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19 de abril de 2019

“Bolsonaro propõe fim de toda estrutura de participação social na gestão estatal", diz especialista.

Confira análise das implicações jurídicas e democráticas do Decreto 9.759/2019, medida anunciada por Bolsonaro que extingue conselhos de participação social. 
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), dois princípios foram (e são) basilares para a estruturação do Estado de Direito brasileiro: a cidadania (art. 1, inc. II) e a participação social no planejamento, na implementação e no monitoramento da gestão estatal (art. 194, inc. VII, art. 198, inc. III, art. 204, inc. II, art. 206, inc. VI, entre outros dispositivos constitucionais).
Estes princípios constitucionais devem ser lidos como estreitamente vinculados aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, tal como estipulados no artigo 2° da CF/88, dos quais os de maior interconexão seriam a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária” (inc. I) e a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (inc. IV).
Depois de mais de duas décadas de um modelo de gestão estatal centralizador e arbitrário da ditadura militar, a proposta da Carta Cidadã estava bem definida: estabelecer um sistema descentralizado de gestão estatal, em que os cidadãos e as cidadãs possam ser acolhidos em estruturas institucionais que possibilitem o debate entre sujeitos diversos e divergentes, além do controle permanente dos mecanismos de planejamento, custeio e intervenção estatal, visando à democratização do Estado e o fortalecimento da cidadania e da participação social.
Assim, desde a promulgação da CF/88 – e não desde o ingresso do Partido dos Trabalhadores no governo federal, em 2003 – diversos conselhos de políticas públicas, entre outros órgãos colegiados, foram criados para assegurar a gestão democrática da máquina estatal, como: o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (1991); o Conselho Nacional de Assistência Social (1993); o Conselho Nacional da Pessoa com Deficiência (1999); o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (2000); o Conselho Nacional do Idoso (2002); e, o Conselho Nacional da Juventude (2005).
Além disso, houve a remodelação à luz das normas constitucionais de outros conselhos pré-existentes à Carta Cidadã, como: o Conselho Nacional de Saúde (existente desde 1937, mas com a estrutura atual operando desde 1990); o Conselho Nacional de Educação (cujo primeiro formato é de 1911, e com o modelo atual desde 1995); o Conselho Nacional de Meio Ambiente (instituído em 1981, e remodelado em 1997); e, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (criado em 1985, e reativado e reestruturado em 1995).
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que realizou o levantamento do perfil e da atuação dos membros de muitos destes conselhos de políticas públicas de caráter nacional, “[o] número de conselhos nacionais aumentou consideravelmente desde o início da década de 1990. Enquanto, entre 1930 e 1989, foram criados apenas cinco conselhos nacionais, entre 1990 e 2009, somaram-se a eles mais 26 conselhos, tendo em vista a difusão da ideia de ampliar a participação no processo de formulação de políticas públicas pós-CF/1988”.
Há de se destacar, como bem analisa o IPEA (2013), que muitos destes conselhos foram criados ou reformulados durante a presidência de políticos de direita, como Fernando Collor de Mello (PRN) e Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Portanto, na gestão federal de partidos políticos de direita que assumiram o mandamento constitucional de ampliar a participação social na gestão estatal, ainda que isto tenha ocorrido com muitas dificuldades e resistências dos próprios governantes.
Dentro desta nova lógica de atuação estatal, os conselhos de políticas públicas estão institucionalmente articulados, ainda que sejam operacionalmente autônomos, às secretarias ou ministérios criados para execução das políticas públicas e, sobretudo, à realização, em muitos deles, dos ciclos de conferências nacionais de cada temática/pasta, período no qual os municípios, os estados, o Distrito Federal e o governo federal devem avaliar o andamento das políticas públicas e formular novas formas de atuação do Estado, sempre com base na ampla participação social.
Com a chegada do governo do presidente Lula, em 2003, este modelo não foi alterado e sim ampliado para outras temáticas ou grupos sociais que até o presente momento não tinham reconhecimento estatal e visibilidade pública de suas demandas, como a juventude, o idoso, a igualdade racial, os povos indígenas, os povos e comunidades tradicionais, tráfico de pessoas, entre outros.
E, em 2014, com a edição do Decreto n. 8.243/2014, mais conhecido como Política Nacional de Participação Social, procurou-se dar organicidade e regulamentação jurídica as formas de participação social nas estruturas institucionais do Estado, com o objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas “de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil”, como estabelece o artigo 1°.
A razão aqui é de ordem qualitativa – e não quantitativa ou econômica – relacionada à necessidade de ampliação dos espaços de participação social na esfera estatal para assegurar um maior alinhamento entre as prioridades da agenda política e a diversidade de opiniões, interesses e realidades dos sujeitos, sobretudo para reduzir – ainda que não elimine – as desigualdades de participação entre diferentes os grupos de interesse, especialmente aqueles historicamente mais vulnerabilizados ou marginalizados.
Tem-se, ao menos num plano formal e processual, o indicativo de que o Estado terá melhores condições de atuar em prol do bem comum concebido de maneira democrática e participativa, controlando o autoritarismo, o beneficiamento exclusivo de grupos de poder político-econômico hegemônico e a transparência pública.
No entanto, o que propõe o Decreto n. 9.759/2019, lançado pelo atual presidente da República, Jair Bolsonaro, é o desmantelamento de toda esta estrutura de participação social na gestão estatal e, mais do que isso, é a decretação de um ato – por certo, sempre por decreto – que é inconstitucional e pode representar um crime de abuso de poder e de atentado à democracia, à cidadania e ao Estado de Direito.
Além disso, desde o plano do direito internacional, entende-se também pela violação à garantia da progressividade dos direitos humanos, haja vista tratar-se de ato normativo que gera retrocesso na moldagem de gestão dos direitos sociais, econômicos e culturais no Brasil.
Segundo informado na imprensa por membros do governo federal, o referido Decreto faz parte do pacote de austeridade da máquina estatal e da pretensão governamental de acabar com os “resquícios de administrações petistas, com visões distorcidas e viés ideológicos, que não representam a totalidade da sociedade”, informou Onyx Lorenzoni, Chefe da Casa Civil.
O primeiro equívoco do governo federal está em avaliar os benefícios desta medida pelo viés econômico e reduzir a estruturação da participação social na gestão estatal como um “legado indesejado dos governos petistas”.
Por um lado, qualquer justificativa de redução de gastos da maquina estatal com a extinção dos órgãos colegiados, especialmente dos conselhos de políticas públicas, é menos relevante do que o impacto que a medida terá na qualidade da própria gestão estatal, a qual passará a ser mais centralizadora (e autoritária) e com reduzida capacidade de participação da sociedade civil.
Por outro lado, o histórico dos conselhos de políticas públicas demonstra que eles são um legado de vários governos, de diferentes bandeiras político-ideológicas, anteriores aos regidos pelo Partido dos Trabalhadores, fruto, sobretudo, dos avanços jurídicos e democráticos advindos com a promulgação da CF/88. 
Em segundo lugar, o Decreto n. 9.759/2019 viola as garantias de cidadania e participação social definidas na CF/88, e que poderia ser classificado como um crime de responsabilidade do presidente da República por atentar contra a Constituição Federal, tal como definido no artigo 85 da Carta Cidadã, especificamente na produção de ato (o Decreto) que contraria “o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais” (inc. III).
Além disso, o efeito prático-institucional do Decreto acarretaria um retrocesso na gestão democrática das políticas públicas, construído ao longo das últimas três décadas, o que fere o princípio da progressividade dos direitos humanos, estabelecido no artigo 26 da Convenção Americana dos Direitos Humanos, no artigo 2° do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, entre outros documentos do direito internacional.
Para além dos aspectos normativos que o Decreto afeta, em termos institucionais a irresponsabilidade do ato presidencial também será sentida, caso perdure. Inúmeros órgãos colegiados foram ou serão suprimidos sem consulta à sociedade e sem considerar o planejamento que já estavam realizando, inclusive com reuniões agendas, com passagens e diárias emitidas. No caso dos conselhos de políticas públicas, vários deles estão atuando para a garantia da implementação de políticas, programas, planos e projetos de grande relevância para a sociedade, em especial à população mais vulnerabilizada.
Um exemplo é o Conselho Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (CONATRAP), que desde o ano passado está envidando esforços para assegurar a implantação das medidas previstas no III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Decreto n. 9.440/2018) e na Lei de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Lei n. 13.344/2016). 
Isto sem contar o efeito colateral que esta medida terá nas gestões públicas dos estados, Distrito Federal e municípios, caso seus governantes sigam a mesma linha adotada pelo governo federal. Esta “onda antidemocrática” pode ser mais influente nos locais governados por políticos alinhados política e ideologicamente com o governo federal, como os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, além de inúmeros municípios brasileiros.   
Um dado crucial da irresponsabilidade administrativa com a emissão deste Decreto é o seu artigo 8°, em que define que “[o]s órgãos e as entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional encaminharão a relação dos colegiados que presidam, coordenem ou de que participem à Casa Civil da Presidência da República até 28 de maio de 2019.” Em outras palavras, a administração pública decreta um ato normativo de extinção de órgãos colegiados sem saber ao certo quantos serão extintos, e define um prazo para que cada órgão encaminhe a listagem.
Além disso, no artigo 4°, parágrafo único, estabelece que as reuniões dos órgãos colegiados devem durar no máximo duas horas, sendo que passando deste tempo deve ser “especificado um período máximo de duas horas no qual poderão ocorrer as votações.” Assim, um regime de disciplina militar passa a pairar sob a gestão dos órgãos colegiados que sobreviverem ou forem criados após este Decreto, em que a única certeza é que a participação social está impedida e a democracia ainda mais fragilizada.
Por certo, a extinção dos órgãos colegiados não é imediata, mas está prevista para ocorrer a partir de 28 de junho de 2019 (art. 5°). Até lá, todos os órgãos colegiados terão “um prazo de 60 dias para justificar sua existência” [3], conforme afirmou Onyx Lorenzoni. No entanto, pergunta-se: quais os critérios que o governo federal adotará para julgar os órgãos colegiados que merecem ou não continuar a existir? E quem vai participar desta tomada de decisão? Estes critérios e os sujeitos vinculados a tal tomada de decisão não estão definidos no Decreto, de modo a tornar ainda mais arbitrário e imprevisível o modo como à medida será implementada e os efeitos que acarretará à gestão estatal.
Ao que tudo indica, o prazo estipulado no Decreto é meramente formal, pois a decisão já está tomada, e esta fumaça de negociação política só reforça o caráter autoritário da atual gestão do governo federal, a qual, friso, deve ser avaliada de maneira séria, inclusive em relação ao cometimento de violações à Constituição Federal e à progressividade dos direitos humanos.

