Nem toda destruição sangra visivelmente — algumas queimam silenciosas, aos poucos, enquanto a cidade observa. Em Bauru, o “sobrenatural” é rotineiro: a água some, o Cerrado queima, o solo vira lucro fácil. Tudo isso entregue ao tempo, ao mercado e ao silêncio cúmplice.
Água como chantagem
Desde 28 de agosto de 2025, cerca de 80 mil moradores de Bauru vivem sob regime de rodízio de água, alternando 24 horas com abastecimento e 24 horas sem — medida extrema adotada após o nível da lagoa de captação do Rio Batalha cair para 2,39 metros, bem abaixo do ponto operacional ideal de 3,20 m. O Departamento de Água e Esgoto (DAE) foi obrigado a reajustar o rodízio e ampliar o uso de caminhões-pipa para “suprir emergencialmente” bairros como Vila Independência, Jardim Ouro Verde, Vila Falcão, Alto Paraíso, Vila Industrial, entre outros.
O rodízio no governo Suéllen não é novidade em Bauru — ciclos anteriores foram registrados em 2024, inclusive com moradores relatando longas jornadas sem uma gota nas torneiras. E apesar de investimentos feitos (poços reativados, reservatórios interligados), a dependência do Batalha permaneceu expressiva, e a crise revela a fragilidade estrutural da rede.
A prefeita agir apenas quando a torneira seca é admitir que água virou commodity, arma de negociação que ela usou politicamente em sua reeleição. Hoje a população se vê enganada, promessas feitas que não se cumpre.
Cerrado em brasas: o fogo que prepara a terra
Enquanto a cidade arde, os discursos municipais chamam “queimadas recorrentes”, “incêndios sazonais”, “acidentes ambientais”. Mas os fatos apontam para padrão com interesses claros: só em setembro de 2025, foram contabilizados mais de 180 focos de queimadas urbanas, somando dezenas de hectares comprometidos — especialmente em Chácaras Odete, Jardim Colonial e áreas de borda florestal próximas ao Batalha. Relatos antigos e atuais apontam uma lógica: onde há mata, surge lote; onde há lote, surge venda. Grupos urbanos já contabilizam 37 núcleos de ocupações irregulares em Bauru, muitos se expandindo junto à mata queimada e às trilhas abertas no solo degradado. As reuniões de revisão do Plano Diretor escancaram a opção que avança: propostas que flexibilizam regras ambientais, reduzem restrições nos entornos do Rio Batalha, atropelam a lógica de corredores ecológicos e beneficiam loteadores. É o mecanismo clássico: apagar a mata, depois inscrever como terreno regularizável — tudo com “licença técnica” prevista nas minutas.
O resultado é o mesmo: menos cobertura vegetal, menos infiltração, menos água no rio, e solo preparado para acontecer o negócio imobiliário que seguirá o incêndio.
A política da omissão institucional
Onde deveria haver fiscalização — Defesa Civil, órgãos ambientais, Ministério Público — vemos vacilos crônicos ou investigações em marcha lenta. Quando queimadas disparam, decretos de emergência são publicados, como aquele que autoriza uso de água não potável para combate. Mas decretar emergência não combate mandante.
Em manifestações recentes, vereadores já citaram explicitamente as “queimadas criminosas motivadas por especulação imobiliária” como tema de segurança pública local. Ou seja: o discurso chega à tribuna, mas a sanção raramente aparece. Investigar incêndios exige descer da esfera ambiental para o nível do solo — quem incendiou, quem abriu ruas, quem autorizou esquemas fundiários. Poucos fazem isso.
A máfia da terra não é lenda conspiratória: é operação de longa duração em muitos municípios do Brasil, como revelam estudos em direito fundiário. Ela atua por meio de grilagem legal ou ilegal, loteamentos irregulares, aquisição de glebas incendiadas e uso de artifícios burocráticos para legitimar o penoso. Bauru parece de maneira recorrente no mapa desse jogo sujo com o envolvimento de agentes públicos e especuladores conhecidos
Terra, fogo e água: triângulo do lucro sujo
Não se trata de desastre natural: é estratégia. Queimar para baratear, secar para sancionar, regulamentar para rentabilizar. E no centro desse triângulo está o Plano Diretor em revisão. As versões preliminares já mostram dispositivos ambíguos, “ajustes técnicos” e cláusulas de transição que favorecem o mercado imobiliário em áreas sensíveis.
O comércio de terras, por muito tempo instrumento de lavagem de dinheiro — compra de glebas em áreas rurais que logo passam para urbanas por favorecimento político aumentando seu valor, parcelamentos fraudados, regularizações tardias — encontra terreno fértil quando quem deveria freá-lo se cala ou jamais idealizou leis efetivas. Quando o fogo inaugura ruas, já nasce lote. Quando o rio recua, surge tomada. Quando o PD amolece normas ambientais, florescem projetos.
O retrato dolorido da Bauru presente
1. Água virou regime: rodízio agrava desigualdades entre bairros de maior e menor densidade.
2. Mata vira cinza, lote vira anúncio — com o solo ainda fumegando.
3. O aparato de fiscalização existe no papel, mas no mapa real quem manda é quem dispõe de capital.
4. O Plano Diretor virou dossiê de favorecimento, não de futuro.
Se não for agora, quando? Se não for com quem paga imposto, com quem compra terra, com quem exige serviço público, com quem defende cidadão: que tipo de cidade será Bauru daqui a uma década?
Este é um chamado: ao leitor que não engole explicação rasa, à técnica que não aceita omissão, à política que não vive de silêncio. Porque o fogo evidencia o esquema e o esquecimento os salvaguarda.
Autor: Fernando Redondo – Jornalista. Professor Licenciado em História - Delegado do Plano Diretor de Bauru.
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