A
reclusão do presidente contrasta com seu ativismo digital, mina sua credibilidade
como futuro líder da oposição e deve entravar persistência do bolsonarismo.
Foto: Andressa Anholete - Getty Images
Em pleno
processo de transição de governo, o silêncio do presidente Jair Bolsonaro (PL)
diz mais que sua usual atitude estridente nas redes sociais. Esquivar-se de
assumir a derrota por meio de uma estratégia de reclusão, contrastante com seu
intenso ativismo digital dos últimos tempos, não soa como um cálculo político
racional.
Bolsonaro
perde mais do que ganha com esse comportamento.
Em suas
raras aparições públicas desde a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas
urnas, o atual chefe do Executivo cuidou de ser evasivo o suficiente para não
desmobilizar os recentes atos que contestam o resultado das eleições e atacam a
democracia – como o bloqueio das estradas e os movimentos violentos em
Brasília, ocorridos durante a diplomação de Lula e seu vice, Geraldo Alckmin
(PSB). Esse
parece ser seu objetivo central até o momento. Nas poucas palavras que
proferiu, nenhuma menção direta ao reconhecimento de sua derrota nas eleições,
ao processo de transição de governo e às expectativas sobre seu desempenho para
montar uma oposição articulada.
Enquanto
Bolsonaro permanece calado, o processo de transição segue seu rito. E sem
poupar críticas e apontar falhas da administração atual. Lula foi enfático
quanto a isso: "nós teremos uma radiografia perfeita do estrago que foi
feito nesse país", afirmou, durante cerimônia de encerramento dos
trabalhos dos grupos técnicos do gabinete de transição, no último dia 13.
Em meio a
discussões sobre o "revogaço" [a anulação de medidas do governo
Bolsonaro já no início de 2023] e a PEC da Transição, Bolsonaro não se mostra
disposto a romper o silêncio nem mesmo para defender as escolhas de sua
administração, reivindicar créditos de seu governo ou dirigir críticas às mudanças
significativas que o novo governo já sinaliza.
Se o
atual presidente não esboça qualquer reação, é difícil presumir que tenha uma
atitude proativa e seja capaz de conduzir a articulação de contraponto ao
futuro governo Lula no Congresso. Apoiadores de Bolsonaro, inclusive dentro do PL,
seu partido atual, se mostram reticentes quanto à sua capacidade de liderar uma
oposição articulada.
As
questões que emergem dessa estratégia do silêncio geram impactos no ambiente
político a partir de 2023, tanto no que se refere à configuração do bloco
oposicionista ao novo governo quanto ao futuro do bolsonarismo. Diante
disso, como será o amanhã de Bolsonaro após a virada do ano de 2022? A chama do
bolsonarismo permanecerá acesa, ecoando um movimento persistente, ou a fragilidade
política de seu líder tende a desmobilizar esses atos?
Perfil
político frágil de Bolsonaro
Até o
momento, as atitudes do presidente em exercício demonstram incapacidade de ir
além do papel de líder personalista, estando ou não à frente do governo. Esse
comportamento tende a reiterar um perfil político frágil, que vem se desenhando
ao longo de sua trajetória política.
Nos 27
anos de mandato como deputado federal, Bolsonaro nunca exerceu cargo de
liderança e figurou como um parlamentar do baixo clero por todo o período. Ao
chegar à Presidência da República, apresentou mais do mesmo: revelou-se um
presidente fraco, a despeito de estar inserido em um sistema que confere amplos
poderes institucionais ao chefe do Executivo. Por não
conseguir ocupar a posição de ator pivotal que o cargo de chefe do Executivo
lhe confere, Bolsonaro deixou escapar oportunidades de atuar como uma real
liderança política e decretou sua derrota na sucessão presidencial. Estreou a
posição de primeiro presidente da Nova República brasileira que não alcançou a
reeleição. Revelou-se limitado ao papel de governante incidental nos termos do conceito desenvolvido pelo cientista político Sérgio Abranches.
Foto: Ueslei Marcelino - REUTERS
Assim
como outros exemplos de líderes incidentais pelo mundo afora (Trump é paradigmático
nesse sentido), Bolsonaro tentou simular uma instabilidade eleitoral,
questionando a segurança das urnas eletrônicas já no pleito de 2018, quando
precisou concorrer em 2º turno e saiu vitorioso.
Ou seja,
chegou ao poder por circunstâncias excepcionais, dado o clima político gerado
pelo processo de impeachment de Dilma Rousseff, e ciente de que permanecer na
cadeira de presidente por meio de uma reeleição não seria possível sem que
fosse forjado um novo ambiente de fatores que induzissem a uma
excepcionalidade.
Os planos
de Bolsonaro foram frustrados. A despeito de seu caráter beligerante frente às
instituições democráticas brasileiras, o sistema eleitoral do país se mostra
crível e solidificado perante os próprios eleitores e elites políticas. Evidentemente,
um governo incidental não sai de cena sem deixar marcas. As manifestações de
apoiadores extremistas do presidente em exercício, que transformaram Brasília
em palco de violência e desordem nessa semana, destacam uma faceta ignóbil
desse legado.
A
estratégia silenciosa de Bolsonaro diante desses eventos ecoa alto. Fica
evidenciada a tática de inflamar o extremismo e impor dificuldades tanto ao
processo de transição quanto à posse de um governo eleito pela via democrática. Mas não
parece vislumbrar o outro lado da moeda. O comportamento do presidente
derrotado representa uma escolha que tem impactos nada triviais em seu futuro
político.
Bolsonaro
parece desconhecer o uso estratégico que poderia fazer do capital político que
conquistou nas urnas, não apenas quanto à sua expressiva votação, como também
no que se refere aos ex-ministros e apoiadores de seu governo eleitos no último
pleito.
Pouca
credibilidade como liderança de oposição
Após sua
derrota nas urnas, restaram-lhe dois caminhos, que em nada se assemelham a uma
escolha trágica: estabelecer uma perspectiva mais consistente para liderar as
oposições ao novo governo, reconhecendo que democracias requerem um ganhador e
um perdedor; ou traçar um caminho de volta às suas origens, retomando o estilo
de liderança radicalizado e direcionado às suas bases mais extremistas, com
discursos estridentes pela via das redes sociais e insuficientes para uma
articulação com o Congresso.
Ao que
tudo indica, pelo menos até o momento, o futuro político de Bolsonaro tende a
se manter limitado à segunda opção. A escolha por esse perfil de liderança
revela uma ambiguidade: ao mesmo tempo em que impõe arranhões à democracia,
expõe ainda mais sua vulnerabilidade como um ator político apto a articulações
viáveis.
É cada
vez menos crível sua capacidade de se assumir como uma liderança de oposição.
E, se tudo permanecer assim, o bolsonarismo enfrentará dificuldades para se
manter como um movimento persistente, sucumbindo à própria fragilidade que seu
líder tem demonstrado ao longo de sua trajetória política.
Autora: Alessandra Costa – Coluna Planaltices –
é mestre e doutora em Ciência Política pela UFMG, jornalista e pesquisadora do
PEX (CEL-UFMG) - Publicado no DW.