O que o teatro musicado, a riqueza no
mundo e o Brasil têm em comum? Acertou quem disse que os três se baseiam em um
sistema de concentração de renda. Primo rico do gênero teatral, o musical
tornou-se uma eficaz máquina captadora de recursos das artes cênicas. Nos
últimos quatro anos, 30 empresas captaram 202 milhões de reais, dos quais 200
milhões se concentraram em produções em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Levantamento no Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura feito por CartaCapital revela
que 160 projetos tiveram autorização para captação, dentro do período de
execução de 2016 a 2019. Desses, só 48 conseguiram sair do zero.
Essa desigualdade é colossal entre as
campeãs. De cada 4 reais captados pela Lei Rouanet, três acabaram nos cofres de
quatro empresas que arrecadaram junto à iniciativa privada 149 milhões de
reais. A T4F é a número 1, captando 78 milhões. A empresa produziu os
musicais Les Misérables, O Fantasma da Ópera, Mudança de Hábito, Wicked, Antes
Tarde do Que Nunca e 2 Filhos de Francisco. Em seguida, três empresas
disputam um distante segundo lugar: a Atelier de Cultura (captou 34 milhões de
reais), que trouxe Billy Elliot, O Homem de La Mancha, Annie e A
Noviça Rebelde, a IMM Live (23 milhões de reais), que produziu A Pequena
Sereia, Cantando na Chuva e Sunset Boulevard, e a Musickeria (15
milhões de reais), com a série de espetáculos Bem Sertanejo.
Com exceção de 2 Filhos de
Francisco e Bem Sertanejo, essas peças são produtos made in Broadway,
de Nova York, ou West End, de Londres, as duas capitais mundiais do teatro
musicado. O Brasil que concentra renda descobriu que copiar os passos de
americanos e ingleses nos musicais é fórmula certa para gerar riqueza. Para
poucos. O público, que pode pagar ingressos de até 300 reais (plateia vip
de O Fantasma da Ópera, no Teatro Renault), aprecia musicais que, de fato,
se tornaram produções de qualidade e vistosas. Para as empresas patrocinadoras,
virou uma ação eficiente de marketing.
Billy Elliot, de Stephen Daldry e músicas de Elton John é o musical mais premiado nos EUA, com dez Tony, captou 6,8 milhões de reais. Foto de João Caldas F.
“Empresas de São Paulo e do Rio gostam
muito de investir em teatro musical porque ao receberem a cota de ingressos
gratuitos podem desenvolver uma política para seus colaboradores ou clientes,
oferecendo a eles uma experiência gratificante”, explica o produtor Carlos
Cavalcanti, responsável pela montagem de Billy Elliot no Brasil.
Depois de mais de dois anos de negociação, foram licenciados o texto, a
coreografia de Peter Darling e as canções de Elton John. Recordista em
premiações com dez Tony Awards (entregue em Nova York) e cinco Olivier Awards
(Londres), o musical conta a história de um menino que decide ser bailarino,
rompendo o ciclo natural da família, composta de pai e irmão mineiros, em meio
a uma greve que opõe trabalhadores e o governo de Margaret Thatcher. A
história, que virou filme, ficou mais de dez anos em cartaz.
A montagem brasileira (em cartaz no
Teatro Alfa, em São Paulo, até 30 de junho) conseguiu captar 6,8 milhões de
reais dos 16,7 milhões solicitados. Cavalcanti afirma que a Atelier de Cultura,
como outras produtoras de grandes espetáculos, costuma bater nas portas de
dezenas ou centenas de empresas, mas apenas quatro ou cinco decidem investir
recursos. Segundo ele, o teatro musicado pôde profissionalizar-se graças ao uso
da lei de incentivo. Quando se tentou montar Les Misérables, musical baseado
no épico de Victor Hugo, nos anos 2000, não havia atores preparados. “Hoje se
faz uma grande produção, porque têm elenco, coreógrafos e figurinistas,
técnicos que sabem montar equipamentos de som, de luz, de projeção. Enfim,
criou-se uma cadeia produtiva.”