Autor: Assis da Costa Oliveira é doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA). Graduado em Direito pela UFPA. Professor de Direitos Humanos da Faculdade de Etnodiversidade da UFPA, Campus de Altamira. Coordenador do Grupo de Trabalho Direitos, Infâncias e Juventudes do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais. Advogado.

18 de abril de 2019

Como era Paris!

Ao conhecer Paris, percebi que estava, decididamente, em outra ideia de urbanismo e de civilização. Um pouco disso pode ter desabado com o teto da Notre Dame!

Nada identificava Paris como a Torre Eiffel, os Champs Elysées e a Notre Dame. E as pessoas vinham de Paris com histórias inacreditáveis. Em Paris as mulheres fumavam na rua. Em Paris viam-se casais se beijando (na boca!) nos bancos de praça. Também se comentava que os parisienses não gostavam muito de banho, e que viajar apertado com eles num metrô era um teste de tolerância com os cheiros dos outros. Mas isso talvez se devesse à escassez de água quente nos prédios antigos, onde elevador também era uma raridade. 
Quem vinha de Paris falava muito nas “caves”, porões em que se conversava, se bebia vinho, às vezes se ouvia jazz e, acima de tudo, se fumava, se fumava muito. Falava das “concierges” dos velhos prédios, uma raça conhecida pela sua misantropia, que só perdia em rabugice para motoristas de táxi, mas que era quem fazia a cidade funcionar. Parisienses eram irritadiços e impacientes com estrangeiros. Em compensação, você podia sentar numa mesa do Café de Flore ou do Les Deux Magots, no Boulevard Saint-Germain, pedir um cafezinho e passar a tarde, esperando que o Sartre e a Simone de Beauvoir começassem uma briga na mesa ao lado. 
Algumas coisas não têm mais. Não se sabe que fim levou as velhas “concierges”, todas substituídas por portuguesas ou portugueses. Especula-se que estejam todas num retiro onde passam o tempo se intrigando mutuamente. Os motoristas de táxi, pelo menos na nossa experiência, civilizaram-se. Há água quente para quem quiser. Um problema persistente é o despreparo da cidade para enfrentar o calor: só agora o ar refrigerado se banaliza, certamente por exigência dos turistas. O Café de Flore e o Deux Magots continuam lá, mas são poucas as probabilidades de o turista ver alguém conhecido. A não ser algum turista da sua própria cidade, claro.
Quando conheci Paris, os ônibus ainda eram aqueles com uma sacada atrás. Se você perdesse o ônibus podia persegui-lo e tentar pular na sacada – coisa que, mesmo com 60 anos menos, eu nunca fiz. Lembro da primeira vez em que saí do buraco do metrô e dei com o Champs Elysées e, de repente, tudo que eu tinha ouvido contar da cidade e seu cosmopolitismo se materializou ali na minha frente, na grande avenida. Eu estava, decididamente, em outra ideia de urbanismo, em outra ideia de civilização. Um pouco disso pode ter desabado com o teto da Notre Dame, mas sua reconstrução estará em breve em alguma outra lista de memórias. 

Autor: Luis Fernando Verissimo - O Estado de S. Paulo!

17 de abril de 2019

Chile: capitalização da Previdência faz idosos morrerem trabalhando e suicídio bater recorde

