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26 de outubro de 2025

A Herança maldita!

  

Arte: Fernando Redondo.

As raízes do esquema bilionário que espoliou aposentados e pensionistas do INSS não se encontram apenas na ação de criminosos, mas no solo fértil de uma desregulamentação progressiva e na omissão estatal. Investigações em curso apontam que mudanças na regulamentação dos Acordos de Cooperação Técnica (ACTs) durante os governos Temer e Bolsonaro criaram o ambiente perfeito para a fraude em escala industrial. O cenário foi armado peça por peça: em 2021, o Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS) revogou a norma que exigia fiscalização rigorosa para novos acordos, cedendo à pressão de associações. Em 2022, o Congresso derrubou um veto presidencial que protegia os beneficiários, permitindo descontos automáticos sem autorização expressa – uma clara violação à proteção de dados. Enquanto servidores denunciavam irregularidades desde 2016 e peritos alertavam a equipe de transição de Bolsonaro em 2018, as falhas foram sistematicamente ignoradas. O resultado foi um crescimento exponencial de ACTs fraudulentos entre 2021 e 2022, abrindo as comportas para o desvio.

Sobre este alicerce de fragilidade normativa e fiscalização deliberadamente insuficiente, ergueu-se uma organização criminosa de sofisticação ímpar, uma máquina de três camadas que operava com a frieza de uma corporação legítima. A camada de captação e fachada era formada por uma constelação de centrais de atendimento, consultorias e associações, muitas criadas com o único propósito de servir ao esquema. Estas entidades atuavam na ponta, utilizando as brechas abertas pela desregulamentação para realizar descontos sem a autorização válida dos titulares.

A viabilidade operacional do esquema dependia da segunda camada: a corrupção e infiltração dentro do próprio INSS. A eficácia da organização residia em sua capacidade de corromper o sistema oficial, garantindo que os descontos fraudulentos fossem processados como se fossem legítimos. A Operação Sem Desconto, que culminou com o afastamento do então presidente do Instituto, Alessandro Stefanutto, e de outros integrantes do alto escalão, expôs que a infiltração não era pontual, mas havia alcançado os níveis decisórios da autarquia.

Finalmente, a terceira camada, de operação e lavagem de capitais, era comandada pelo núcleo central do esquema. Este núcleo era responsável por orquestrar o fluxo dos valores desviados. Os recursos, inicialmente pulverizados pelas entidades de fachada, eram centralizados e submetidos a um complexo processo de lavagem. O objetivo era dissociar o dinheiro de sua origem ilícita, injetando-o no circuito financeiro formal por meio de uma sequência de movimentações bancárias e operações societárias projetadas para ocultar seu rastro. O volume de R$ 6,3 bilhões desviados atesta a escala industrial desta operação.

A prisão de operadores chave, como o lobista Antônio Carlos Camilo Antunes e o empresário Maurício Camisotti, ilustra a extensão da rede. A investigação identificou que Camilo Antunes era sócio de 22 empresas, muitas com características idênticas, configurando um arsenal de sociedades de propósito específico para a "blindagem" dos recursos. Pessoas físicas e jurídicas ligadas a ele receberam R$ 53 milhões diretamente das entidades associativas, valor que representa apenas uma fração dos ganhos ilícitos do conjunto.

O que está em jogo, portanto, é o desmonte de uma estrutura criminosa verticalizada que se aproveitou de portas abertas pelo poder público. As ações de responsabilização movidas pela AGU e o trabalho da PF são fundamentais não apenas para identificar os operadores, mas para expor a cadeia de omissões e decisões políticas que transformaram um instrumento de cooperação técnica em uma ferramenta de espoliação em massa. A devolução dos valores aos aposentados é uma reparação necessária, mas insuficiente sem a responsabilização integral de todos os envolvidos, dos que executaram nos bastidores aos que, nos gabinetes, desmontaram as proteções que deveriam salvaguardar o cidadão. 

Autor: Fernando Redondo / Jornalismo Independente.

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