Só
uma relação desigual, subordinada, colonial pode justificar um tal rendimento,
uma entrega tão completa, uma submissão escancarada.
Uma vez, conversando com meu compadre,
perguntei a ele por que não se aposentava, uma vez que já tinha tempo de
serviço necessário (isso foi antes da proposta de “reforma da previdência”, que
na prática restabelece a escravidão).
Corajoso, fundador do Partido dos
Trabalhadores em Carazinho, cidade natal de ninguém menos do que o ícone
político Leonel Brizola, ele me respondera: “O problema é o jaque”. Sem
entender, indaguei: “Que jaque é esse?”. Ele me contestou: “Jaque tu tá
aposentado, tu faz para mim…”.
De maneira figurada, a aposentadoria
tem sido um pouco similar para mim. Faço muitas coisas prazerosas, inclusive
escrever esta coluna, mas também tenho plena noção de que o passado me
acompanha, me olha com expectativa e continuamente. O mesmo acontece com a
conjuntura, não consigo escapar dela: sou perseguido e instado a todo momento.
Resignemos-nos, pois.
No momento em que os desatinos chegam
à circunavegação do espectro ideológico – tal o incontido oportunismo dos
palhaços no picadeiro, o colonialismo recoloca-se na ordem do dia (da qual
nunca deixou de figurar, ainda que, por alguns momentos, tenha sido reduzida às
notas de rodapé, como as cláusulas perigosas dos contratos internacionais).
Para tratar do assunto, como sempre,
cabe superar as trevas, como faz a luz. No caso específico, caberá compreender
o contrário do colonialismo: a soberania.
Chego, destarte, à segunda lição da
minha aposentadoria: muitas vezes, toda a bagagem arduamente obtida, guardada e
carregada pode valer menos do que uma ideia brilhante, leve, chegada do mais
puro azul.
Explico-me: “Por conta de umas
questões paralelas…”, parafraseando o Chico Buarque, precisei tirar umas férias
do Itamaraty, após o golpe parlamentar de 2016.
Dessa forma, pude dedicar-me a
traduções e interpretações voluntárias para movimentos sociais. No Congresso
Nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), em 2017, no Rio de
Janeiro, ouvi algo que me marcou muito. Ao encontrarmos a delegação da central
sindical francesa CGT (Central Geral dos Trabalhadores, seção dos trabalhadores
da energia), o geólogo da Petrobras que descobriu o pré-sal disse-lhes: “Vou
dizer algo que vocês, franceses, entenderão: neste momento, somos um país sob
ocupação estrangeira”.
Essa para mim foi uma lição (aquela
segunda da minha aposentadoria, a que antes me referi): alguém que não era da
área de relações internacionais conseguia ver mais claro do que eu, com 35 anos
de Itamaraty, pesando (e como) nas costas. Permitam-me o trocadilho, no caso,
mais valeu conhecer a costa do que as costas.
Dessas lições, decorre, para mim, que
as cenas de subserviência explícita às quais fomos submetidos na semana passada
– inescapáveis – têm de ser interpretadas pela ótica do neo-colonialismo a que
o país foi submetido.
Com efeito, só dessa maneira é
possível compreender a gravíssima cessão de território – a Base de Alcântara –
para a qual o acesso de brasileiros será restrito, em troca de minguado aluguel
que sequer repõe os recursos que deixaremos de recolher da isenção de vistos
unilateralmente concedida aos cidadãos estadunidenses – sem sequer
contrapartida para os nacionais – que continuarão a desembolsar não poucos
recursos para obter o visto para os Estados Unidos.
Ao lado disso, a compra de trigo dos
EUA, em substituição ao mercado argentino, irá prejudicar o comércio justamente
com o país que mais importa produtos com alto valor agregado do Brasil, a
Argentina. Pior, a igualmente nefasta importação de carne suína dos EUA –
subsidiada – colocará inteiras regiões inteiras do país sob o signo da
depressão socioeconômica, principalmente no Sul do Brasil.
Em troca, sequer miçangas ou
espelhinhos, apenas uma camiseta de nylon, cujo custo não supera três dólares.
Como explicar? Só o neocolonialismo
pode aclarar. Nenhuma política externa de país independente faria isso. Só uma
relação desigual, subordinada, colonial pode justificar um tal rendimento, uma
entrega tão completa, uma submissão escancarada.
Vale notar que a situação é
gravíssima, pois estamos nos vinculando como colônia – o que per se é
gravíssimo – de uma potência em franca decadência socioeconômica (a China
já a ultrapassa na maioria dos indicativos) e militar (superada pela Rússia).
Ou seja, o nosso atual atrelamento é
ainda pior do que aquele do Tratado de Methuen, celebrado entre Portugal e
Inglaterra, em 27/12/1703, o qual relegou a pátria-mãe ao subdesenvolvimento
por mais de três séculos, ao determinar a venda de vinhos por Portugal, em
troca da importação de tecidos da Inglaterra. Por meio dele, o ouro e os
diamantes das Minas Gerais – além de outras riquezas brasileiras – também foram
drenados para o Reino Unido. Como símbolo da dominação de um país sobre o
outro, o instrumento não mascarou seu caráter intrinsecamente colonial, em que
as formalidades são dispensadas. De fato, contava apenas com três artigos,
sendo o menor tratado da história diplomática europeia. A aplicação daquele
instrumento demonstrou cabalmente como a troca de produtos primários por
produtos com valor agregado conduz ao subdesenvolvimento, pela deterioração
constante dos termos de troca, em favor dos produtos com maior valor tecnológico.
No caso dos acordos em apreço com os
EUA, a relação é ainda mais desfavorável: comprometemos-nos a importar produtos
primários. Regredimos, dessa maneira, a período anterior ao século XVIII… e
ainda cedemos território… o que diria o Barão do Rio Branco?
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