O irritadiço condutor do automóvel moderno fez ultrapassagem pela direita, acelerou mais do que permitia a regra humana, buzinou, deu farol alto e espalhou seu mau humor por toda a parte, aos demais motoristas da via expressa. Não sabemos se estava trajando luto, ou engravatado para o mister empresarial em um escritório do prédio envidraçado da famosa avenida. Conseguiu adiantar-se valiosos cinco minutos para chegar, mesmo assim, atrasado ao local de trabalho, com a triste finalidade de alimentar um sistema capitalista em que é iludido na função de ser algo além do produtor de riquezas para outros. Não é nada além de assalariado. Lá atrás, meia hora antes, ao ver o bólido prateado errante em alta velocidade atrás de si, a senhora agarrada ao volante de um pequeno carro de passeio - assim é chamado - pensou se deveria reduzir seu ritmo, uma vez que dar passagem estava fora de cogitação por já estar trafegando na pista intermediária, abaixo do limite máximo e acima do limite mínimo, que poucos sabem ser de metade do máximo, segundo o artigo 62 do código de trânsito brasileiro. Aborreceu-se, assustou-se, fez o veículo oscilar na lateral e foi atingida por um terceiro veículo, espanado de sua via pelo 'às no volante' iludido do começo deste relato.
Ao final da ensolarada manhã de início de inverno, temos como saldo uma triste figura trabalhadora engolindo sua refeição sentado à mesa e à frente do computador para compensar os valiosos minutos de atraso, que poderiam ter sido evitados caso tivesse acordado mais cedo e não fosse dormir tão tarde assistindo a live do coaching do empreendedorismo nas redes sociais que prometia mundos&fundos para quem fizesse como ele e rompesse com o estado das coisas, pois somente quem pensa grande pode ser grande, ignorando que no mundo capitalista há que se ter o explorado para que vingue o explorador. A live foi até quase duas da manhã, o que levou à quase insônia e insolente tráfego pela rodovia. Ao menos aprendeu que empreender é desprezar muitas relações humanas. A dona do pequeno carro de passeio ainda não havia conseguido acionar o seguro, contratado em promoção, ideia de seu cunhado despachante que a havia assim convencido, pois ganhava comissão. Ficaria esperando e com fome até as três horas da tarde, sem se encontrar com as amigas e sem saber como conseguiria recursos para pagar o estrago no carrinho, que não fora grande, mas não permitiria trafegar sem ser multada pelo cioso agente da lei que sempre aparecia nessas horas.
O terceiro personagem, o segundo envolvido no acidente, pouco se preocupou com a situação, após constatar que seu veículo, já crivado de marcas de contato, de raspões e outras formas de maleabilidade metálica, passava a ter somente mais uma marca do passado. Sequer trocou telefone com a senhorinha do carrinho, com medo de que a operadora do celular descobrisse que o plano estava vencido ou que, chamado um guincho, o número do Renavam denunciasse que nem o IPVA, nem o licenciamento estavam pagos. Convenceu a senhora e a si próprio que o único culpado era o imbecil do carrão veloz e seguiu viagem, de olho no retrovisor grudado com fita adesiva no para-brisa, certificando-se que nenhuma viatura policial aparecesse, o que poderia incorrer em abandono do local do acidente. Assim, o destino nos conduziu a mais um dia finalizado de forma feliz, pois aparentemente ninguém morreu. Aparências, pois não, não é acerca de trânsito este relato.
Autor: Professor Adilson Roberto Gonçalves – Publicado no Blog dos Três Parágrafos.
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