O regime de capitalização da Previdência no Chile obriga os aposentados a seguirem trabalhando, muitas vezes, até morrer. É o caso de Mario Enrique Cortes, “jubilado” que, aos 80 anos, padeceu de insolação em pleno inverno, como jardineiro, em frente ao Palácio de La Moneda, em 2014. De lá para cá, o país vem acumulando episódios trágicos como este. Somado à onda crescente de suicídios na terceira idade – com tiro, enforcamento ou envenenamento -, o cenário escancara a realidade sombria de uma terra em que a aposentadoria foi transformada em negócio para benefício das Administradoras de Fundos de Pensão (AFP).
Corpo de Mario Enrique Cortes, aposentado de 80 anos, coberto por plástico na Praça da Constituição, em frente ao Palácio de la Moneda, em Santiago do Chile. Idoso morreu de insolação, trabalhando para fazer frente à minguada aposentadoria.
Corpo de Mario Enrique Cortes, aposentado de 80 anos, coberto por plástico na Praça da Constituição, em frente ao Palácio de la Moneda, em Santiago do Chile. Idoso morreu de insolação, trabalhando para fazer frente à minguada aposentadoria.
 Corpo de Mario Enrique Cortes, aposentado de 80 anos, coberto por plástico na Praça da Constituição, em frente ao Palácio de la Moneda, em Santiago do Chile. Idoso morreu de insolação, trabalhando para fazer frente à minguada aposentadoria.
“O atual sistema de aposentadoria chileno tem 38 anos e foi imposto pela ditadura de Augusto Pinochet, em 1981. Não houve discussão. O parlamento era uma junta militar, composta por um representante de cada segmento das Forças Armadas. Os generais e o ministro do Trabalho da época, José Piñera, irmão do atual presidente do Chile, Sebastian Piñera, criaram as AFP. Hoje, a capitalização faz nossos idosos morrerem trabalhando e a taxa de suicídio bater recorde”, afirma o representante do movimento No+AFP (Chega de AFP), Mario Villanueva. O dirigente condena “a perversão de um sistema desenhado para que grandes grupos econômicos e seguradoras transnacionais ampliem seus lucros se aproveitando do sacrifício de milhões de aposentados”.
Os idosos totalizam cerca de 16% da população chilena, de acordo com o censo de 2017, pouco mais de 2.800.000 pessoas. Uma em cada cinco segue trabalhando a fim de complementar a aposentadoria. Para Rosita Kornfeld, ex-diretora do Centro de Estudos de Velhice e Envelhecimento da Universidade Católica e especialista da Organização das Nações Unidas (ONU), tal número escancara o abandono desse segmento por parte do Estado. "Eles têm um problema grave de falta de recursos e também de solidão e desamparo, o que os leva a tomarem atitudes extremas", avalia. "Se não prestarmos mais atenção e cuidados, os casos de suicídio vão continuar crescendo".
Radicada no país há 11 anos, a psicóloga brasileira Ana Paula Vieira, fundadora e presidenta da Fundação Miranos, se dedica ao trabalho de prevenção do suicídio entre os idosos. “Obviamente o aumento alarmante no número de suicídios não pode ser chamado de ‘fake news’. Há vários estudos, com dados oficiais do Ministério de Saúde, que revelam as taxas muito altas de suicídio na terceira idade em comparação com a média da sociedade chilena”, explica, em resposta à afirmação de Paulo Guedes, superministro da Economia de Jair Bolsonaro, de que as informações sobre o crescimento do fenômeno no Chile não passariam de notícias falsas.
Vieira ressalta que só agora o tema começou a ser discutido de fato. “Até pouco tempo, o suicídio na terceira idade não era visibilizado por aqui. Falava-se muito de questões como moradia, o alto custo da saúde e, claro, a questão da aposentadoria, mas o suicídio continuava um tabu”, sublinha.
Os casos emblemáticos de casais de idosos que tiraram a própria vida foram o estopim para que o tema finalmente entrasse em evidência, ganhando manchetes não só no Chile, mas também na mídia estrangeira. “Em 2018, as taxas continuaram altas e outros casos envolvendo casais de idosos vieram à tona e, por isso, o assunto vem recebendo tanta atenção, inclusive em nível de governo”, afirma. “Tenho ido ao Senado, como integrante da Comissão do Idoso, para apresentar dados e estudos sobre este problema”.
O Estudo Estatísticas Vitais, do Ministério de Saúde e do Instituto Nacional de Estatísticas (INE) do Chile é claro: entre 2010 e 2015, 936 adultos maiores de 70 anos tiraram a própria vida. O levantamento – que não contempla o agravamento detectado até mesmo pela mídia privada no último período – aponta que os maiores de 80 anos apresentam as maiores taxas de suicídio: 17,7 por cada 100 mil habitantes – 70% superior à média do continente seguido pelos segmentos de 70 a 79 anos, com uma taxa de 15,4, contra uma taxa média nacional de 10,2.
Segundo o Centro de Estudos de Velhice e Envelhecimento, da Universidade Católica, são índices mórbidos, que têm crescido de forma acentuada e que colocam o Chile como um dos países com os mais altos índices de suicídios nesta faixa etária em toda a América Latina.
 O fato de muitos meios de comunicação no Brasil citarem pretensos estudos tendo por base dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), de 2012, apenas revela a tentativa de fugir do debate, pois foi a partir daí que, passadas as três décadas da “reforma” ditada por Pinochet, “os idosos começaram a receber as suas aposentadorias e puderam dimensionar o quão pouco receberiam e que seu dinheiro não daria para nada”, explica Mario Villanueva. Atualmente, 80% das aposentadorias estão abaixo do salário mínimo (301 mil pesos, ou 1.738 reais ) e 44% abaixo da linha da pobreza.
Uma parcela significativa dos aposentados recebe cerca de 110 mil pesos (635 reais), quantia inexpressiva em um país em que os remédios e a alimentação são particularmente caros. Para se ter uma ideia do que representam esses diminutos ganhos no dia a dia dos chilenos, basta observar que, desde fevereiro, o Instituto Nacional de Estatísticas (INE) calcula que o preço da cesta básica alimentar em torno de 67.235 pesos (388 reais). A “canasta” está composta pelos seguintes produtos e quantidades: leite, 10 litros - $ 7.876; pão, 10 unidades de 500 gramas - $ 8.167; arroz, 1,5 quilo - $ 1.392; ovos, 20 unidades - $ 2.993; queijo, um quilo - $ 6.137; carnes de frango e de vaca, seis quilos - $ 29.533; frutas, seis quilos - $ 5.022 e verduras, oito quilos - $ 6.115. "Isso sem contar as contas luz, gás e os altos custos de medicamentos e moradia", acrescenta Villanueva.
Miséria, abandono e solidão.

Apesar de ser lógico traçar um paralelo entre esse índice e a condição de miséria imposta por um sistema de Previdência que, na prática, nega o direito à aposentadoria digna a uma enorme parcela da população, Ana Paula Vieira alerta: “o suicídio é um fenômeno multicausal. Na terceira idade, ele tem a ver com abandono, com solidão e, obviamente, com problemas financeiros. A discussão passa muito pela precariedade da saúde e por dificuldades econômicas dos idosos. Entretanto, é preciso educarmos a sociedade sobre a complexidade desse problema para conseguir enfrentá-lo ao invés de escondê-lo”.
“Claro que para impor um sistema de Previdência como o do Chile, foi necessário haver manipulação midiática e campanha de marketing. Mas não foi só isso. É um sistema imposto pela força”. Esta é a avaliação de Oriana Zorrilla, histórica jornalista chilena. “Se não tivesse ocorrido a ditadura e a repressão, somadas às mentiras e ilusões vendidas à população sobre o modelo de aposentadoria, não teria sido possível aprovar um sistema assim”. Presidenta do Conselho Metropolitano do Colégio de Jornalistas do Chile, entidade que defende a categoria no país, Zorrilla viveu concretamente a experiência da implementação das Administradoras de Fundos de Pensão (AFP), que transformaram a Seguridade Social em ativos do mercado financeiro a partir da capitalização individual da Previdência. Por ter começado a contribuir antes do novo sistema entrar em vigência, a jornalista conseguiu se aposentar pelo modelo antigo. “A única vantagem que tenho de ser velha é ter o privilégio de ter uma aposentadoria digna, já que me aposentei pelo sistema anterior, infinitamente melhor que o das AFP”, sentencia.
“Meu marido, um engenheiro eletrônico especializado em medicina nuclear, sempre teve um salário três a quatro vezes maior que o meu. No entanto, sua aposentadoria, que é paga pelo sistema das AFP, é muito menor que a minha”, diz. Segundo Zorrilla, o marido dela, como milhões de cidadãos chilenos, teve o azar de ter começado a contribuir somente no sistema imposto pela ditadura, o que foi obrigatório a partir da sua instalação.
“Por ter sido gerente e recebido um salário maior que o meu a vida toda, todos me diziam que ele era um bom partido. Agora, eu sou o bom partido, por não depender do sistema das AFP. É um contrassenso total”, ironiza.
Os jornais e as emissoras de rádio e televisão venderam muitas mentiras sobre o que seria este modelo de aposentadoria, relata Zorrilla. “Os meios de comunicação não só fizeram, lá atrás, como seguem fazendo campanha para um sistema que, na realidade, é um assalto à mão armada contra toda classe de trabalhadores: de jornalistas a engenheiros, de funcionários públicos a operários”. 
Há poucos dias, o Colégio de Jornalistas promoveu o leilão da biblioteca de um consagrado jornalista de Santiago, Rodrigo Beitia, diagnosticado com Alzheimer. “A família deste profissional brilhante colocou à venda todos os livros adquiridos ao longo de sua vida para ajudar a pagar um tratamento e um lugar adequados para os cuidados de saúde necessários”, conta. “Por um lado, é um gesto bonito, pela solidariedade que ele recebeu de todos nós. Por outro, é um retrato que escancara uma realidade angustiante”.
Contabilidade nefasta

