Confira
análise das implicações jurídicas e democráticas do Decreto 9.759/2019, medida
anunciada por Bolsonaro que extingue conselhos de participação social.
Desde a promulgação da Constituição
Federal de 1988 (CF/88), dois princípios foram (e são) basilares para a
estruturação do Estado de Direito brasileiro: a cidadania (art. 1,
inc. II) e a participação social no planejamento, na implementação e
no monitoramento da gestão estatal (art. 194, inc. VII, art. 198, inc. III,
art. 204, inc. II, art. 206, inc. VI, entre outros dispositivos
constitucionais).
Estes princípios constitucionais devem
ser lidos como estreitamente vinculados aos objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil, tal como estipulados no artigo 2° da CF/88, dos quais os
de maior interconexão seriam a construção de uma “sociedade livre, justa e
solidária” (inc. I) e a promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (inc. IV).
Depois de mais de duas décadas de um
modelo de gestão estatal centralizador e arbitrário da ditadura militar, a
proposta da Carta Cidadã estava bem definida: estabelecer um sistema descentralizado
de gestão estatal, em que os cidadãos e as cidadãs possam ser acolhidos em
estruturas institucionais que possibilitem o debate entre sujeitos diversos e
divergentes, além do controle permanente dos mecanismos de planejamento,
custeio e intervenção estatal, visando à democratização do Estado e o
fortalecimento da cidadania e da participação social.
Assim, desde a promulgação da CF/88 –
e não desde o ingresso do Partido dos Trabalhadores no governo federal, em 2003
– diversos conselhos de políticas públicas, entre outros órgãos colegiados,
foram criados para assegurar a gestão democrática da máquina estatal, como: o
Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (1991); o Conselho
Nacional de Assistência Social (1993); o Conselho Nacional da Pessoa com
Deficiência (1999); o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável
(2000); o Conselho Nacional do Idoso (2002); e, o Conselho Nacional da
Juventude (2005).
Além disso, houve a remodelação à luz
das normas constitucionais de outros conselhos pré-existentes à Carta Cidadã,
como: o Conselho Nacional de Saúde (existente desde 1937, mas com a estrutura
atual operando desde 1990); o Conselho Nacional de Educação (cujo primeiro
formato é de 1911, e com o modelo atual desde 1995); o Conselho Nacional de
Meio Ambiente (instituído em 1981, e remodelado em 1997); e, o Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher (criado em 1985, e reativado e reestruturado em
1995).
Segundo o Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), que realizou o levantamento do perfil e da atuação
dos membros de muitos destes conselhos de políticas públicas de caráter
nacional, “[o] número de conselhos nacionais aumentou consideravelmente desde o
início da década de 1990. Enquanto, entre 1930 e 1989, foram criados apenas cinco
conselhos nacionais, entre 1990 e 2009, somaram-se a eles mais 26 conselhos,
tendo em vista a difusão da ideia de ampliar a participação no processo de
formulação de políticas públicas pós-CF/1988”.
Há de se destacar, como bem analisa o
IPEA (2013), que muitos destes conselhos foram criados ou reformulados durante
a presidência de políticos de direita, como Fernando Collor de Mello (PRN) e
Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Portanto, na gestão federal de partidos
políticos de direita que assumiram o mandamento constitucional de ampliar a
participação social na gestão estatal, ainda que isto tenha ocorrido com muitas
dificuldades e resistências dos próprios governantes.
Dentro desta nova lógica de atuação
estatal, os conselhos de políticas públicas estão institucionalmente
articulados, ainda que sejam operacionalmente autônomos, às secretarias ou
ministérios criados para execução das políticas públicas e, sobretudo, à
realização, em muitos deles, dos ciclos de conferências nacionais de cada
temática/pasta, período no qual os municípios, os estados, o Distrito Federal e
o governo federal devem avaliar o andamento das políticas públicas e formular
novas formas de atuação do Estado, sempre com base na ampla participação
social.
