Seguidores

1 de abril de 2019

Da arte de mentir de verdade!

O presidente Bolsonaro mandou "comemorar" os 55 anos da ditadura militar. Depois disse que o objetivo não era "comemorar", mas "rememorar" o evento. O ministro do STF Marco Aurélio Mello, aconselhou que se fizessem eventos "em memória" da redentora. Na sexta-feira, entra em cena uma juíza federal de Brasília e proíbe que a ordem de Bolsonaro seja cumprida, sob-risco de afronta à memória e à verdade. Para o capitão da reserva, não houve ditadura, a despeito do país ter vivido 21 anos sem eleição direta para presidente. Atravessamos o período com perseguições políticas, cassações, tortura praticada pelo Estado e censura à imprensa, à música, ao teatro.
Nenhum dos presidentes militares negou ser ditador. Entrou para a história o diálogo gravado entre o ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, e o presidente Artur da Costa e Silva, no dia da edição do AI-5. O Congresso foi colocado em recesso, aboliram o habeas-corpus e foram extintos os partidos políticos. "Sei que a Vossa Excelência repugna, como a mim, enveredar pelo caminho da ditadura pura e simples" - disse Passarinho, para, em seguida, mandar "Às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos da consciência".
Debatemos, agora, se houve ditadura no Brasil. Se vacinas são mesmo saudáveis. Se a goiabada cascão existe. Até se a terra é realmente elipsoide. Meu pai morreu achando que o homem na Lua era truque dos americanos. Prova cabal: eles desceram na Lua, e nela, conforme sabemos, não se desce, sobe-se. Ela está no céu, acima de nós.
Entramos na era da pós-verdade, aquela em que os fatos objetivos têm menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais. Algo que aparenta ser verdade é mais importante que a própria verdade. O mundo digital ampliou por mil a Esfera Pública, que é onde se dá o debate a respeito das coisas de interesse comum.
Melhor seria, hoje, comemorar a mentira, já que estamos na véspera do 1º de abril. Dizendo melhor: a arte de mentir de verdade. Esta, não causa celeuma. O poeta gaúcho Mário Quintana minimizava a mentira, por ser, "uma verdade que esqueceu de acontecer". Certa vez, perguntaram ao escritor satírico anglo-irlandês Jonathan Swift (1733), se a verdade não seria a melhor maneira de combater a mentira? Resposta: "A maneira mais apropriada e eficaz de destruir uma mentira é contar outra".
Escrevendo para os jornais, em 1898, Olavo Bilac cravava: "Para ser político, é preciso ante de tudo ter força de saber mentir e transigir. Diante do eleitorado, que poderia eu dizer? A verdade? Mas o eleitorado, aceso em justa cólera, me correria às pedradas". O eleitor gosta mesmo de ouvir mentiras, embora os jornais, segundo Bilac, prefiram contar verdades. Afinal, para ele, a imprensa era um bem comum, cuja prática tinha de ser transparente.
Mudaram os tempos, ampliaram-se os meios de comunicação, mas as mentiras e os políticos não ganharam rugas. O político passou de notável a notório. E essa notoriedade conduziu ao contato com o povo, ao corpo a corpo e à promessa - ou mentira - jamais cumprida. Bastam poucas palavras num tuite, fora de contexto. A mentira diária dos políticos bombardeia os potenciais eleitores. E estes, ao contrário de "corrê-los a pedradas", fingem que acreditam.
A mentira, durante oito séculos objeto de anátemas bíblicos e de severos ataques de todos os lados, é hoje considerada um "mal necessário" e como tal apreciada e até cultivada como estratégia para sobreviver numa sociedade na qual, de acordo com os versos de Ariosto: "não se vive sempre entre amigos". Contrasta com a linha de origem Iluminista da "transparência", tão presente na nossa Constituição.
O problema está em que, na sociedade moderna, somos invadidos por uma superabundância de notícias. A informação contínua nas redes é fragmentada. Serve para difundir uma verdade superficial que esconde a essência das coisas. Poucos se dispõem a ler os "textões". Deste modo, por trás do direito de informar, pode se esconder uma estratégia de controle da informação.
O escritor russo Anton Tchékov, admitia que seja possível mentir no amor, na política, na medicina; é possível enganar as pessoas e até mesmo Deus. O único refúgio da verdade está na arte. Nela, o artista busca a verdade pessoal. Para Tchékov, a literatura é uma ronda em torno da verdade. Essa busca pode estar fadada ao fracasso, mas sempre sobra um resto de verdade. Muito a propósito, ele dizia escrever para si mesmo.

Autor: Zarcillo Barbosa - Jornalista - Publicado no Jornal da Cidade - Bauru

Nenhum comentário: