O que a
que a mídia chama de “mercado”, que jornalistas tratam como entidade mítica, na
verdade é um clube de operadores.
Peça 1 –
o que é o tal mercado
Nem se
fale do ridículo do tal mercado fazer subir o dólar e a Bolsa e o movimento
refluir no dia seguinte. Foi um vexame maior do que os bloqueadores de
estradas.
Mas é
interessante entender esse jogo de forças. O que a
que a mídia chama de “mercado”, que os jornalistas tratam como entidade mítica,
impessoal, na verdade trata-se de um clube de operadores – aquelas pessoas que
dão ordens de compra e venda para dinheiro de terceiros. São tão assalariados
quanto os jornalistas que se dizem íntimos, com alguns benefícios adicionais,
como prêmios por resultados. Mas dão
status aos jornalistas, que recolhem qualquer afirmação do operador e atribuem,
de boca cheia, a “fontes do mercado”.
Na
ditadura, havia jornalistas com acesso a Golbery dos Couto e Silva e Heitor de
Aquino. Quem não tinha acesso recorria ao Sargento Quintão – um ajudante de
ordens de Golbery – e atribuía as declarações, muitas delas estapafúrdias, a
“fontes do Palácio”. É a versão preliminar das “fontes do mercado” mencionadas
por repórteres.
Entre os
operadores, há um primeiro time mais esperto que atua de forma cartelizada.
Isto é, combinam, entre eles, movimentos de venda ou de compra de contratos de
juros e câmbio. A intenção é faturar em cima dos trouxas, a rapa que não
pertence ao clube e que são guiadas pela parceria com a imprensa.
Conseguem
movimentos, mas de curto prazo.
Por
exemplo, criam um acordo tácito de que se se falar no nome de Henrique
Meirelles para Ministro da Fazenda é hora de comprar – “comprando”, a Bolsa e
os contratos futuros de juros sobem. Se for Fernando Haddad, é hora de vender.
Se sair a reforma da Previdência é para comprar; se não sair é para vender.
Não lhes
peça nenhuma análise sobre causas e consequências das medidas. O movimento
macro é do pensamento único: se cortar despesas, compre; se aumentar os gastos,
venda. São profundos e analíticos como um filho temporão do Sardenberg com a
Cantanhede.
Mas são
esses movimentos que permitem bicar ganhos em cima da plebe ignara.
Peça 2 –
o efeito manada e as grandes tacadas
O ponto
central do jogo especulativo é o efeito manada da saída e entrada de dólares –
que era frequente antes de Lula acumular US$ 350 bilhões em reservas.
Era
simples.
O livre
fluxo de capitais faz com que os capitais internacionais tenham o mundo como
mercado. Se um país aumenta as taxas de juros, se um ativo (como petróleo,
trigo ou outra commodities) tem aumento de demanda, os capitais caminham nessa
direção. Esse movimento de onda provoca uma bolha no ativo até o momento em que
se percebe que atingiu o pico. Aí os capitais começam a sair em desabalada
carreira: quem fica por último morre com o mico (lembrando o jogo de baralho).
Por aqui,
desde o governo FHC repetiu-se esse movimento à exaustão no mercado de câmbio.
O dólar ia entrando. À medida em que entrava, o aumento da oferta diminuía seu
valor em relação ao real. Com esse movimento, as exportações ficavam mais caras
e as importações mais baratas. Criava-se um déficit crescente na balança
comercial que estimulava um efeito-manada de fuga de dólares. Sabia-se, a
qualquer momento, o déficit provocaria uma maxidesvalorização da moeda. Os
especuladores tinham que sair então enquanto a real estava forte, para voltar
quando o real se desvalorizasse.
Com a
desvalorização do real, havia um choque na inflação, obrigando o Banco Central
a aumentar as taxas de juros. Aí os
dólares voltavam para ganhar com os juros, e com a nova rodada de apreciação
cambial, e com o risco reduzido, já que a maxi ajudava a reequilibrar a balança
comercial. Com o
dólar a R$ 6,00, as taxas de juros internas a 12,5% e as internacionais em 1%,
o investidor toma US$ 1.000,00 de empréstimo, entra no Brasil e adquire R$
6.000,00.
Um ano
depois, com as taxas de juros internas, seu capital saltou para R$ 6.750,00.
Com os juros internacionais a 1%, sua dívida será de US$ 1.010,00. Aí começa
o movimento de entrada de dólares, provocando um aumento do seu valor: em vez
de um dólar valer R$ 6,00, passa a valer apenas R$ 4,00. Com os
R$.6.750,00 acumulados, e com o dólar a R$ 4,00, o investidor recompra os
dólares e sai com US$ 1.687,50 – ou seja, 68,75% a mais do que entrou. Como sua
dívida é de apenas US$ 1.010,00, ele quita a dívida e fica com um ganho de US$
677,50 sem ter investido um tostão de recursos próprios na operação: apenas
fazendo arbitragem entre taxas.
Com os
capitais externos fugindo do país, a bomba cambial explodia e o governo era
obrigado a fazer uma maxidesvalorização cambial para acertar os déficits nas
contas externas. O dólar voltava aos R$ 6,00. A desvalorização provocava
inflação, obrigando o Banco Central a aumentar novamente os juros. E resolvia o
déficit externo, reduzindo os riscos cambiais até a próxima rodada.
Essa
mamata persistiu do governo FHC até metade do governo Lula, quando o país criou
um colchão de reservas cambiais acabando com esse jogo. Aí restou
o varejo do câmbio, jogo do qual a cobertura financeira tem papel essencial.
Peça 3 –
a especulação e os gatilhos cambiais
O varejo
da especulação com juros e câmbio é facilmente identificável. Criou-se um
gatilho em torno do equilíbrio fiscal. Há uma lógica torta por trás disso.
Imagina-se que, sem equilíbrio fiscal, o país não teria condições de honrar a
dívida pública. Repare
que nenhuma crise brasileira decorreu da dívida pública, mas sim das contas
externas. E país que tem o volume de reservas e o saldo comercial do país, não
corre mais o risco das crises sistêmicas que atrapalharam o crescimento desde
os anos 50.
Portanto,
a questão do suposto equilíbrio fiscal serve apenas de gatilho para movimentos
especulativos visando pegar os desavisados – ou pressionar o governo para não
tirar os privilégios do mercado.O ponto
central de poder dos tais operadores é a capacidade de criar pequenos
efeito-manada com o dólar.
Se o
dólar começa a subir de forma consistente, pressiona a inflação e o Banco
Central se vê obrigado a aumentar os juros. Aumentando os juros os dólares
retornam e o câmbio volta a ceder. Se o dólar fica valorizado por muito tempo,
há influência na inflação, nos preços dos comercializáveis (produtos importados
e exportados).
Portanto,
o ponto central do desequilíbrio é o livre fluxo dos dólares, a capacidade de
entrar e sair a qualquer momento. Em um ponto qualquer do futuro, haverá
condições políticas para impedir esse entra-e-sai dos dólares.
Em todo
caso, os fatores que interferem nesse movimento são muito maiores do que a
concatenação do clube dos malandros. Envolve fluxo internacional de capitais,
taxa de juros dos bancos centrais – especialmente o FED – indicadores de
comércio internacional, de PIB global etc. O que o tal de mercado consegue
fazer são marolas, que a cumplicidade ignorante da mídia transforma, às vezes,
em ondas mais fortes.
Obviamente
episódios como o “orçamento secreto” e que tais não entram no jogo. Nem as
gambiarras de Paulo Guedes para montar a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias)
de 2022.
O mercado
se move para manter as políticas que garantem o jogo especulativo.
Peça 4 –
O déficit público
Aí entram
as superstições sobre o déficit público. Segundo o
tal do mercado, o equilíbrio das contas públicas é essencial para atrair
investimentos. Há duas
formas de equilibrar as contas públicas: através do aumento da receita, ou
corte nas despesas. Quando a economia está fraca, corte nas despesas implica em
mais queda da economia e, consequentemente, na arrecadação fiscal, além de
impactos no mercado de consumo.
Em 2015,
após o desastroso pacote Joaquim Levy houve o golpe jurídico-parlamentar que
colocou Michel Temer no poder. Em geral, após uma queda acentuada de PIB, a
recuperação costuma ser rápida. Temer deu prosseguimento à pior ortodoxia
econômica, reduzindo direitos trabalhistas, privatizando de forma escandalosa,
criando a inominável Lei do Teto e reduzindo os gastos públicos. Fez tudo
o que o mercado queria. E o que aconteceu? Multinacionais saindo do país devido
ao desmonte do mercado de consumo. Como assim? Fez tudo o que o mercado pediu e
as empresas se mandaram?
Aí se
entra no busílis da questão, que nunca é abordado pela cobertura financeira da
mídia. Há dois tipos de capitais: o de curto e o de longo prazo. O
primeiro entra para beliscar ganhos, fazer arbitragem de taxas de juros,
adquirir empresas em dificuldades e passá-las para frente. É capital gafanhoto,
que não traz riqueza, empresa ou desenvolvimento. O segundo
é o capital de longo prazo, que entra apostando no país, trazendo indústrias,
criando empregos e aumentando a receita fiscal. Para o segundo grupo, é
essencial uma economia em crescimento e um mercado de consumo robusto.
Em
relação ao câmbio, há uma diferença fundamental entre eles. O primeiro – o de
curto prazo – adora a volatilidade cambial, porque permite ganhos de
arbitragem. O segundo – o de longo prazo – abomina a volatilidade, porque
impede a real análise financeira do negócio e do mercado. Em
relação aos gastos públicos, o primeiro abomina os investimentos em
infraestrutura, porque não lhes permite ganhos de curto prazo. Mas adora uma
privatização em cima de empresas já consolidadas, como as refinarias da
Petrobras. O segundo
sabe que o aumento dos gastos públicos amplia a economia e o mercado, abrindo
possibilidade de negócios saudáveis para diversos setores. Sabe que uma
economia exangue não atrai capital privado – a não ser o capital gafanhoto para
ganhos especulativos.
Por isso,
quando o repórter menciona fontes de mercado para dizer que tal medida vai
espantar o capital estrangeiro, ele está se referindo exclusivamente ao capital
especulativo, de curto prazo.
Peça 5 –
o terceiros governo Lula
Sabe-se
da preferência de Lula por Fernando Haddad para Ministro da Fazenda.
Para
limpar de vez as políticas macroeconômicas, para que se tornem efetivamente
agentes de promoção do desenvolvimento, Haddad terá que desmanchar as seguintes
armadilhas:
O livre
fluxo de capitais, principal responsável pelos soluços da inflação e pelas
marolas do mercado. A
política de metas inflacionárias, que faz com que o BC sempre defina uma taxa
de juros alguns pontos acima da inflação esperada. As
operações compromissadas, pelas quais o BC remunera os bancos até pelo dinheiro
parado nas contas. O próprio
modelo de enxugamento da liquidez, feito com títulos públicos, tornando a
dívida pública brasileira uma hemorragia permanente de recursos públicos.
Haddad é
suficientemente preparado para conduzir uma política gradativa, racional, e com
capacidade suficiente para defender publicamente as medidas. O desafio consiste
na extrema mediocridade dos canais que influenciam a opinião pública: a mídia,
cada vez mais refém do tal do mercado. Espera-se
que esse bloqueio seja rompido com um pacto com as multinacionais da economia
real, os grandes fundos internacionais de investimento – que sabem que o
combate à miséria e a consolidação do governo Lula serão fundamentais na
batalha pela preservação do meio ambiente. E também com a mídia mais racional,
que entenda os novos tempos e saia da armadilha dos lugares-comuns.
Quando
ouço subjornalismo, como Boris Casoy, e jornalistas tarimbados, como William
Waack, repetindo o mantra dos cortes de gastos percebo que há uma grande
irracionalidade envolvendo a mídia, similar àquela que envolve senhoras que
acampam na frente dos quartéis, ou os negacionistas da vacina.
Autor:
Luis Nassif – Publicado no Site GGN.