Com a chegada do governo do presidente
Lula, em 2003, este modelo não foi alterado e sim ampliado para outras
temáticas ou grupos sociais que até o presente momento não tinham
reconhecimento estatal e visibilidade pública de suas demandas, como a
juventude, o idoso, a igualdade racial, os povos indígenas, os povos e
comunidades tradicionais, tráfico de pessoas, entre outros.
E, em 2014, com a edição do Decreto n.
8.243/2014, mais conhecido como Política Nacional de Participação Social,
procurou-se dar organicidade e regulamentação jurídica as formas de
participação social nas estruturas institucionais do Estado, com o objetivo de
fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas “de diálogo e
a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil”,
como estabelece o artigo 1°.
A razão aqui é de ordem qualitativa –
e não quantitativa ou econômica – relacionada à necessidade de ampliação dos
espaços de participação social na esfera estatal para assegurar um maior
alinhamento entre as prioridades da agenda política e a diversidade de
opiniões, interesses e realidades dos sujeitos, sobretudo para reduzir – ainda
que não elimine – as desigualdades de participação entre diferentes os grupos
de interesse, especialmente aqueles historicamente mais vulnerabilizados ou
marginalizados.
Tem-se, ao menos num plano formal e
processual, o indicativo de que o Estado terá melhores condições de atuar em
prol do bem comum concebido de maneira democrática e participativa, controlando
o autoritarismo, o beneficiamento exclusivo de grupos de poder
político-econômico hegemônico e a transparência pública.
No entanto, o que propõe o Decreto n.
9.759/2019, lançado pelo atual presidente da República, Jair Bolsonaro, é o
desmantelamento de toda esta estrutura de participação social na gestão estatal
e, mais do que isso, é a decretação de um ato – por certo, sempre por decreto –
que é inconstitucional e pode representar um crime de abuso de poder e de
atentado à democracia, à cidadania e ao Estado de Direito.
Além disso, desde o plano do direito
internacional, entende-se também pela violação à garantia da progressividade
dos direitos humanos, haja vista tratar-se de ato normativo que gera retrocesso
na moldagem de gestão dos direitos sociais, econômicos e culturais no Brasil.
Segundo informado na imprensa por
membros do governo federal, o referido Decreto faz parte do pacote de
austeridade da máquina estatal e da pretensão governamental de acabar com os
“resquícios de administrações petistas, com visões distorcidas e viés
ideológicos, que não representam a totalidade da sociedade”, informou Onyx
Lorenzoni, Chefe da Casa Civil.
O primeiro equívoco do governo federal
está em avaliar os benefícios desta medida pelo viés econômico e reduzir a
estruturação da participação social na gestão estatal como um “legado
indesejado dos governos petistas”.
Por um lado, qualquer justificativa de
redução de gastos da maquina estatal com a extinção dos órgãos colegiados,
especialmente dos conselhos de políticas públicas, é menos relevante do que o
impacto que a medida terá na qualidade da própria gestão estatal, a qual
passará a ser mais centralizadora (e autoritária) e com reduzida capacidade de
participação da sociedade civil.
Por outro lado, o histórico dos
conselhos de políticas públicas demonstra que eles são um legado de vários
governos, de diferentes bandeiras político-ideológicas, anteriores aos regidos
pelo Partido dos Trabalhadores, fruto, sobretudo, dos avanços jurídicos e
democráticos advindos com a promulgação da CF/88.
Em segundo lugar, o Decreto n.
9.759/2019 viola as garantias de cidadania e participação social definidas na
CF/88, e que poderia ser classificado como um crime de responsabilidade do
presidente da República por atentar contra a Constituição Federal, tal como
definido no artigo 85 da Carta Cidadã, especificamente na produção de ato (o
Decreto) que contraria “o exercício dos direitos políticos, individuais e
sociais” (inc. III).
