Quando
se fala que o Brasil está a perder sua democracia, deveríamos começar por
lembrar do fato de ser impossível perder o que você nunca teve!
O presidente Jair Bolsonaro, em fotografia tomada no dia 14 de junho de 2021.Joédson Alves - EFEFaz
parte de nosso imaginário de catástrofes aquelas cenas de acidentes
automobilísticos em câmera lenta, feitas com manequins no lugar de seres
humanos. Você observa o carro lentamente bater contra um muro para, em uma
singular mistura de tragédia e assepsia, tornar-se o espectador transcendente
do choque frontal quebrando os vidros, prensando a lataria e arremessando os
corpos de plástico para fora. A função desses espetáculos pedagógicos é
pretensamente nos acordar para o perigo de nossas condutas automobilísticas
enquanto ainda há tempo, enquanto ainda não ocupamos o lugar daqueles manequins
impessoais, produzidos para passivamente serem destruídos. Mas eles acabavam
por alimentar um certo fascínio pela destruição que parecia a espreita de cada
pisada mais funda no acelerador.
A
história brasileira recente pode ser descrita dessa forma: como uma colisão em
câmera lenta. Vivemos em uma espécie de expectativa difusa de explosão, que
alguns lutam por dissipar o mais rápido possível fazendo gestos e ações
próprios de uma “vida normal” cuja realidade é da ordem da lembrança. A cada
dia que passa é mais evidente que a única questão realmente relevante é quando
vamos colidir.
Alguns
percebem o Brasil atual como uma forma de pesadelo. Esses pedem aos céus para
acordarmos e voltarmos à realidade. Mas talvez fosse mais correto dizer que não
estamos em pesadelo algum. Nós simplesmente acordamos. Esse é o Brasil real e
deveria ser a régua para entendermos nossos verdadeiros problemas. Antes, o que
havia era um sonho para poucos e um pesadelo infernal para a grande maioria.
Ou, se quisermos, poderíamos dizer que, antes, alguns estavam dormindo enquanto
a grande maioria não conseguia dormir.
Pois
seria o caso de insistir agora como o Brasil inovou nas últimas décadas criando
uma espécie de democracia geograficamente limitada. Nas regiões onde vive a
classe média e alta, tal democracia parecia existir, com sua garantia elementar
da integridade dos corpos. Mas bastavam alguns quilômetros em direção às
periferias para entrarmos em uma terra na qual policiais invadem casas sem
mandado, pessoas desaparecem pelas mãos de milícias, crianças morrem por balas
perdidas, sujeitos não podem registrar uma ocorrência em uma delegacia sem
temer alguma forma de retaliação vinda das próprias pessoas que deveriam
protegê-las. Ou seja, nessas áreas a “democracia” nunca existiu, e nenhum
governo viu como tarefa sua modificar tal partilha. Quando se fala que o Brasil
está a perder sua democracia, deveríamos começar por lembrar do fato de ser impossível
perder o que você nunca teve.
Nesse
sentido, ao menos agora a classe política poderia nos poupar de vender mais uma
rodada de ilusões a respeito da necessidade de nos livrarmos de uma
extrema-direita incontrolável para voltarmos ao respeito aos limites mínimos de
um “pacto democrático” que teria existido por essas terras no período
pós-ditadura militar. Uma das patologias nacionais é essa crença de que um
escândalo, uma eleição, um pacto pelo alto irão nos tirar da rota da colisão,
irá recolocar as coisas nos trilhos e nos fazer voltar a sonhar e cantar.
Talvez fosse o caso de dizer: dessa vez, isso provavelmente não vai ocorrer.
É
possível dizer isto porque, depois de um certo tempo, dá para adivinhar a
lógica de Jair Bolsonaro e de seus fiéis. Ela se resume a algumas ações
básicas. A primeira delas é sua incrível capacidade de, diante de uma crise,
sempre dobrar a aposta e correr para frente. Como já se disse antes, pode
parecer loucura, mas tem método. Ele sabe que, caso perca as eleições do ano
que vem, provavelmente a diferença não será grande. E nesse cenário, uma
confusão à la Trump já está no script.
