Aprender a ler é o que de mais
importante me aconteceu na vida. Agora que, por culpa do isolamento, leio do
amanhecer ao anoitecer, aqueles dias voltam à minha memória com os fantasmas
desvanecidos.
Menina lê dentro de casa em Lavau-sur-Loire, na França, durante quarentena. LOIC VENANCE - AFP
Lembro com exatidão as dez quadras que
existiam entre a casa dos Llosa, na rua Ladislao Cabrera, e o colégio La Salle.
Eu tinha cinco anos e, sem dúvida, estava muito nervoso. Naquele dia, o meu
primeiro no colégio, eu as percorri com minha mãe, que até me acompanhou à
classe e me deixou aos cuidados do irmão Justiniano. Ele me apresentou aos que
seriam meus amigos cochabambinos a partir de então: Artero, Román,
Gumucio, Ballivián. O mais querido deles, Mario Zapata, o filho do fotógrafo que
havia documentado todos os casamentos e primeiras comunhões da cidade, seria
morto com uma facada, anos depois, em um bar de Cala-Cala. Como era o garoto
mais pacífico do mundo, sempre pensei que sua horrível morte foi por defender a
honra de uma jovem.
O Irmão Justiniano era um anjo na terra.
Tinha cabelos brancos e olhos doces e afetuosos. Dávamos as mãos e com ele
cantávamos e dançávamos rodas repetindo o abecedário e as conjugações e assim,
brincando, seis meses depois sabíamos ler. O carteiro entregava a cada semana
quatro revistas na casa, três argentinas e uma chilena: Leoplán, para o
avô Pedro, Para Ti, lida pela avozinha Carmen, Mamaé, minha mãe e a tia
Lala, e, para mim, Billiken e El Peneca. Esperava essas revistas
como um maná do céu e as lia do começo ao fim, incluindo as propagandas.
Minha mãe tinha um professor de violão e
era uma leitora empedernida. Ela me emprestou O Sheik e O Filho
do Sheik, mas me proibiu de ler Vinte Poemas de Amor e uma Canção
Desesperada, de Pablo Neruda, um livro azul de letras amarelas que
escondia em sua cabeceira e relia de noite: entre bocejos, eu a ouvia. Claro
que eu o li, às escondidas, e lá havia versos que, eu tinha certeza (“Meu corpo
de lavrador selvagem te enfraquecia / e faz saltar o filho do fundo da terra”),
eram pecado mortal.
Aprender a ler é o que de mais
importante me aconteceu na vida e, por isso, sempre lembro com gratidão do
Irmão Justiniano e das cantigas de roda entre as carteiras, cantando e dançando
enquanto decorávamos as conjugações. Pela leitura, esse mundo pequenino de
Cochabamba se tornou o universo. Graças aos sinais que transformava em palavras
e ideias, viajava pelo planeta e até podia voltar no tempo e me transformar em
mosqueteiro, cruzado, explorador e viajar pelo espaço até o futuro em naves
silenciosas. Minha mãe disse que a primeira manifestação do que, com os anos,
seria uma vocação literária, foi que, quando eu não gostava dos finais dos
contos e romances que lia, modificava-os com minha letra ruim da época. Eu não
me lembro, mas sim das horas que passava lendo todos os dias, após voltar do La
Salle e tomar meu copo de leite gelado com canela, meu alimento preferido. O
avozinho Pedro brincava comigo: “Para o poeta a comida é prosa”. Mas eu ainda
não escrevia versos em Cochabamba; isso viria depois, em Piura.
Agora que, por culpa do coronavírus e
do isolamento forçado a que os madrilenhos estão submetidos, leio do
amanhecer ao anoitecer, dez horas diárias em um estado de felicidade absoluta
(moderada pelo medo à praga), aqueles dias cochabambinos voltam à minha memória
com os fantasmas desvanecidos das primeiras leituras que o subconsciente me
devolve: a orgulhosa Diana Mayo caía rendida nos braços de seu sequestrador
Ahmed ben Hassan nos desertos da Argélia; o espadachim que nasceu em uma cela
e, como os gatos, enxergava no escuro; o Judeu Errante e sua peregrinação pelo
mundo. As crianças da época —pelo menos em Cochabamba— não liam quadrinhos e
sim livros, e sem dúvida por isso jamais me viciei em Pato Donald, Mickey Mouse
e Popeye, o marinheiro musculoso. Mas sim em Tarzan e Jane, com quem voei de
árvore em árvore, pelas selvas da África.
