Melina Fachin e seu pai, Edson Fachin. Foto Reprodução
Esta coluna — recheada de humor, sarcasmo e ironia — vai em homenagem e desagravo à professora Melina Fachin, covardemente atacada dias atrás por destro-extremistas-apoiadores de golpistas que, além de misoginia verbal, agiram com violência contra mulheres e instituições — tudo a pretexto da “liberdade de expressão” e ataques ao Supremo Tribunal Federal. Além do que ocorreu na rua em frente à universidade, (Melina levou uma cusparada), chamou a atenção o conjunto de gritos, ofensas e ameaças (invocando inclusive o pai da professora, ministro do STF), algo como “vocês vão ver; vamos pegá-los; nos aguardem” e coisas desse tipo ou piores — e, estranhamente, depois da violência e ameaças verbais, encerraram com o coro de “anistia já” — afinal, a anistia “busca a paz”, certo — sic.
Impressiona que isso ocorra no curso de direito — sim, direito. A comunidade jurídica parece ter fracassado. A democracia é atacada em nome da própria democracia. Tentaram um golpe de Estado. Foram condenados. E tem gente — do direito — que acha que golpe de Estado é direito fundamental! Fossem médicos, fariam passeatas contra antibióticos. Triste.
A tese é: me anistia para eu te pegar!
Eis a paz buscada. Viu-se.
Pois bem. Em tempos de ode ao golpismo, em que,
– Em nome da democracia, prega-se a sua extinção e
– Depois, em nome da mesma democracia, pede-se anistia,
– Fiz uma pesquisa para saber o que os filósofos e literatos poderiam dizer sobre os golpistas brasileiros, que vão de deputados amotinados, senadores que pedem impeachment de ministros do STF, cantores sertanejos, pastores “emPIXados” até motoristas e fazendeiros, passando por policiais militares, radialistas, vereadores e até causídicos.
Origem e ‘natureza jurídica’ do golpismo
Os golpistas já estavam listados para embarcarem na Nau dos Insensatos, o best seller pré-moderno (1.494!!!) de Sebastian Brant, que foi traduzido para 40 línguas. No entremeio de toda aquela gente, lá estavam eles: os golpistas. Furando fila. Gritavam. Histrionicamente. Tinham um lugar especial. Claro: expulsaram os não golpistas. Com cusparadas. Tudo “gente de bem”.
No Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, havia, ao que consta, lugares reservados a eles, os golpistas. Que entraram gritando “anistia já”.
Um capítulo secreto, descoberto há pouco em escavações — ainda inédito —, mostra que Cervantes se irritava com duas coisas: néscios e golpistas, o que dá no mesmo, ele dizia.
Atravessaram os séculos e, com o advento da computação e das redes sociais, finalmente saíram da toca. Umberto Eco dizia — e aqui o parafraseio — “os golpistas perderam a vergonha”.
Por aqui, os golpistas fizeram milhares de lives propondo — e querendo — golpe de Estado. Quase conseguiram. Foram muito ajudados por radialistas néscios que passam o dia cuspindo ignorância. E tinham — e ainda têm — muitos apoiadores. Muitos. Paixão pela farda. Coisas psicanalíticas mal resolvidas. E paixão por opressão. Patriotas traidores. Nota: nem todo néscio é golpista. Mas todo golpista é néscio. Mas ser néscio não tem cor ideológica. Podem estar em todos os lugares. Conheço vários néscios do campo da não direita (para ser eufemístico).
Os golpistas residem em neo cavernas. Platão foi o primeiro a denunciar os golpistas e os néscios. Faça o teste: entre em um grupo de WhatsApp em que haja golpistas e tente dizer que golpe é antidemocrático e que não cabe anistia — você será expulso, como aconteceu no Mito da caverna.
Somos todos devedores de Platão.
Golpistas adoram redes sociais. Golpistas odeiam literatura. Para eles, o mundo é como as Ideias de Canário, de Machado de Assis: uma gaiola pendurada em um brechó. “O resto tudo é mentira e ilusão”, como diz o falante canário ao Senhor Macedo, que o descobriu. O problema: golpistas, que são sempre néscios, não sabem quem foi Machado.
Bolsonaristas pedem intervenção federal em frente a quartel. Foto Reprodução.
‘Natureza filosófica’ dos golpismos e dos golpistas
Buscando fazer uma epistemologia dos néscios, cabe, de pronto, perguntar: o que os filósofos e afins diriam d’eles? Eis as respostas, colhidas a partir do método palimpsesto (os golpistas não sabem o que é, claro).
Parmênides: tudo permanece (inclusive os golpistas; por isso não se pode conceder anistia).
