O regime de capitalização da
Previdência no Chile obriga os aposentados a seguirem trabalhando, muitas
vezes, até morrer. É o caso de Mario Enrique Cortes, “jubilado” que, aos 80
anos, padeceu de insolação em pleno inverno, como jardineiro, em frente ao Palácio
de La Moneda, em 2014. De lá para cá, o país vem acumulando episódios trágicos
como este. Somado à onda crescente de suicídios na terceira idade – com tiro,
enforcamento ou envenenamento -, o cenário escancara a realidade sombria de uma
terra em que a aposentadoria foi transformada em negócio para benefício das
Administradoras de Fundos de Pensão (AFP).
Corpo de Mario Enrique Cortes, aposentado de 80 anos, coberto por plástico na Praça da Constituição, em frente ao Palácio de la Moneda, em Santiago do Chile. Idoso morreu de insolação, trabalhando para fazer frente à minguada aposentadoria.
Corpo de Mario Enrique Cortes, aposentado de 80 anos, coberto por plástico na Praça da Constituição, em frente ao Palácio de la Moneda, em Santiago do Chile. Idoso morreu de insolação, trabalhando para fazer frente à minguada aposentadoria.
Corpo
de Mario Enrique Cortes, aposentado de 80 anos, coberto por plástico na Praça
da Constituição, em frente ao Palácio de la Moneda, em Santiago do Chile. Idoso
morreu de insolação, trabalhando para fazer frente à minguada aposentadoria.
“O atual sistema de aposentadoria
chileno tem 38 anos e foi imposto pela ditadura de Augusto Pinochet, em 1981.
Não houve discussão. O parlamento era uma junta militar, composta por um
representante de cada segmento das Forças Armadas. Os generais e o ministro do
Trabalho da época, José Piñera, irmão do atual presidente do Chile, Sebastian
Piñera, criaram as AFP. Hoje, a capitalização faz nossos idosos morrerem
trabalhando e a taxa de suicídio bater recorde”, afirma o representante do
movimento No+AFP (Chega de AFP), Mario Villanueva. O dirigente condena “a
perversão de um sistema desenhado para que grandes grupos econômicos e
seguradoras transnacionais ampliem seus lucros se aproveitando do sacrifício de
milhões de aposentados”.
Os idosos totalizam cerca de 16% da
população chilena, de acordo com o censo de 2017, pouco mais de 2.800.000
pessoas. Uma em cada cinco segue trabalhando a fim de complementar a
aposentadoria. Para Rosita Kornfeld, ex-diretora do Centro de Estudos de
Velhice e Envelhecimento da Universidade Católica e especialista da Organização
das Nações Unidas (ONU), tal número escancara o abandono desse segmento por
parte do Estado. "Eles têm um problema grave de falta de recursos e também
de solidão e desamparo, o que os leva a tomarem atitudes extremas",
avalia. "Se não prestarmos mais atenção e cuidados, os casos de suicídio
vão continuar crescendo".
Radicada no país há 11 anos, a psicóloga
brasileira Ana Paula Vieira, fundadora e presidenta da Fundação Miranos, se
dedica ao trabalho de prevenção do suicídio entre os idosos. “Obviamente o
aumento alarmante no número de suicídios não pode ser chamado de ‘fake
news’. Há vários estudos, com dados oficiais do Ministério de Saúde, que
revelam as taxas muito altas de suicídio na terceira idade em comparação com a
média da sociedade chilena”, explica, em resposta à afirmação de Paulo Guedes,
superministro da Economia de Jair Bolsonaro, de que as informações sobre o
crescimento do fenômeno no Chile não passariam de notícias falsas.
Vieira ressalta que só agora o tema
começou a ser discutido de fato. “Até pouco tempo, o suicídio na terceira idade
não era visibilizado por aqui. Falava-se muito de questões como moradia, o alto
custo da saúde e, claro, a questão da aposentadoria, mas o suicídio continuava
um tabu”, sublinha.
Os casos emblemáticos de casais de
idosos que tiraram a própria vida foram o estopim para que o tema finalmente
entrasse em evidência, ganhando manchetes não só no Chile, mas também na mídia
estrangeira. “Em 2018, as taxas continuaram altas e outros casos envolvendo
casais de idosos vieram à tona e, por isso, o assunto vem recebendo tanta
atenção, inclusive em nível de governo”, afirma. “Tenho ido ao Senado, como
integrante da Comissão do Idoso, para apresentar dados e estudos sobre este
problema”.
