquelas autoridades judiciais e políticas
que poderiam mover ações juridicamente fundadas contra a irresponsabilidade
jurídica e crimes sociais comuns do presidente não se movam, seja por se
sentirem cúmplices, seja por ausência de espírito patriótico e mesmo fartos de
sentido de justiça social.
Como
vivem a quilômetros luz do drama do povo e veem seus direitos adquiridos e
privilégios garantidos não os move a nobre compaixão para usar os instrumentos
jurídicos de que dispõem para livrar a nação daquele que a está destruindo e
segue mais aferrado ainda nesse mesmo intento perverso.
Razão
tem o Papa Francisco ao falar várias vezes aos movimentos sociais mundiais,
aqueles que querem outro mundo porque este lhes é um inferno ou um purgatório.
"Não
esperem nada de cima, pois vem sempre mais do mesmo ou pior. Comecem por vocês
mesmos, vale dizer, as multidões devem ocupar ruas e praças e botar para
correr aqueles que lhes sequestram as oportunidades de serem gente e de
sentirem-se com um mínimo de dignidade e de alegria de viver. Esperamos que
isso aconteça. Só depois que se sentirem ameaçados, os dominantes aderem. Se
não cuidarmos se apropriam da energia emergente para seus próprios fins
privados. Mas aquilo que deve ser tem força: o afastamento de quem conduz uma
política necrófila e inimiga do próprio país. Diante da obscuridade do
horizonte e, a muito custo, mantendo a esperança contra a esperança, faço
minhas as palavras do Mestre, também tomado de profundo pesar: tristis est
anima mea usque ad mortem”.
Autor:
Leonardo Boff - Doutor em Teologia e Filosofia pela Universidade de Munique,
nasceu em 1938. Foi um dos formuladores da “teologia da libertação”. Autor do
livro Igreja: carisma e poder, de 1984, que sofreu um processo judicial no
ex-Santo Oficio, em Roma, sob o cardeal Ratzinger. Participou da redação da
Carta da Terra e é autor de mais de 80 livros nas várias áreas das ciências
humanísticas.