Mario Villanueva ressalta que “enquanto bancos como o BTG Pactual (do ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes) pagam 4% de remuneração pelo dinheiro aplicado, cobram dos mesmos trabalhadores chilenos uma taxa de juros de 25% a 30%, fazendo com que tais instituições financeiras multipliquem rapidamente o seu patrimônio”. Assim, o total de fundos acumulados pelas AFPs já beira os 220 bilhões de dólares, explica, o equivalente a 75% do Produto Interno Bruto (PIB) do Chile. “Dois terços destes recursos, US$ 151,9 bilhões, estão, conforme a Fundação Sol, sob o controle de três empresas norte-americanas: Habitat, US$ 57,76 bilhões (27,4%); Provida, US$ 53,03 bilhões (25,2%) e Cuprum, US$ 41,14 (19,5%)”, esclarece Villanueva.
É para mudar esta irracionalidade que a No+AFP propôs recentemente ao parlamento um projeto que enfrente este modelo. “Estamos vivendo as consequências de um sistema instalado por uma ditadura, cujos impactos recaem sobre uma população que vai envelhecendo com aposentadorias insuficientes para sobreviver com um mínimo de dignidade. Isso se repete cada vez mais e vamos tendo muitos exemplos de idosos que se suicidam porque não podem mais viver com essas pensões e que estão sós. Porque quando se impõe o neoliberalismo, o 'salve-se quem puder', as famílias vão se desagregando, multiplicando-se os casos de abandono e suicídio”, aponta.
Villanueva recorda que a palavra jubilación (aposentadoria, em espanhol) vem de júbilo – alegria, empolgação, entusiasmo –, período em que as pessoas deveriam estar desfrutando. O oposto disso, enfatiza, é o caso do casal de idosos que após mais de cinco décadas juntos decidiu pôr fim às suas vidas, mencionado também por Ana Paula Vieira. “O fato é que com recursos cada vez menores, os filhos – que também não são tão novos – têm que passar a se responsabilizar pelos pais. E quando não há filhos, os pais passam a depender de vizinhos. Tudo para que uns poucos especuladores, bancos e transnacionais, lucrem de forma exorbitante”, protesta. 

Autores: Felipe Bianchi e Leonardo Wexell Severo são jornalistas e integram o coletivo ComunicaSul*. 
*O Coletivo ComunicaSul está no Chile com os seguintes apoios: Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé,  Diálogos do Sul, Federação Única dos Petroleiros (FUP), Jornal Hora do Povo, Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, Sindicato dos Metroviários de São Paulo, e Sindicato Nacional dos Carteiros do Chile (Sinacar).

José Padilha: O ministro antiFalcone!

Pacote de Moro contra o crime vai fortalecer milícias.
Sergio Moro sabe que:
1- As milícias são organizações criminosas controladas por policiais civis e militares corruptos e violentos;
2- Esses policiais utilizam o aparato do Estado, como armas, helicópteros e caveirões, para expulsar o tráfico e dominar as favelas;
3- As milícias cobram por proteção e dominam atividades econômicas importantes nas áreas que controlam: distribuição de sinais de TV e de gás de cozinha e transporte alternativo;
4- As milícias decidem quem faz propaganda eleitoral nas suas áreas e financiam campanhas políticas;
5 - Milicianos e políticos ligados a milicianos foram eleitos no Brasil para cargos legislativos e executivos em níveis municipal, estadual e federal.
Mesmo sabendo de tudo isso, o ministro Sergio Moro declarou que as milícias representam a mesma coisa que as facções criminosas dentro das prisões, sugerindo que esses grupos operam como o varejo do tráfico de drogas. Ora, o leitor sabe que sempre apoiei a operação Lava Jato e que chamei Sergio Moro de “samurai ronin”, numa alusão à independência política que, acreditava eu, balizava a sua conduta. Pois bem, quero reconhecer o erro que cometi. 
Digo isso porque não há outra explicação: Sergio Moro finge não saber o que é milícia porque perdeu sua independência e hoje trabalha para a família Bolsonaro. Flávio Bolsonaro não foi o senador mais votado em 74 das 76 seções eleitorais de Rio das Pedras por acaso... O pacote anticrime que Sergio Moro enviou ao Congresso embora razoável no que tange ao combate à corrupção corporativa e política— é absurdo no que se refere à luta contra as milícias. De fato, é um pacote pró-milícia, posto que facilita a violência policial. Se Sergio Moro tivesse estudado os autos de resistência no Brasil teria descoberto que:
1 - Apenas no Rio de Janeiro, a cada seis horas, policiais em serviço matam alguém;
2 - A versão apresentada por esses policiais costuma ser a única fonte de informações nos inquéritos instaurados em delegacias para apurar os homicídios;
3 - Como policial tem fé pública, a sua versão embasa a excludente de ilicitude, evitando a prisão em flagrante;
4 - A Polícia Civil, além de raramente escutar testemunhas ou realizar perícias no local dos assassinatos, tem mania de desfazer as cenas do crime para prestar socorro às vítimas, apesar de a maioria delas morrer instantaneamente em decorrência de disparos no tórax;
5 - Desde 1969, quando o regime militar editou a ordem de serviço 803, que impede a prisão de policiais em caso de “auto de resistência”, apenas 2% dos casos são denunciados à Justiça e poucos chegam ao Tribunal do Júri.
Aprovado o pacote anticrime de Sergio Moro, esse número vai tender a zero. Isso porque o pacote prevê que, para justificar legitima defesa, bastará que o policial diga que estava sob “medo, surpresa ou violenta emoção” ou, ainda, que realizava “ação para prevenir injusta e iminente agressão”.
O hábito que os policiais milicianos têm de plantar armas e drogas nos corpos de suas vítimas para justificar execuções é tão usual que deu origem a um jargão: todo bom miliciano carrega consigo um “kit bandido”. Aprovado o pacote de Moro, nem de “kit bandido” os milicianos precisarão mais.
Sergio Moro nunca sofreu atentados e nunca lidou com a máfia. Mas o juiz Giovanni Falcone, em quem o ministro diz se inspirar, foi morto aos 53 anos de idade na explosão de uma bomba colocada pela máfia em uma estrada. Sua mulher e três seguranças morreram com ele.
O crime foi uma reação da máfia à operação “Maxiprocesso”, que prendeu mais de 320 mafiosos na década de 1980. Ela deu origem à operação “Mãos Limpas”, que mostrou que a máfia elegia e controlava políticos importantes na Itália.
Ora, no contexto brasileiro, é obvio que o pacote anticrime de Moro vai estimular a violência policial, o crescimento das milícias e sua influência política. Sergio Moro foi de “samurai ronin” a “antiFalcone”. Seu pacote anticorrupção é, também, um pacote pró-máfia. 

Autor: José Padilha - Cineasta, diretor dos filmes "Tropa de Elite" (2007), "Tropa de Elite 2" (2010) e "RoboCop" (2014).

16 de abril de 2019

A política e a gestão pública precisam de uma nova safra de estadistas!