Heráclito: o fogo é a origem de tudo. E os golpistas gostam de fogos de artifício.
Protágoras: o golpista é a medida de todos os golpes e da estultice.
Platão: os golpistas fazem parte do mundo sensível. Jamais alcançarão o suprassensível. Por isso, para eles, as sombras são a realidade. Não sairão jamais da caverna.
Górgias de Leôncio, o sofista mais famoso: um golpista é incognoscível e, se for cognoscível, é impossível contar para o vizinho.
Guilherme de Ockham: não há golpismo universal; apenas golpismo singular.
Hobbes: o golpista é o lobo do próprio golpista. Cuidado!
Descartes: golpistas não possuem cogito; golpeio, logo sou. Golpistas não possuem cogito; mas existem aos montes.
Kant: não existe um golpista em si.
Leibniz: vivemos no melhor dos mundos possíveis. Até vir um golpista encher o saco.
Locke: a mente do golpista é como uma folha de papel em branco e nunca foi preenchida.
Rousseau: O homem nasce livre, até que o golpista chega para implantar uma ditadura.
Edmund Burke: Desconfio de revoluções. Desconfio mais ainda de golpistas!
Maquiavel: atrás de um golpista sempre surge outro. Não deixe nenhum ficar perto de você.
Heidegger: faz parte do modo próprio de ser no mundo o golpista ser assim “golpeador”.
Wittgenstein (do Tractatus): se os limites da linguagem são os limites do mundo, golpistas possuem apenas um “mundinho”. Ele estava pensando em uma determinada filósofa brasileira que não o leu. Mas parece que Wittgenstein simplificou a proposição 7 para dizer que “em boca fechada não entra mosca”. Bingo.
Nietzsche: Deus está morto. Um golpista o matou e saiu quebrando tudo. Mas logo pediu anistia.
Freud: esse golpismo é uma questão sexual mal resolvida ou coisa assim.
Camus: é preciso imaginar Sísifo feliz — melhor carregar uma pedra nas costas do que aguentar o golpismo barato de terrae brasilis!
Simone de Beauvoir: um golpista não nasce golpista; torna-se, após uma overdose de mensagens com notícias falsas no WhatsApp.
Marx: golpistas são o lúmpen.
Papa Francisco: quando vejo gente rezando para pneus e ETs e outros ajoelhados na frente dos quartéis pedindo golpe de Estado, penso no Deus do velho testamento. E o que ele faria com os néscios.
Dworkin: a raposa sabe muitas coisas, o ouriço sabe uma grande coisa, mas o golpista não sabe nenhuma coisa.
E há uma frase famosa atribuída a Martin Luther King: não me preocupa o barulho feito pelos golpistas; o que me inquieta é o silêncio dos não golpistas. Percebem?
Este é, pois, o meu tributo ao anti golpismo. Afinal, como dizia o Barão do Itararé:
“Diga-me se andas com um golpista e verei se posso sair contigo.”
Post scriptum: O dia em que deputados petistas votaram sob a liderança de Sóstenes e Eduardo Bolsonaro — a PEC da Blindagem ‘vai ou racha’
A coluna estava concluída quando saiu a notícia de que foi aprovada em dois turnos, na Câmara, a PEC da Blindagem, que protege os deputados de qualquer ingerência do Judiciário. Qualquer crime – por exemplo, deputado mata alguém no trânsito – somente gerará processo se seus colegas, em voto secreto, permitirem e, é claro, se houve maioria absoluta. Bingo. Belo exemplo para a população. Alguns são bem mais iguais… porque superiores…entre si. A vergonha já sei foi há muito tempo. Terceiro mundo é vocação para a maioria dos parlamentares. Pior: teve um pequeno número de deputados governistas petistas que votaram sob a liderança de Sóstenes e Eduardo Bolsonaro. Que fase, não?
Mas tem (ou haverá) mais. De tédio ninguém morre. Vem aí a anistia light (dizem que tem “acordão” nisso – a ver), que transforma os crimes de golpe de estado e abolição violenta em crimes com pena menor do que furto qualificado.
Passando a anistia 1.0, furtar uma carteira com destreza é mais grave do que tentar derrubar um governo, inclusive com plano de matar o presidente, o vice e um ministro do STF! Mundo, mundo, vasto mundo brasileiro. Que feio.
Claro: qual é a importância de punir quem tenta derrubar um governo eleito? Podiam ter feito melhor: colocar a aplicação do Princípio da Insignificância. Teremos a modalidade “golpe bagatela”! Substituir por cestas básicas.
Pronto. O Brasil vai para Estocolmo. O prêmio Ignóbil é nosso.
Autor: Lenio Streck – Publicado no Diário do Centro do Mundo.
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