Na biblioteca com teias de aranhas da
Universidade de San Marcos li minha primeira obra-prima: Tirante o Branco,
na edição de Martín de Riquer de 1948. Antes ainda, quando cadete do Leoncio
Prado, devorei a série dos mosqueteiros de Alexandre Dumas, e sonhava com
d’Artagnan todas as noites.
Nada me deu tanto prazer e felicidade
como os bons livros; nada me ajudou tanto como eles a passar pelos momentos
difíceis. Sem a literatura teria me suicidado nesse período atroz em que soube
que meu pai estava vivo, quando me levou para morar com ele e me fez descobrir
a solidão e o medo. William Faulkner mudou minha vida em plena adolescência; eu
o li com lápis e papel para identificar suas mudanças de narrador, os saltos
temporais, os redemoinhos dessa prosa que misturava personagens, tempos e
lugares e aparecia, de repente, no romance um reordenamento da história ainda
melhor do que o cronológico.
Para ler Sartre, Camus, Merleau-Ponty,
Simone de Beauvoir e demais colaboradores da Les Temps Modernes, aprendi
francês, e inglês para entender Hemingway, Dos Passos, Orwell e Virginia Woolf,
e decifrar o Ulisses de Joyce (consegui na terceira vez). Em uma
cabaninha de Perros-Guirec, na Bretanha, no verão de 1962 li o tomo de La
Pléiade dedicado a Tolstói e desde então Guerra e Paz me parece o
auge do romance, com Dom Quixote e Moby Dick. Entre os do século
XX, nada supera no meu entender A Condição Humana, de Malraux, com exceção
de A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Em Paris, no primeiro dia em
que cheguei, em agosto de 1959, descobri Flaubert e passei a noite inteira, no
Wetter Hotel, lendo Madame Bovary. Foi para mim a mais frutífera das
descobertas: graças a Flaubert, soube o escritor que queria ser e o que não
queria ser.
As boas leituras não produzem
somente felicidade; ensinam a falar bem, a pensar com audácia, a fantasiar, e
criam cidadãos críticos, desconfiados das mentiras oficiais dessa arte suprema
do mentir que é a política. A vida que não vivemos podemos sonhá-la, ler
os bons livros é outra maneira de viver, mais livre, mais bela, mais autêntica.
Essa vida alternativa tem, além disso, a sorte de estar fora do alcance das
pragas demoníacas que sempre aterrorizaram os seres humanos porque viam nelas
os diabos, que, ao contrário dos inimigos de carne e osso, eram difíceis de
derrotar.
Um bom leitor é o cidadão ideal de uma
sociedade democrática: nunca se conforma com aquilo que tem, sempre quer mais e
coisas diferentes das que lhe oferecem. Sem essas insubmissões o progresso
verdadeiro seria impossível, aquele que, além de enriquecer a vida material,
aumenta a liberdade e o leque de escolhas para ajustar a própria vida a nossos
sonhos, desejos e ilusões. Karl Popper tinha razão: nunca estivemos melhor do
que agora (nos países livres, entende-se).
O coronavírus ressuscitou a
barbárie no que acreditávamos ser a civilização e a modernidade. Vimos
coisas horríveis em Madri, como nos asilos: idosos abandonados ao que parece
por cuidadores que não tinham máscaras, remédios e qualquer ajuda. Os mortos
convivendo com os vivos, dormindo nas mesmas camas. O horror sempre supera o
horror, não importa o tempo histórico. Ainda assim, com toda a ruína
econômica e social que essa inesperada praga trará ao país, se, após
sobreviver a ela, existir na Espanha um milhão a mais de espanhóis, ou pelo menos
cem mil, atraídos à boa leitura graças à quarentena forçada, os demônios da
peste terão feito um bom trabalho.
Autor: Mario Vargas Llosa – El País
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