Dentro de um setor ainda muito aparelhado e engessado, implementar grandes mudanças é um desafio homérico para os líderes públicos que querem realmente fazer a diferença.
Makyzz via Getty images - A despeito da burocracia, novos líderes públicos devem buscar maior produtividade e eficiência.
             A demanda por qualificação do funcionalismo público tem aumentado nos últimos anos em todos os níveis, sejam servidores, secretários, prefeitos ou governadores. A ideia de que o setor público é um campo puramente burocrático, pouco dinâmico e balcão de favores não sobreviverá frente a crescente demanda e vigilância da sociedade sobre os serviços públicos, acentuada pelo uso das redes sociais. Cada vez mais, aumenta a pressão para que o Estado se reinvente e responda de maneira mais efetiva a essas demandas, com políticas públicas inovadoras, serviços melhores e, principalmente, profissionais capazes de impulsionar essa evolução.
Segundo dados do IBGE, 50% da atividade econômica do Brasil está nas mãos do setor público. Adicionalmente, 70% dos brasileiros dependem do setor público para terem acesso a serviços básicos de saúde e educação. Frente ao cenário de arrocho nas contas públicas, os governos precisam buscar maior produtividade, eficiência e proximidade da sociedade. Dentro de um setor ainda muito aparelhado e engessado, implementar grandes mudanças é um desafio homérico para os líderes públicos que querem realmente fazer a diferença.
Nesse sentido, construir novos caminhos no governo requer não somente capacidade técnica, mas exige também preparo para liderar uma grande mudança de comportamento e cultura nas repartições públicas e na própria população.
O contexto atual para o setor público exige gestores que saibam fazer leituras do contexto político, construir soluções para os complexos problemas públicos e mobilizar e engajar a população nas entregas e mudanças necessárias. Hoje, diversas instituições ligadas ao desenvolvimento de gestores públicos estão atentas a esse novo perfil de líder público, entre elas o CLP – Liderança Pública. Há seis anos lançamos o Master em Liderança e Gestão Pública – MLG, pós-graduação que já desenvolveu mais de 160 líderes públicos de todo o Brasil, entre eles prefeitos, secretários estaduais, municipais, técnicos dos três níveis de governo e líderes do terceiro setor e iniciativa privada que trabalham junto ao governo.
A maior preparação do gestor e consequente aumento da capacidade institucional do Estado de produzir resultados é uma demanda real e urgente da sociedade. Não à toa alguns governadores têm, inclusive, investido em realizar a pré-seleção profissional para nomeação de cargos de indicação política. A atual secretária de Educação de Goiás, Fátima Gavioli, é um exemplo simbólico da mudança de paradigma do setor público. Antes de assumir a pasta, participou e foi finalista da pré-seleção para secretária de Educação em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul.
Mãe de dois filhos construiu a carreira como professora no estado de Rondônia e ampliou o currículo com inúmeros títulos de formação acadêmica, incluindo bacharel em Direito, mestrado em Letras e Pedagogia e pós-graduação em Liderança e Gestão Pública, o MLG. Fátima, no entanto, teve que enfrentar uma dura realidade até chegar onde está. Durante sua trajetória acadêmica, trabalhou como doméstica por sete anos em Cacoal, Rondônia, antes de conseguir se formar entrar no magistério e se assumir o comando da Secretaria de Educação de seu estado. Atualmente, a rede pública goiana é líder nacional no Ensino Médio e no Ensino Fundamental II, de acordo com o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).
A 887 quilômetros de Goiânia, em Londrina, a gestão pública ganhou mais um caso de profissional oriundo de processo profissional de pré-seleção. A secretária municipal de Educação, Maria Tereza Paschoal de Moraes, uma das vencedoras do Prêmio Espírito Público 2018, que premia a trajetória de servidores públicos que fizeram a diferença. Com o prêmio, Maria Tereza recebeu R$ 50 mil e uma viagem a Londres para uma troca de experiência com instituições públicas britânicas. Ela é servidora pública desde 2000 e assumiu a pasta em 2017, após ser aprovada no processo seletivo em primeiro lugar. Maria Tereza é bacharel em Direito pela Fundação Eurípedes Soares da Rocha e também pós-graduada em Liderança e Gestão Pública, pelo MLG.
Esses novos gestores públicos são essenciais para a manutenção das instituições democráticas do País e são eles que irão conceber e implementar as políticas públicas endereçadas aos reais problemas do Brasil. Gestão Pública e Política têm uma relação simbiótica, em que a política determina o foco e os parâmetros de atuação da gestão pública e esta torna real o discurso político. Em tempos de flutuações políticas, os servidores públicos assumem uma função ainda mais importante de manter o vínculo de confiança junto à população por meio do acesso, dos serviços e amparo que oferecem.
E esse é o perfil do “Novo Líder Público”, o verdadeiro estadista que compreende esse contexto e o seu papel na mudança de cultura tão necessária no nosso país, trabalha em prol do cidadão e investe em inovação, capacitação e qualificação profissional. Uma vez que um real legado para a sociedade é resultado da capacidade de liderança, do conhecimento técnico e uma gestão eficiente.

Autora: Luana Tavares - Diretora Executiva do Centro de Liderança Pública.

Hipocrisia em nome da família!

Num estado democrático existem
duas classes de políticos:
Os suspeitos de corrupção
e os corruptos. David Zac


As eleições de 2018 tiveram como discurso principal a questão da “Família” brasileira, onde foram destaques nas propagandas eleitorais e nos discursos dos candidatos aliados com o projeto de Bolsonaro a ideologia de gênero, comunismo, salvação da família, fim do politicamente correto, entre outras coisas.
Com a ajuda de muitas mensagens fake news, que deturpavam avanços de governos anteriores e distorcia o entendimento de questões que envolviam a família brasileira, a educação e a própria política, eles conseguiram eleger-se e formar uma bancada conservadora.
Após cem dias de gestão, tanto no Executivo como no legislativo, muitas coisas foram ditas, poucas realizadas, e muitas tiveram que ser desmentidas. Porém, a educação aguarda o que este “novo” governo irá realizar para tentar melhorar os índices que são pífios no que tange ao desempenho dos nossos alunos.
Entretanto, nessa barafunda em que está o estágio do atual governo Bolsonaro, salta aos olhos que questões centrais que afetam a família brasileira não foram sequer aventadas. Entre elas a fome, o desemprego, o destravamento da economia, a saúde pública que está no fundo do poço, os medicamentos de alto custo que não chegam ao cidadão comum nos municípios brasileiros, as obras de infraestruturas (Estradas, Saneamento, etc.).
Sem contar a mais preocupante dentre todas que é a segurança pública, com Estados sendo dominados pelas organizações criminosas como PCC, CV entre outras. Um projeto do ministro Moro que foi enviado para o Congresso é tudo que o governo tem até o momento.
Entretanto, nada explica ou justifica a complacência das nossas autoridades para com as milícias infiltradas nas cidades como o Rio de Janeiro, por exemplo, sem que haja um combate eficaz a estes criminosos. Como podem discursar de forma hipócrita a favor da família se não fazem nada para garantir a segurança, saúde e educação destas mesmas famílias que foram usadas como trampolim para se elegerem?
Nenhuma medida eficaz contra o contrabando de armas e drogas nas fronteiras foi ventilada pelo novo governo. Nenhuma ação foi tomada contra as Organizações Criminosas em nenhum Estado brasileiro, o que nos permite imaginar que ruim é apenas a ideologia, a liberdade de expressão ou a orientação sexual das pessoas no país, enquanto a criminalidade fica à margem das discussões e permanece atuando livremente em todo país, inclusive no Estado do Rio de Janeiro, onde o presidente e seus três filhos residem há muitos anos.
A chamada “Bancada Evangélica” poderia sair do luxo de seus cargos e benefícios e atuar verdadeiramente em nome da família brasileira provocando a discussão sobre estes temas ao invés de ficar com bobagens como, por exemplo, a mudança da sede da embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém em Israel. Medida inócua quando comparada com a situação da grande maioria das cidades brasileiras desprovidas de saneamento básico, com esgoto correndo a céu aberto. 
 


Autor: Rafael Moia Filho: Escritor, Blogger, Graduado em Gestão Pública.

