As novas extremas direita na América Latina são peculiares, mas profundamente arraigadas em nossas sociedades - Reprodução.
Estamos
num momento de perplexidades, onde o fato não é o fato e a versão se dá ao luxo
de tentar subverter o fato. Choque de narrativas, pensamento “essencialista”,
desinformação em massa e um conjunto de forças em todos os países
ocidentalizados jogando muito forte para deixar os demais incapazes de alguma
reação. Especificamente na América Latina, há um conluio de capital financeiro,
reserva eleitoral (que vai de 25% a 40% do conjunto do eleitorado), setores
importantes de corporações de Estado (como nos aparelhos judiciário,
correcional, repressivo e militar) e uma capilaridade “nunca antes vista”
através da conjunção de dois blocos de manipulação: a “fusão” ou zonas de
encontro entre redes sociais (e Deep Web) e a pregação das mais distintas
vertentes do neopentecostalismo (disfarçado, de discurso lavado como “cristianismo”
evangélico). Ao fim e ao cabo, ajuda a tornar mais nítida a fronteira da
canalhice, quando o sionismo pentecostal (profanamente chamado de “cristão”) se
espelha no Estado sionista na Palestina Ocupada. As novas extremas direita na
América Latina são peculiares, mas profundamente arraigadas em nossas
sociedades.
Embora a
maior parte destas frações de classe dominante e elites dirigentes já existiam
na época da bipolaridade do Século XX (de 1945 a 1991), temos singularidades
deste século. Por um lado, as esquerdas, o campo nacional popular e mesmo a
defesa do desenvolvimento econômico de um capitalismo semi autônomo estão muito
mais recuadas do que na etapa da Guerra Fria ou mesmo se comparadas a primeira
década e meia deste corrente século. Porque recuamos tanto? Quem recuou tanto?
Quem avançou mais?
O
movimento é uma versão popular de ciclo e anti-ciclo. O anti-ciclo aplicado pelas
políticas econômicas – com garantia de políticas sociais e alguma demanda
efetiva mantidas pelas ações de Estado – é seguido de reação virulenta
(estúpida mesmo) e multifacetada. Por esta “narrativa” todos os governos de
centro-esquerda são “corruptos” e toda iniciativa de economia com algum grau de
nacionalização é “capitalismo de compadrio”. O inverso não é verdadeiro. Não há
polarização efetiva. A direita foi para a extrema direita e a esquerda se
assume centro-esquerda e a média, quando muito, não passa de social-democracia
e sem sindicalização em massa com reserva eleitoral da força de trabalho (como
na Europa de pós-Guerra). Assim fica difícil.
As três
etapas do imperialismo projetado na América Latina no século XXI
Ainda que
não possamos afirmar com todas as letras que há 100% de semelhança em todos os
países da América Latina, podemos ver, ler, observar, notar, traços comuns na
etapa posterior ao grande boom econômico do Continente. Após duas décadas
perdidas (a de 1980 e a de 1990) e depois da aplicação de maneira avassaladora do
famigerado Consenso de Washington, nossos países tiveram ao menos uma década e
meia de respiro, principalmente impulsionada pelo boom das commodities
internacionais devido ao crescimento da China, Índia e do eixo da economia
asiática.
O
primeiro golpe da era “moderna” do século XXI ainda era vinculado a etapa
anterior, sendo o intento de mudança de regime manipulado pelos aparatos de TV,
em abril de 2002 na Venezuela. A aventura gusana, escuálida, miamera e
midiática durou três dias. Onze anos depois a situação no país de Hugo Chávez
ficou bem mais complicada. Apesar de intentos seguidos na Bolívia (como os de
setembro de 2008) passando por puebladas e vitórias históricas no Equador e
outros países hermanos, a era contemporânea, de Lawfare e reação oligárquica
com algum farejo de legalidade veio ao final da primeira década.
Em junho
de 2009 com o vitorioso golpe de Estado em Honduras contra o presidente Manuel
Zelaya Rosales. A atual presidenta hondurenha, a senhora Xiomara Castro, era a
primeira dama quando do golpe e toda a oposição e os movimentos populares da
terra do cacique Lempira tiveram de sobreviver dentro das margens de “terra
arrasada”. Obama inaugura a versão pós-moderna da mesma estratégia da contra
revolução bancada por Reagan, CIA e narcotráfico na década de 1980 na América
Central.