O Estudo Estatísticas Vitais, do
Ministério de Saúde e do Instituto Nacional de Estatísticas (INE) do Chile é
claro: entre 2010 e 2015, 936 adultos maiores de 70 anos tiraram a própria
vida. O levantamento – que não contempla o agravamento detectado até mesmo pela
mídia privada no último período – aponta que os maiores de 80 anos apresentam
as maiores taxas de suicídio: 17,7 por cada 100 mil habitantes – 70% superior à
média do continente seguido pelos segmentos de 70 a 79 anos, com uma taxa de
15,4, contra uma taxa média nacional de 10,2.
Segundo o Centro de Estudos de Velhice
e Envelhecimento, da Universidade Católica, são índices mórbidos, que têm
crescido de forma acentuada e que colocam o Chile como um dos países com os
mais altos índices de suicídios nesta faixa etária em toda a América Latina.
O fato de muitos meios de comunicação no
Brasil citarem pretensos estudos tendo por base dados da Organização Mundial de
Saúde (OMS), de 2012, apenas revela a tentativa de fugir do debate, pois foi a
partir daí que, passadas as três décadas da “reforma” ditada por Pinochet, “os
idosos começaram a receber as suas aposentadorias e puderam dimensionar o quão
pouco receberiam e que seu dinheiro não daria para nada”, explica Mario
Villanueva. Atualmente, 80% das aposentadorias estão abaixo do salário mínimo
(301 mil pesos, ou 1.738 reais ) e 44% abaixo da linha da pobreza.
Uma parcela significativa dos
aposentados recebe cerca de 110 mil pesos (635 reais), quantia inexpressiva em
um país em que os remédios e a alimentação são particularmente caros. Para se
ter uma ideia do que representam esses diminutos ganhos no dia a dia dos
chilenos, basta observar que, desde fevereiro, o Instituto Nacional de
Estatísticas (INE) calcula que o preço da cesta básica alimentar em torno de
67.235 pesos (388 reais). A “canasta” está composta pelos
seguintes produtos e quantidades: leite, 10 litros - $ 7.876; pão, 10 unidades
de 500 gramas - $ 8.167; arroz, 1,5 quilo - $ 1.392; ovos, 20 unidades - $
2.993; queijo, um quilo - $ 6.137; carnes de frango e de vaca, seis quilos - $
29.533; frutas, seis quilos - $ 5.022 e verduras, oito quilos - $ 6.115.
"Isso sem contar as contas luz, gás e os altos custos de medicamentos e
moradia", acrescenta Villanueva.
Miséria, abandono e solidão.
Apesar de ser lógico traçar um
paralelo entre esse índice e a condição de miséria imposta por um sistema de
Previdência que, na prática, nega o direito à aposentadoria digna a uma enorme
parcela da população, Ana Paula Vieira alerta: “o suicídio é um fenômeno
multicausal. Na terceira idade, ele tem a ver com abandono, com solidão e,
obviamente, com problemas financeiros. A discussão passa muito pela
precariedade da saúde e por dificuldades econômicas dos idosos. Entretanto, é
preciso educarmos a sociedade sobre a complexidade desse problema para
conseguir enfrentá-lo ao invés de escondê-lo”.
“Claro que para impor um sistema de
Previdência como o do Chile, foi necessário haver manipulação midiática e
campanha de marketing. Mas não foi só isso. É um sistema imposto pela força”.
Esta é a avaliação de Oriana Zorrilla, histórica jornalista chilena. “Se não
tivesse ocorrido a ditadura e a repressão, somadas às mentiras e ilusões
vendidas à população sobre o modelo de aposentadoria, não teria sido possível
aprovar um sistema assim”. Presidenta do Conselho Metropolitano
do Colégio de Jornalistas do Chile, entidade que defende a categoria no país,
Zorrilla viveu concretamente a experiência da implementação das Administradoras
de Fundos de Pensão (AFP), que transformaram a Seguridade Social em ativos do
mercado financeiro a partir da capitalização individual da Previdência. Por ter
começado a contribuir antes do novo sistema entrar em vigência, a jornalista
conseguiu se aposentar pelo modelo antigo. “A única vantagem que tenho de ser
velha é ter o privilégio de ter uma aposentadoria digna, já que me aposentei
pelo sistema anterior, infinitamente melhor que o das AFP”, sentencia.
“Meu marido, um engenheiro eletrônico
especializado em medicina nuclear, sempre teve um salário três a quatro vezes
maior que o meu. No entanto, sua aposentadoria, que é paga pelo sistema das
AFP, é muito menor que a minha”, diz. Segundo Zorrilla, o marido dela, como
milhões de cidadãos chilenos, teve o azar de ter começado a contribuir somente
no sistema imposto pela ditadura, o que foi obrigatório a partir da sua
instalação.