12 de abril de 2019

A ideologia assombra nossa política externa

Nos tempos da União Soviética, os grupos não comunistas, que normalmente rezavam pela cartilha de Moscou eram chamados de linha auxiliar. Na nova era, o presidente Bolsonaro e seu chanceler Araújo podem ser considerados linha auxiliar do governo Trump.
Mesmo não sendo cidadãos estadunidenses, suas primeiras posições em política externa atendem aos interesses dos EUA de Donald Trump, ignorando ou mesmo prejudicando os nossos. A anunciada (felizmente suspensa) instalação da embaixada brasileira em Jerusalém violaria decisões da ONU e enfureceu os palestinos e os árabes, de modo geral.
No século passado, o Conselho de Segurança da ONU não rejeitou a tomada da cidade pelo exército israelense e recomendou que fosse dividida entre judeus e árabes. Todos os países respeitaram esta posição, a qual tem força de lei. Até no ano passado, quando os EUA de Donald Trump, mudaram sua embaixada para Jerusalém (seguidos, num átimo, pela Guatemala).
Os EUA agiram desse modo para agradar a Israel, seu maior aliado no Oriente Médio, e ao vasto eleitorado evangélico do presidente republicano, que precisa contar com seu voto nas próximas eleições presidenciais.
Já o Brasil não ganharia absolutamente nada se imitasse Tio Sam. Em compensação arriscava-se a perder as importações árabes de produtos brasileiros, em retaliação à mudança que fortaleceria um reconhecimento internacional de Jerusalém indivisa como capital de Israel.  Jerusalém é uma das principais cidades-santas do islamismo. Renunciar a ela é inaceitável para os seguidores de Maomé, que exigem a parte oriental da cidade como capital do futuro Estado palestino.
Uma eventual perda das exportações de commodities brasileiras para os países árabes, que levaria bilionários recursos a virarem fumaça, provocou protestos de agricultores, pecuaristas e membros do governo não contaminados pela ideologia olavista.
Brasília acabou desistindo, ao menos momentaneamente, de se comportar como linha auxiliar da administração de The Donald. 
         Depois do beija-mão da Casa Branca, Bolsonaro, seu chanceler, Araújo, e outros dignitários viajaram a Israel, para cumprir promessa eleitoral e estreitar uma aliança com o governo Netanyahu. 
         Interessava a Donald Trump aproximar seus aliados, para vitaminar as iniciativas ianques nos foros internacionais. Também nesta viagem o Brasil não ganhou nada; felizmente as perdas não foram das maiores, os árabes acabarão por aceitar a fundação de um escritório brasileiro para negócios inexistentes com Israel. De volta ao Brasil, depois da uma tirada humorística que associava o nazismo à esquerda, o folclórico Araújo parece pronto para uma nova incursão da sua campanha pela ideologização da política externa brasileira. Em entrevista à Folha de S. Paulo, ele informou que estaria sendo discutida uma aliança geopolítica com os Emirados Árabes Unidos, destino da próxima viagem presidencial. Por sinal, trata-se de mais uma monarquia absoluta, invariavelmente fiel à política norte-americana no Oriente Médio.
Segundo o ministro, esse país estaria disposto a ampliar seus investimentos no Brasil. Dinheiro não faltaria aos emires, grandes produtores de petróleo. O chanceler lembrou que os Emirados são o terceiro maior importador árabe do Brasil, somente superado pelo Egito e a Arábia Saudita, outra escala da nova viagem dos próceres da nova era.  Continuando suas declarações à Folha, um entusiasmado Araújo deixou-se levar pelo seu wishful thinking afirmando que: “os Emirados poderiam ser usados pelo Brasil como um hub logístico para enviar produtos agrícolas para Índia e a Malásia e negociar um acordo de facilitação aduaneira”. Com muita propriedade, ele empregou o condicional nessa enumeração de benesses, sujeitas a um futuro remoto e incerto.
Não é de graça que os emires aceitarão tornar realidade os sonhos do Itamaraty da nova era.  O preço é o alinhamento do Brasil na cruzada anti-Irã, liderada pelos EUA. Nosso papel já fora definido pelos emires: pronunciar-se contra o regime de Teerã em todas as votações nos organismos internacionais e, principalmente, condenar o Acordo Nuclear, com que se resolveu uma questão que o Ocidente via como assustadora.
Na proposta dos Emirados, há certos aspectos a considerar. Se for atendida, o Brasil terá passado a hostilizar o Irã, que certamente deixaria de continuar sendo nosso parceiro. Resultado: perderíamos um importador extremamente importante. Em 2018, o Irã comprou produtos brasileiros no valor de 4 bilhões e 888 milhões de dólares (COMEX, 6-04-2019), mais do dobro dos Emirados Árabes Unidos, que adquiriram apenas cerca de 2 bilhões de dólares (Folha de São Paulo, 5-04-2019).
Nota-se que não são os interesses nacionais os motivadores da operação. Em termos práticos, eles seriam contrariados num lance que desfalcaria nossa economia em preciosos bilhões de dólares anuais. A causa real é corrigir o rumo da política externa do Brasil, enveredando pelo alinhamento à política dos Estados Unidos. O que seria uma ideologização. Exatamente o que Araújo diz condenar e prometia mudar.
O Acordo Nuclear com o Irã nada teve de ideológico. Atendia simplesmente aos receios da Europa, EUA e de alguns países asiáticos de que o desenvolvimento da indústria nuclear iraniana poderia detonar uma guerra regional, com chances de se expandir pelo planeta.
Depois de vários anos de discussões, nas quais o então governo de Barack Obama teve parte destacada, as principais potências e o Irã chegaram a um acordo bastante satisfatório. Logo a seguir, veio a aprovação unânime na ONU e da opinião pública de todo o mundo, inclusive os EUA. Na verdade, somente Israel e algumas potências regionais inimigas do regime de Teerã foram contra.
Isso antes de Trump chegar ao poder. The Donald, não só retirou seu país do acordo nuclear, como se lançou numa campanha para a destruir o regime do Irã. Não conseguiu convencer seus aliados, nem da Europa, nem dos demais continentes. Os EUA ficaram isolados, francamente contestados em toda a parte.
Claro, não é por capricho que Washington pretende colocar o Irã de rastos. Há razões geopolíticas envolvidas. O regime de Teerã ousa desafiar a hegemonia norte-americana no Oriente Médio. Por ela, Trump está jogando pesado, impondo sanções aos iranianos, tão duras que podem levar o país ao caos.  Ao lado do presidente republicano estão apenas Israel – esse país e o Irã são inimigos de morte, a Arábia Saudita e os Emirados Unidos, além de umas três ou quatro ilhotas no Pacífico e outras nações irrelevantes.
A “nova era” parece interessada em ingressar nesse pequeno grupo que se opõe ao concerto mundial. O Brasil não tem nenhum motivo sério para se juntar à cruzada anti-iraniana. O alinhamento aos EUA até agora só produziu lugares comuns, promessas vazias e negócios desimportantes, a maioria sem vantagens reais. Teria, porém, muito a perder: além das vultosas exportações para Teerã, também, principalmente, o respeito da comunidade internacional.
Vale ouvir o conselho de Thomas Jefferson, um dos Pais da Pátria norte-americana: “paz, comércio e amizade com todas as nações, não se envolvendo com nenhuma”.
Autor: Luz Eça – Começou sua vida profissional como jornalista e redator de propaganda. Escreve sobre Política Internacional no Correio da Cidadânia.