A
proposta elaborada pelo Departamento de Estado e o Departamento de Justiça do
Império tinha um nome “agradável”. Depois da Aliança para o Progresso das
décadas de 1950 e 1960, passando pela antipática “Guerra contra as Drogas”, o
primeiro presidente afro-americano da história dos EUA lança o “Projeto Pontes”
(em português mesmo). A meta. Ganhar corações, mentes e orçamentos das carreiras
judiciárias e afins, capturar os jovens yuppies do serviço público, imitando
personagens das séries policiais e judiciais dos EUA, de gente que cresceu
vendo filme enlatado, não mais nos rolos que eram mandados para embaixadas e
consulados, mas sim por canais de televisões por assinatura que poluem o
audiovisual latino-americano. Arvorados de “justiceiros”, o arrivismo de toga,
terno e gravata se baseava no FCPA (Ato administrativo do governo dos EUA
contra alegadas práticas de corrupção fora do território estadunidense) e se
dedicou a destruir economias ou a judicializar políticas econômicas distantes
do neoliberalismo.
Tentando
periodizar o imperialismo moderno, podemos marcar três momentos de projeção de
poder dos Estados Unidos sobre a América Latina no século XXI. Primeiro, na
esteira do NAFTA, a tentativa da ALCA – devidamente derrotada a partir da IV
Cumbre de las Américas, em novembro de 2005, realizada em Mar del Plata,
Argentina. A segunda etapa forneceu uma vitória para os gringos, criando
relações permanentes em carreiras de Estado, formalizando as operações de
Lawfare e a tirania do direito comum de “livre interpretação” de magistrados e
procuradores. Como afirmou Deltan Dallagnol – ex-procurador da república e hoje
deputado federal CASSADO embora eleito pelo Podemos do Paraná -, “não temos
provas, mas temos convicções”.
O
terceiro momento advêm com a vitória de Trump nos Estados Unidos. A partir
deste momento, o espelhamento da extrema direita estadunidense com as
latino-americanas fica muito mais evidente. A integração subordinada ao capital
financeiro, inútil parasita e especulativo segue sendo uma ampliação dos anos
1990 e da versão mais perigosa da ALCA. As operações de Lawfare estão ainda
muito vivas, tomando como exemplo o que ocorre na Argentina e o risco de
criminalizar tanto a política econômica como as candidaturas políticas.
Concomitante com isso, a tragédia de termos uma capilaridade da extrema direita
na base das sociedades latino-americanas, em especial pela mescla rara de
comportamento conservador e manipulação social dos neopentecostais, através das
empresas dedicadas a angariar fundos através da fé alheia.
Depois da
eleição de Trump sofremos a pandemia, a desinformação, no caso brasileiro o
crime sanitário como estratégia de dominação e outras desgraças. Com o conflito
russo-ucraniano, a pressão sobre os preços do agro e do comércio primário
internacional cresceu mais ainda. Para entrar neste debate específico
precisamos de outro texto, mas vale ressaltar que quanto maior a fragilidade de
nossos países e a perda de capacidades de resposta do movimento popular,
ampliam as carências e a proporção de criar distopias por parte da direita
contemporânea.
O
comércio inter-regional, desdolarização e a frente interna
O
vice-presidente eleito junto a Lula para o 3o mandato afirmou no dia 15 de maio
algo que a “globalização capitalista” não solucionou e pelo visto nem vai
avançar tanto. Disse Geraldo Alckmin: “Embora o mundo seja globalizado, o
comércio é intrarregional. Canadá México e EUA, 50% do comércio é entre eles; a
União Europeia, 60%; Ásia, 70%; na América Latina é 26%. Nós temos que começar
pelos vizinhos”.
Desta
forma, as relações bilaterais ou regionais são o centro dos espaços econômicos,
se não autárquicos, ao menos semiexclusivos. Os processos produtivos e as
cadeias de valor estão mais que trans nacionalizadas, assim como os controles
sobre as empresas, quase todos financeirizado ou com participação importante de
fundos de investimento (aplicações seria o nome correto) e operações tendo a
frente o capital fictício. Qualquer semelhança com a quebra mais que suspeita
das Lojas Americanas ou o pedido de recuperação judicial da Light
(concessionária de energia do Rio de Janeiro) não são nenhuma coincidência.
