Todos no bar já estavam cansados de
ouvir a história do Josef, mas, de vez em quando, aparecia alguém novo no bar,
alguém que não conhecia nem Josef nem sua história, e aí era a turma do bar que
pedia para Josef contar sua história
Ele se chamava Josef, tinha 80 e poucos
anos, e estava sempre pronto a contar sua história. Seus companheiros do bar já
estavam cansados de ouvir como os pais do Josef tinham chegado ao Brasil vindos
da Lituânia, durante a Segunda Guerra Mundial, e como Josef viera na barriga da
sua mãe.
Todos no bar já estavam cansados de
ouvir a história do Josef, mas, de vez em quando, aparecia alguém novo no bar,
alguém que não conhecia nem Josef nem sua história, e aí era a turma do bar que
pedia para Josef contar sua história. Até o ajudavam, temendo que ele se
perdesse na narrativa, ou esquecesse algum detalhe importante da história.
– Josef, conte o que seus pais vieram
fazer no Brasil.
Josef mudava de voz quando começava a
contar sua história. A voz ficava mais solene. Mais grave.
– Meus pais, Ianis e Grupa, vieram ser
espiões da Lituânia no Brasil.
– Espiões?!
– Espiões.
– Mas... O que eles espionavam?
– Tudo que acontecia aqui. Nossa
política. Nossos costumes. O movimento nos portos. Movimentos suspeitos nas
ruas, que aqui chamavam de carnaval. O que os jornais brasileiros diziam da
guerra. Tudo que pudesse interessar ao comando militar lituano. Meus pais
usavam um transmissor de rádio escondido no porão para mandar seus relatórios.
Era perigoso. Um dia...
Josef parou de falar. Aquele “um dia”
ficou suspenso no silêncio do bar, até Josef retomar a narrativa, agora com a
voz ainda mais grave.
– Um dia bateram na porta. Ficamos
assustados. Eu era uma criança. Grupa, minha mãe, procurava um lugar para me
esconder. Bateram na porta com mais força. Papai gritou “Quem é?”. Uma voz
feminina respondeu “Estamos vendendo rifas para o baile no clube”. Não era a
polícia. Papai e mamãe nunca foram descobertos. Espionaram para a Lituânia até
morrerem.
– De que lado estava a Lituânia, na
guerra?
– Eles nunca ficaram sabendo. Todas as
semanas transmitiam seu relatório pelo rádio, e todos os meses, sem falha,
entrava um dinheiro, mandado da Lituânia, na conta deles, no banco. Era o
dinheiro que pagava nossas contas. Foi o dinheiro que pagou minha educação. É o
dinheiro que me sustenta até hoje.
– O quê? Você recebe o dinheiro que
vinha da Lituânia para os seus pais?
– Todos os meses, sem falha.
– E não se sente culpado por receber
dinheiro sem trabalhar?
– Quem diz que eu não trabalho? Trabalho
muito.
– Fazendo o quê?
– Espionando. Todas as semanas mando um
relatório do que está acontecendo no Brasil. Quando meus pais morreram
perguntei se era para continuar mandando os relatórios e eles disseram para
continuar mandando. Que os relatórios são publicados com grande sucesso desde
os tempos da Segunda Guerra Mundial, apesar de ninguém acreditar que o que eles
contam seja verdade. Uma frase que dizem muito é “e a gente pensava que a
Lituânia era um país improvável...”.
– E você não inventa o que conta nos
seus relatórios?
– E precisa?
Autor: Luis Fernando Verissimo, O Estado
de S. Paulo
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