Da “explosão demográfica” ao “envelhecimento populacional”: 220 anos de falácias

A contrarreforma previdenciária tem como pretexto o envelhecimento  populacional. Da mudança do perfil etário da população pela queda da natalidade e aumento da expectativa de vida, todo o arco parlamentar e seus intelectuais orgânicos concluem ser preciso aumentar idade e tempo de contribuição para aposentadoria e reduzir seu valor. Se cresce o número de idosos dizem, devem-se reduzir seus direitos. O objetivo é congelar a parcela da renda nacional destinada a eles.
Na exposição de motivos da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 6/2019, o ministro da Economia, Paulo Guedes, diz que ela atende à “indispensável busca por um ritmo sustentável de crescimento das despesas com previdência em meio a um contexto de rápido e intenso envelhecimento populacional”. Na PEC 287/2016, do governo Temer, o então ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, dizia que o Brasil “vem passando por um processo acelerado de envelhecimento populacional”.
Já Guido Mantega, Garibaldi Alves Filho e Miriam Belchior – ministros, respectivamente, da Fazenda, Previdência e Planejamento de Dilma Rousseff – , pretenderam justificar, no fim de 2014, a Medida Provisória 664 (contra inválidos, deficientes e viúvas) alegando “aumento da participação dos idosos na população total e uma piora da relação entre contribuintes e beneficiários”.
Nenhum deles leva em conta que 1/3 dos assalariados brasileiros trabalha sem carteira assinada, como mostram sucessivas edições da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE. Nem que, somando a isso os 12% de desemprego aberto (só pessoas que procuraram trabalho na semana de referência da PNAD), chegamos a quase metade da população assalariada. Ou que os exportadores estão isentos de contribuir para o INSS. A revogação desse privilégio, a criação de empregos e uma fiscalização trabalhista eficiente cobririam, no todo ou em boa parte, o déficit que o governo diz que o INSS tem.
Mas deixemos tudo isso de lado.
           O indicador da proporção entre as pessoas em idade de trabalhar e aquelas que não devem fazê-lo e a quem o Estado deve prover cuidados pagos com o produto do trabalho das demais se chama razão de dependência. O IBGE considera que a idade de trabalho é dos 15 aos 64 anos, apesar de a Constituição determinar escolarização obrigatória até os 17 e a Organização Mundial de Saúde (OMS) considerar que, em países “em desenvolvimento”, uma pessoa é idosa a partir dos 60. Mesmo inexatos à luz desses aspectos, os dados abaixo retratam bem como evoluiu no tempo a razão de dependência em nosso país:
 Ano
Razão de Dependência (%)
1940
87,5
1950
85,5
1960
90,2
1970
89,3
1980
79,7
1990
71,7
2000
61
2010
55,2
2020 (projeção feita em 2008)
50,9
Como se vê, ela cai fortemente desde 1940. Em 2020, será a menor da história. Mesmo que se considerem as projeções para anos mais distantes, chegaria a 75,1% em 2050. Não está num horizonte visível que volte sequer ao que era em 1980 (79,7%).
Mas como, se a “a expectativa de vida ao nascer passou de 45 anos em 1940, para 76 anos hoje” e a “expectativa de sobrevida aos 65 anos cresceu de cerca de 10,6 anos em 1940, para 18,7 anos em 2017”, segundo dados do IBGE citados na PEC 6?!
Simples: pela forte queda da taxa de natalidade, que “em 1960, era cerca de 6 filhos por mulher, reduzindo-se para menos de 1,8 atualmente”, como consta da mesma proposta. A proporção de idosos cresce num ritmo menor que aquele em que a cai a de crianças. Logo, a elevação da despesa pública relacionada à terceira idade é compensada (ainda que não se possa calcular precisamente em que medida) pela redução quantitativa da demanda concernente à infância e à adolescência.
Como o sistema educacional e a saúde materno-infantil não são financiados por contribuições específicas, ninguém pensou, na década de 1960, em calcular o “déficit” desses serviços públicos, nem quantos contribuintes diretos ou trabalhadores aptos a gerar riqueza havia para cada criança, como fazem, hoje, com as aposentadorias e pensões. O resultado teria sido bem mais aterrador que a projeção de um contribuinte por beneficiário que consta da PEC 6 para a Previdência em 2040.
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O que não muda é o terrorismo demográfico baseado em falácias. Desde que Thomas Malthus escreveu seu primeiro Ensaio sobre o Princípio da População, e por uns 200 anos, seu foco foi as crianças. Há pouco mais de 20, são os idosos. O capitalismo tem um problema insolúvel com ambos: a existência de pessoas que não produzem, não compõem reservas de mão de obra para baixar salários, não estão aptas a matar numa guerra e precisam de cuidados é disfuncional para ele.
Por isso, quer jogá-las ou mantê-las no mercado de força de trabalho. No Brasil, fez isso com as crianças baixando a idade mínima legal de trabalho para 12 anos em 1967 e deixando, desde sempre, de coibir o trabalho antes dela. Com a elevação da idade mínima constitucional explícita de trabalho para 16 anos (14 como aprendiz) e a existência, hoje, de um pouco de fiscalização e consciência quanto ao trabalho infantil, ataca os idosos, impondo ou aumentando idades de aposentadoria.
A redução da natalidade foi, no Brasil, uma política extraoficial do Estado pós-64, imposta pelos EUA a partir do Memorando 200 de seu Conselho de Segurança Nacional, intitulado “Consequências do Crescimento da População Mundial sobre a Segurança e os Interesses Transcontinentais dos Estados Unidos” [1]. Que os mesmos grupos de interesses se mostrem agora tão preocupados com o envelhecimento (consequência do que fizeram), traz à mente a tradicional advertência: “cuidado com os seus desejos, eles podem se tornar realidade”.
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No interessante estudo As tendências da população mundial: rumo ao crescimento zero [2], os demógrafos Fausto Brito, José Alberto Magno de Carvalho, Cássio Turra e Bernardo Lanza Queiroz observam que “especialistas, instituições e países envolvidos com as questões demográficas sequer imaginavam que os anos 1980 poderiam apresentar inflexão no crescimento absoluto da população mundial. Estavam extremamente preocupados com a velocidade do crescimento, tendo como referência as taxas das três primeiras décadas da segunda metade do século”.
“Caso prevalecesse a taxa de crescimento dos anos 1960” – prosseguem – , “chegar-se-ia, em 2050, a uma população próxima de 18,5 bilhões de habitantes, um pouco mais que o dobro das projeções revistas da Organização das Nações Unidas, 9,1 bilhões”. 
Se as projeções baseadas na alta natalidade dos anos 50/60 não se concretizaram, não há porque pensar que as de agora, relacionadas em sua queda, necessariamente se concretizarão. Ambas só retratam a tendência do momento em que são formuladas. Um país menos inóspito que o Brasil de hoje atrairia imigrantes jovens e despertaria neles e nos brasileiros o desejo de ter mais filhos – algo que muita gente não se permite na horrível situação atual. 
Notas:
[1] Ver https://anovademocracia.com.br/no-36/252-crimes-de-guerra-em-tempos-de-qpazq . Íntegra do documento em inglês: https://pdf.usaid.gov/pdf_docs/Pcaab500.pdf
[2] http://www.ufjf.br/ladem/files/2009/05/As-tendencias-da-população-mundial6.pdf 

Autor: Henrique Judice Magalhaes é jornalista e advogado. Texto também publicado em A Nova Democracia e gentilmente cedido ao Correio pelo autor.