Além disso, o efeito
prático-institucional do Decreto acarretaria um retrocesso na gestão democrática
das políticas públicas, construído ao longo das últimas três décadas, o que
fere o princípio da progressividade dos direitos humanos, estabelecido no
artigo 26 da Convenção Americana dos Direitos Humanos, no artigo 2° do Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, entre outros
documentos do direito internacional.
Para além dos aspectos normativos que
o Decreto afeta, em termos institucionais a irresponsabilidade do ato
presidencial também será sentida, caso perdure. Inúmeros órgãos colegiados
foram ou serão suprimidos sem consulta à sociedade e sem considerar o
planejamento que já estavam realizando, inclusive com reuniões agendas, com
passagens e diárias emitidas. No caso dos conselhos de políticas públicas,
vários deles estão atuando para a garantia da implementação de políticas,
programas, planos e projetos de grande relevância para a sociedade, em especial
à população mais vulnerabilizada.
Um exemplo é o Conselho Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (CONATRAP), que desde o ano passado está
envidando esforços para assegurar a implantação das medidas previstas no III
Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Decreto n. 9.440/2018) e
na Lei de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Lei n. 13.344/2016).
Isto sem contar o efeito colateral que
esta medida terá nas gestões públicas dos estados, Distrito Federal e
municípios, caso seus governantes sigam a mesma linha adotada pelo governo
federal. Esta “onda antidemocrática” pode ser mais influente nos locais governados
por políticos alinhados política e ideologicamente com o governo federal, como
os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, além de inúmeros
municípios brasileiros.
Um dado crucial da irresponsabilidade
administrativa com a emissão deste Decreto é o seu artigo 8°, em que define que
“[o]s órgãos e as entidades da administração pública federal direta, autárquica
e fundacional encaminharão a relação dos colegiados que presidam, coordenem ou
de que participem à Casa Civil da Presidência da República até 28 de maio de
2019.” Em outras palavras, a administração pública decreta um ato normativo de
extinção de órgãos colegiados sem saber ao certo quantos serão extintos, e define
um prazo para que cada órgão encaminhe a listagem.
Além disso, no artigo 4°, parágrafo
único, estabelece que as reuniões dos órgãos colegiados devem durar no máximo
duas horas, sendo que passando deste tempo deve ser “especificado um período
máximo de duas horas no qual poderão ocorrer as votações.” Assim, um regime de
disciplina militar passa a pairar sob a gestão dos órgãos colegiados que
sobreviverem ou forem criados após este Decreto, em que a única certeza é que a
participação social está impedida e a democracia ainda mais fragilizada.
Por certo, a extinção dos órgãos
colegiados não é imediata, mas está prevista para ocorrer a partir de 28 de
junho de 2019 (art. 5°). Até lá, todos os órgãos colegiados terão “um prazo de
60 dias para justificar sua existência” [3], conforme afirmou Onyx
Lorenzoni. No entanto, pergunta-se: quais os critérios que o governo federal
adotará para julgar os órgãos colegiados que merecem ou não continuar a
existir? E quem vai participar desta tomada de decisão? Estes critérios e os
sujeitos vinculados a tal tomada de decisão não estão definidos no Decreto, de
modo a tornar ainda mais arbitrário e imprevisível o modo como à medida será
implementada e os efeitos que acarretará à gestão estatal.
Ao que tudo indica, o prazo estipulado
no Decreto é meramente formal, pois a decisão já está tomada, e esta fumaça de
negociação política só reforça o caráter autoritário da atual gestão do governo
federal, a qual, friso, deve ser avaliada de maneira séria, inclusive em
relação ao cometimento de violações à Constituição Federal e à progressividade
dos direitos humanos.
Autor: Assis
da Costa Oliveira é doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade de Brasília. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA). Graduado em Direito pela UFPA.
Professor de Direitos Humanos da Faculdade de Etnodiversidade da UFPA, Campus
de Altamira. Coordenador do Grupo de Trabalho Direitos, Infâncias e Juventudes
do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais. Advogado.
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