“Por ter sido gerente e recebido um
salário maior que o meu a vida toda, todos me diziam que ele era um bom
partido. Agora, eu sou o bom partido, por não depender do sistema das AFP. É um
contrassenso total”, ironiza.
Os jornais e as emissoras de rádio e
televisão venderam muitas mentiras sobre o que seria este modelo de
aposentadoria, relata Zorrilla. “Os meios de comunicação não só fizeram, lá
atrás, como seguem fazendo campanha para um sistema que, na realidade, é um
assalto à mão armada contra toda classe de trabalhadores: de jornalistas a
engenheiros, de funcionários públicos a operários”.
Há poucos dias, o Colégio de Jornalistas promoveu o leilão da biblioteca de um consagrado jornalista de Santiago, Rodrigo Beitia, diagnosticado com Alzheimer. “A família deste profissional brilhante colocou à venda todos os livros adquiridos ao longo de sua vida para ajudar a pagar um tratamento e um lugar adequados para os cuidados de saúde necessários”, conta. “Por um lado, é um gesto bonito, pela solidariedade que ele recebeu de todos nós. Por outro, é um retrato que escancara uma realidade angustiante”.
Há poucos dias, o Colégio de Jornalistas promoveu o leilão da biblioteca de um consagrado jornalista de Santiago, Rodrigo Beitia, diagnosticado com Alzheimer. “A família deste profissional brilhante colocou à venda todos os livros adquiridos ao longo de sua vida para ajudar a pagar um tratamento e um lugar adequados para os cuidados de saúde necessários”, conta. “Por um lado, é um gesto bonito, pela solidariedade que ele recebeu de todos nós. Por outro, é um retrato que escancara uma realidade angustiante”.
Contabilidade nefasta
Mario Villanueva ressalta que
“enquanto bancos como o BTG Pactual (do ministro da Economia de Bolsonaro,
Paulo Guedes) pagam 4% de remuneração pelo dinheiro aplicado, cobram dos mesmos
trabalhadores chilenos uma taxa de juros de 25% a 30%, fazendo com que tais
instituições financeiras multipliquem rapidamente o seu patrimônio”. Assim, o total de fundos acumulados
pelas AFPs já beira os 220 bilhões de dólares, explica, o equivalente a 75% do
Produto Interno Bruto (PIB) do Chile. “Dois terços destes recursos, US$ 151,9
bilhões, estão, conforme a Fundação Sol, sob o controle de três empresas
norte-americanas: Habitat, US$ 57,76 bilhões (27,4%); Provida, US$ 53,03
bilhões (25,2%) e Cuprum, US$ 41,14 (19,5%)”, esclarece Villanueva.
É para mudar esta irracionalidade que
a No+AFP propôs recentemente ao parlamento um projeto que enfrente este modelo.
“Estamos vivendo as consequências de um sistema instalado por uma ditadura,
cujos impactos recaem sobre uma população que vai envelhecendo com
aposentadorias insuficientes para sobreviver com um mínimo de dignidade. Isso
se repete cada vez mais e vamos tendo muitos exemplos de idosos que se suicidam
porque não podem mais viver com essas pensões e que estão sós. Porque quando se
impõe o neoliberalismo, o 'salve-se quem puder', as famílias vão se
desagregando, multiplicando-se os casos de abandono e suicídio”, aponta.
Villanueva recorda que a palavra
jubilación (aposentadoria, em espanhol) vem de júbilo – alegria, empolgação,
entusiasmo –, período em que as pessoas deveriam estar desfrutando. O oposto
disso, enfatiza, é o caso do casal de idosos que após mais de cinco décadas
juntos decidiu pôr fim às suas vidas, mencionado também por Ana Paula Vieira.
“O fato é que com recursos cada vez menores, os filhos – que também não são tão
novos – têm que passar a se responsabilizar pelos pais. E quando não há filhos,
os pais passam a depender de vizinhos. Tudo para que uns poucos especuladores,
bancos e transnacionais, lucrem de forma exorbitante”, protesta.
Autores: Felipe
Bianchi e Leonardo Wexell Severo são jornalistas e integram o coletivo
ComunicaSul*.
*O
Coletivo ComunicaSul está no Chile com os seguintes apoios: Centro de Estudos
da Mídia Alternativa Barão de Itararé, Diálogos do Sul, Federação Única
dos Petroleiros (FUP), Jornal Hora do Povo, Sindicato dos Metalúrgicos de São
José dos Campos, Sindicato dos Metroviários de São Paulo, e Sindicato Nacional
dos Carteiros do Chile (Sinacar).
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