E qual a
moeda operante na maior parte das transações dentro dos grupos econômicos, de
exportação e importação e incidindo da formação final de preços? O dólar
estadunidense. Logo, todos os países latino-americanos necessitam um estoque de
reservas, um colchão de divisas internacionais para evitar um ataque
especulativo ou fuga de capitais. Quando ocorre uma intempérie, como a seca da
Argentina em 2023, o ingresso de dólares diminui e a inflação (porque os preços
estão dolarizados, em especial o dos alimentos e a cadeia de insumos) aumenta.
Como
evitar este tipo de exposição? Um passo importante é retomar as capacidades de
exercício de política econômica por parte dos governos nacionais. Outro passo
importante é buscar saídas regionais, onde o comércio e a integração de cadeias
entre nossos países não sejam atravessados pelo dólar e nem seja necessária a
implantação de uma rígida política de controle cambial. O terceiro é buscar
operar fora do dólar, como os esforços que já estão ocorrendo tanto em nível
bilateral (ex: Argentina e China) como no âmbito regional (nas linhas de
crédito e projetos do Banco dos BRICS, o NDB, para a América Latina).
Considerando
que todos os passos podem ser dados simultaneamente, e sabendo que o PIB dos
BRICS já é maior do que o do G7, onde está o problema? A veia aberta latino-americana
segue sendo a frente interna. Tanto pelos fatores narrados na primeira parte do
texto, como nas variações do imperialismo descritas no segundo bloco. E a maior
fragilidade da frente interna? É justamente a necessidade de se criar poder
social irredutível, indo além dos acórdãos de governabilidade e da
verticalização da “disciplina” que a centro-esquerda no rumo ao centro sempre
tenta baixar na esquerda em geral e nas bases sociais mobilizáveis e
organizadas em particular.
Não é
pouco operar na frente interna e menos ainda é possível pretender, supor que um
desenvolvimento capitalista latino-americano (o mesmo defendido na Cepal desde
o governo eleito de Getúlio Vargas entre 1951 e 1954) ou um aumento do comércio
intrarregional e industrializante (tal como o Pacto ABC, Argentina, Brasil e
Chile, defendido por Vargas e Perón) vai ser tolerado pelo Departamento de
Estado e o Pentágono. Não importa em quais condições e quem governe nos EUA,
esse tipo de desenvolvimento é intolerável.
Para não
alargar mais o artigo, a outra perplexidade é mesclar o campo nacional e
popular com esse mesmo desenvolvimento capitalista e a confiança em “lideranças
oligárquicas”. Não é tema de manual de sociologia, são interesses
contraditórios e muitas vezes irreconciliáveis. Quando os caudilhos Francisco
Ramírez (de Entre Ríos) e Estanislao López (de Santa Fé) ganharam a guerra
civil interna contra os unitários do Porto, assinaram o Tratado de Pilar (em
fevereiro de 1820), ganharam poder para si e simplesmente abandonaram a Liga
Federal e desconheceram a autoridade do governador da Banda Oriental, José
Gervasio Artigas.
Em todos
os momentos da história de nossos povos, quando massas de originários,
afro-americanos e maiorias latino-americanas estiveram em frentes internas sem
poder de veto, foram (fomos) traídos, ou abandonados, ou derrotados. Não há
estratégia nacional possível sem colocar em primeiro plano a defesa do povo, a
melhora das qualidades materiais de vida e a capacidade de mobilização e tomada
de decisão do movimento popular. Estes são os fundamentos de qualquer projeto
de poder popular e a única forma de manter a pressão sobre os poderes
institucionais.
O jogo
real da política é praticado pela direita. Os oligarcas, parasitas,
exploradores e colonizados foram para a ala extrema do sistema de posições.
Ganharam capilaridade com o neopentecostalismo e o empreendedorismo por
necessidade. Os entreguistas vêm com tropas coloniais (internas e externas) e
estão dispostos a arrasar tudo. Quaisquer semelhanças com os governos de
Honduras após o golpe de junho de 2009 (até janeiro de 2022); de Mauricio Macri
na Argentina (dezembro de 2015 a dezembro de 2019) e o de Jair Bolsonaro no
Brasil (janeiro de 2019 a dezembro de 2022) não são nenhuma coincidência.
Autor:
Bruno Lima Rocha Beaklini – Publicado no Site Brasil de Fato.