Bolsonaro
provavelmente tem razão. Ele conta com um repique da economia devido à retomada
de demandas globais por matérias-primas depois do desconfinamento geral. Ele
sabe que se sobreviver os próximos meses, poderá contar com uma economia em
melhores condições. Depois, é contar com a secular tendência dos “liberais”
latino-americanos a abraçar governos autoritários quando vem o povo batendo às
portas do poder. Poderíamos chamar isso de “complexo de Vargas-Llosa”. Algo
que, diga-se de passagem, não tem nada de muito complexo.
Um
liberal latino-americano é alguém que pode até aprender a escrever e ganhar um
prêmio Nobel, alguém que pode até fazer palestras mundo afora para falar das
riqueza de seu povo mas que, em situações onde as clássicas partilhas de poder
e riqueza são questionadas, sabe muito bem qual é seu lado. Normalmente, é o
lado da filha do ditador ou do coronel que “fala mais que devia” mas que
entrega tudo o que promete (“reforma” trabalhista, previdenciária, fiscal
etc.). Um liberal latino-americano conhece bem sua classe de origem e se tem
algo que ele desconhece é raiva em relação a sua própria classe e meio. Quem
confia em frente ampla devia ler um pouco mais Vargas-Llosa.
Já
a segunda ação típica desse governo é colocar as Forças Armadas cada vez mais
dentro do cenário político nacional. Pergunto-me por quanto tempo ainda vão nos
vender a narrativa do governo sempre às voltas com conflitos entre as Forças
Armadas e o presidente. Essa narrativa faz parte da estratégia de preservação
das Forças Armadas. Mas, para além da narrativa, a verdadeira face fardada foi
mostrada semana passada, com a nota ameaçando a CPI e o poder legislativo. Nada
muito diferente do senhor Villas Boas mandando tuítes com ameaças contra o STF
anos atrás. De toda forma, quem acredita que as Forças Armadas entregarão
os 7.000 cargos que ocupam caso percam a eleição deveria lembrar o que
significa situações nas quais um setor do poder constitui um Estado dentro do
Estado.
Ou
seja, é claro que há duas saídas para a oposição. A primeira é deixar de ser
oposição, ou seja, ser apenas oposição à pessoa de Jair Bolsonaro e não aos
interesses que ele defende tão bem. Em nome da “governabilidade” possível
seremos obrigados a nos contentar com um horizonte ainda mais miseravelmente
rebaixado de expectativas. Então teremos um governo que não reverá nenhuma
derrota da classe trabalhadora, nem tocará na natureza “moderadora” do poder
militar.
No
entanto, é difícil não lembrar aqui de um filme de Sophia Coppola chamado Maria
Antonieta. Como o título indica, é um filme sobre a rainha Maria Antonieta,
aquela dos brioches. Durante todo o filme, acompanhamos Maria em suas festas ao
som de Siouxsie and the Banshees, sua liberação sexual, sua afirmação de si,
até o momento em que algo que não deveria estar lá aparece e muda tudo. Mas
aparece não como um personagem. Na verdade, aparece como um poder de
decomposição, como uma força sem figura que tudo desaba. Era o povo de
famintos, de empobrecidos, de enlutados, cuja única presença no filme é como o
som emudecedor que Maria deve ouvir da sacada do Palácio de Versalhes. Bem,
imaginar que esse povo que já demonstrou sua força na Colômbia, no Chile, não
aparecerá por aqui pode ser um cálculo muito ruim. Mas se a oposição política
tentar colocar-se a seu lado, ela perderá seus novos amigos da Frente Ampla.
Amigos que, podem apostar dois vinténs, irão abraçar novamente Jair Bolsonaro
nessa situação. Isso talvez explique por que o Brasil tem uma oposição que, no
fundo, reza para que nada ocorra. Mas como aprendemos nesses filmes de
acidentes automobilísticos, no final o carro bate.
Nessas
circunstâncias, melhor seria admitir de vez que o carro baterá e que não há
como salvá-lo. O Brasil que conhecemos acabou. Forças efetivas de oposição
estariam a fazer de sua bandeira uma profunda refundação institucional do país,
assim como formas de desmonte da estrutura necropolítica de seu estado e luta
real contra as classes responsáveis pela concentração econômica e espoliação
geral. Essas mesmas classes que enriqueceram com a pandemia e que sonham em fazer
turismo espacial nas novas naves de Robert Bransom ou Jeff Bezos.
Autor:
Professor Vladimir Safatle – Publicado no El País