So(ma)mos ciência

Face ao desalento com o conhecimento e desinteresse das pessoas pelo saber, a pergunta correntemente feita nos fóruns de discussão é: ciência pra quê? Uma resposta imediata à desvalorização da ciência é porque o brasileiro não conhece as pesquisas científicas realizadas no país. Quando pedimos para nomear cientistas brasileiros, as pessoas se calam.
As sociedades científicas têm feito uma forte campanha de popularização da ciência, assim a chamemos, especialmente no mês de março, evidenciando a importância das centenas de cientistas mulheres de nosso país. É um bom começo.
O desconhecimento é fruto de uma ação de três vertentes: a) o complexo de vira-latas pressupõe que não podemos desenvolver nada de útil, interessante ou relevante, pois apenas o que é feito lá fora é que é bom; b) há no momento uma política oficial de desmonte do sistema de ciência e tecnologia, iniciado no governo passado, que fundiu essa área com a de telecomunicações e, hoje, continua com cortes que chegam à metade do recurso anual que deveria ser ali investido, sem contar o viés de alta e gravíssima ignorância dos mentores dos mandatários; c) nós pesquisadores temos nossa parte em não nos preocuparmos em desenvolver uma linguagem própria de interlocução com a população sobre o que fazemos. A comunicação acadêmica deveria ser prioritariamente a jornalística e, dentro dela, é o jornalismo científico que contém os elementos necessários para a comunicação.
A pesquisa científica brasileira é feita basicamente nas universidades e institutos públicos. A vinculação com a pós-graduação - área de ensino das universidades - é forte, e há o receio de que a substituição do ministro da educação piore a situação, já que o mais recente indicado é economista da ala dura, nunca atuou em gestão educacional, e tem como parâmetro de "eficiência" o que acontece nas faculdades e universidades privadas. Ou seja, ali não é feita pesquisa científica de qualidade porque o objetivo é mal e mal formar um aluno razoável. Usar essa régua para balizar orçamentos é como comparar a importância de uma galinha com a de um peixe: animais diferentes, ambientes distintos.
Mesmo que um projeto científico não atenda a todos os quesitos de aplicabilidade ou utilidade, ainda assim pode e deve ser financiado, pois o objetivo maior é a expansão do conhecimento. A exploração espacial poderia ser vista como um luxo desnecessário, mas é uma das principais causas dos sistemas de georreferenciamento que nos permitem uma comunicação global e o uso do GPS. Tudo bem que muitos estão usando seus smartphones para propalar fakenews e estabelecer conceitos abandonados há séculos, mas é o preço que se paga pela tolerância à ignorância.
As iniciativas de divulgação científica estão sendo marcadas com #IniCiencias, proposta minha, que indico a todos usarem em seus trabalhos e reflexões. A Unicamp, por meio de seu LabJor, oferece o curso de especialização em Jornalismo Científico, gratuito, cujo processo de seleção deve acontecer no fim deste semestre. É um excelente espaço para aprendizado sobre o qual posso falar por experiência própria. A revista eletrônica ComCiência é editada por esse grupo e, mensalmente, traz dossiês aprofundados sobre temas selecionados e de interesse científico, procurando uma abordagem que possa ser entendida por público não especializado (http://www.comciencia.br).
Sejamos, pois, ciência, e com ela saibamos construir - ou reconstruir - um país que tenha projeção internacional pela inteligência de seu povo e não pela beligerância de seus mandatários.

Autor: Adilson Roberto Gonçalves é pesquisador da Unesp!

9 de abril de 2019

O compliance dos partidos políticos!

"Embora em um primeiro momento as regras possam “assustar” os representantes das agremiações, se bem aplicadas, representarão um resultado mais positivo”. Anna Júlia Menezes e Gabriel Borges Llona*. 
A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado aprovou um projeto de lei que obriga os partidos políticos a cumprirem uma série de normas, com o intuito de priorizar a transparência e aumentar o combate à corrupção.
A proposta altera a Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096, de 1995) para submeter os representantes das agremiações partidárias aos programas de integridade de compliance, cujo alicerce é formado por regras de responsabilidade social e princípios éticos. A sanção prevista em caso de descumprimento dessas normas é a de impedir o recebimento de recursos do fundo partidário.
Entende-se por compliance o conjunto (genérico) de deveres de conformidade a fazer cumprir regulamentos internos e externos impostos. Deste modo, a implementação efetiva dessas políticas preventivas busca criar uma barreira relevante e forte ao cometimento de delitos.
É notável a influência da adoção de um programa de integridade de compliance eficaz em face da prática de condutas criminosas. O programa dita um conjunto de medidas que, ao serem adotadas, atuam na prevenção dos riscos de possíveis descumprimentos ao texto legal. Ou seja, ainda que de fato ocorra o crime, este deverá ser detectado de modo a preservar o organismo ou, nesse caso, o partido político.
O compliance não possui uma forma única engessada, vez que traz como característica orgânica a capacidade de se moldar para atender as necessidades e excluir os riscos de determinada atividade. O mesmo se aplica ao código de conduta criado a partir da avaliação de riscos e da due diligence, face ao organismo que pretende atingir.
A implementação do compliance no âmbito dos partidos políticos é tema de discussão há alguns anos, levantando a inúmeras questões sobre sua aplicação, inclusive sobre a violação da autonomia dos partidos, prevista na Constituição Federal. Contudo, adotar um programa de integridade no âmbito político-partidário é medida não só oportuna, mas necessária.
Como vimos nas últimas eleições, diversas foram às regras e vedações aplicadas aos partidos visando à redução de práticas ilícitas e, até mesmo, corruptas. Logo, seria natural que além de os partidos seguirem as regras já dispostas na legislação eleitoral e em seus estatutos partidários, também fosse criado um método de controle dos partidos, especialmente por se tratarem de entidades que lidam com recursos públicos.
Por meio do compliance, ainda que seja estranha inicialmente a aplicação e adaptação pelas agremiações partidárias, estas terão, na prática, uma importante ferramenta no combate à utilização indevida do dinheiro público e atos de corrupção intrapartidárias, resgatando, dentre outros, a confiança e credibilidade, tão desgastada em meio aos escândalos políticos noticiados diariamente.
De acordo com o texto do Projeto 429/2017, aprovado em caráter terminativo pela CCJ do Senado em 20 de março, o código de conduta e integridade a ser aplicado aos partidos deverá dispor de orientações para a prevenção de irregularidades e de conflitos de interesses; oferecimento de canais de denúncia e métodos de proteção aos denunciantes; estrutura de auditoria interna; registros contábeis que reflitam de forma completa e precisa as transações do partido.
No projeto também há previsão de que os partidos políticos ofereçam treinamentos periódicos para filiados, empregados e dirigentes, além de exigir maior controle nas operações e atividades mais sensíveis dos partidos políticos, notadamente: operações de fusão e incorporação das agremiações partidárias; contratação de terceiros (fornecedores, prestadores de serviço, agentes intermediários e associados); gastos do partido considerados de maior vulnerabilidade quanto às irregularidades; e recebimento de doações de alto valor.
Em caso de denúncia por falta de efetividade ou inexistência de programa de integridade, poderá ser ajuizada representação eleitoral para apuração, podendo resultar na pena de suspensão do recebimento do fundo partidário pelo período até 12 meses à agremiação infratora.
Embora em um primeiro momento as regras possam “assustar” os representantes das agremiações para se adequarem a esta nova realidade, se bem aplicadas, representarão um resultado mais positivo, como a redução – e, em longo prazo, a expurgação – de riscos e de práticas ilícitas e corruptas intrapartidárias; o aumento de filiados, eleitores e recursos econômicos, em razão do cumprimento de padrões éticos e transparentes pelo partido, que é tão exigido pela população; a redução de custos desnecessários, por meio de revisão de procedimentos internos, entre outros.
Tudo isso sem mencionar que ao agir com maior transparência e ética, os partidos políticos, em contrapartida, também podem se proteger de responsabilidades eventualmente impostas pelo Poder Judiciário e demais órgãos de controle, desde que demonstrem o efetivo cumprimento do programa de integridade.
Nesse passo, vemos que o compliance se apresenta no âmbito partidário como uma prática em que todos ganham, já que além de servir como uma ferramenta de controle bastante segura, transparente e eficaz na mitigação de riscos, também garante a proteção do partido político como um todo, e traz mais moralidade ao processo eleitoral ao prever e garantir o controle tanto dos nossos recursos públicos, como dos padrões éticos das agremiações partidárias, que simbolizam a escolha do povo ao eleger seus representantes.

*advogados de Vilela, Silva Gomes e Miranda Advogados.

Autor: Congresso em Foco