Para o diretor-artístico americano
Fred Hanson, que já montou musicais em Nova York como The Phantom of the
Opera, Miss Saigon e Les Misérables, e agora está à frente do
espetáculo Sunset Boulevard (no Teatro Santander, em São Paulo, até 7 de
julho), os espetáculos que vêm de fora encantam pela música, pelos cenários
grandiosos e pelas histórias que prendem a atenção. A superprodução Sunset
Boulevard narra à história de Norma Desmond, uma atriz decadente do cinema mudo
(interpretada pela atriz Marisa Orth, em grande forma) que vive em um mundo
particular com o sonho de voltar ao estrelato. A IMM Live captou 4,7 milhões de
reais. “Essas produções, embora não tenham origem no Brasil, se expandiram e
levaram ao surgimento de peças nacionais, com conteúdo nacional”, afirma
Hanson.
Produtora de montagens musicais sobre
as biografias de artistas como Tim Maia, Cazuza, Cássia Eller, Wilson Simonal e
Elis Regina, Joana Motta produziu O Frenético Dancing Days, espetáculo
nacional da nova safra de montagens do teatro musicado em São Paulo. A peça, no
estilo jukebox, apresenta a história da danceteria carioca que teve quatro
meses de vida, lançou o grupo Frenéticas e virou tema de novela da Globo.
Escrito pelo pai de Joana, o jornalista Nelson Motta, um dos sócios da casa, e
por Patrícia Andrade, o musical possui uma dramaturgia desprovida de grandes
pretensões além do de animar a plateia que vai ao Teatro Opus para, afinal,
ouvir canções dos anos 1970. Desde que a peça estreou no Rio, a produção captou
2,8 milhões de reais de 8,3 milhões solicitados. “Não dá para entrar na
estrutura dos peixes grandes sem o dinheiro dos peixes grandes”, explica a
produtora.
Aparecida, escrita por Walcyr
Carrasco, leva ao palco do Teatro Bradesco (até 21 de abril) 33 artistas e 12 músicos
para contar a história da padroeira do Brasil. O musical é um caso singular
pela temática religiosa, não muito comum ao gênero, mas se assemelha a outras
produções nas quais os atores precisam revelar apurada capacidade para dançar,
cantar e interpretar. São executadas 19 canções originais. Fernanda Chamma, que
dirige e coreografa o espetáculo, é uma bailarina com formação na Broadway,
onde aprendeu a seguir “a Bíblia”, como é chamado o roteiro técnico
pormenorizado das peças. “O teatro musicado não permite o improviso. Se o ator
não seguir as marcações, pode ter um cenário descendo em cima de sua cabeça”,
diz.
A TV Cultura deve estrear em 7 de
abril um reality show que simula uma seleção de elenco para um musical. Houve
mais de 1.250 inscritos para o programa O Musical, a grande maioria jovem
e talentosa. No primeiro dia de pré-seleção, só 11 candidatos foram eliminados.
Muitos cantores que hoje fazem parte dos musicais vieram da ópera, que já não
atrai ou emprega tantos profissionais do canto. “O teatro musicado está
produzindo, as casas estão lotadas, tanto para os espetáculos de franchising
quanto para os de conteúdo nacional. Qual outro gênero consegue atrair tanto
público jovem?”, questiona o diretor José Roberto Walker.
Estudiosa da interseção do teatro, da
história e da polícia, Kátia Paranhos, da Universidade Federal de Uberlândia,
lembra que o teatro musicado existe desde o fim do século XIX e início do XX no
Brasil, e que naquela época já era visto com desdém pelos críticos, mas adorado
pelo público. Nos anos 1950, títulos internacionais como My Fair Laid ainda
eram minoria diante das produções brasileiras. Nas décadas seguintes, autores
como Augusto Boal (Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes), Gianfrancesco
Guarnieri (Botequim) e Chico Buarque (Roda Viva, Calabar e A Ópera do Malandro)
introduziram temas mais áridos, uma tendência que foi se dissipando até chegar aos
anos 2000, quando os espetáculos da Broadway se impuseram. “De olho nas classes
média e média alta, não há mais um convite à reflexão, mas à diversão. Quanto
mais contente o público sai do teatro, melhor”, explica a professora.
Autor:
Eduardo Nunomura – Carta Capital
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