Nestes seus dois anos de governo, Trump
nunca deixou de surpreender com posturas normalmente injustas, absurdas e, em
geral, ilegais. Desta vez ele foi muito além do que se poderia prever de
negativo.
O “acordo do século” não passa de uma
farsa trágica, criada para atender unilateralmente a Israel, de forma
escandalosa, violando sem pudor leis internacionais, disposições das convenções
de Genebra e decisões do Conselho de Segurança da ONU.
Apesar do seu ambicioso rótulo, não é
nem será sequer um acordo. Os seus elaboradores jamais ouviram os palestinos.
Sabiam que suas propostas encontrariam franca rejeição, como de fato aconteceu.
Razões não faltavam, longe de atender
aos palestinos, as medidas propostas foram feitas sob medida para agradar
Israel.
Se aprovadas, o sonho de um Estado
palestino independente e viável viraria um pesadelo: seu território, reduzido
em mais de 30%, mediante a anexação por Telavive da maioria quase total dos
assentamentos israelenses e do vale do Rio Jordão. O novo país seria uma constelação
de enclaves não-contíguos, separados entre si pelos assentamentos e acessados
através de estradas e túneis, sob controle do exército de Israel.
Em troca, o governo judaico cederia aos
palestinos alguns bocados do deserto de Negev. Com os assentamentos fechando suas
fronteiras, o novo Estado ficaria enclausurado no estado de Israel, sem
fronteiras com outras nações. Os palestinos também não poderiam ter
nem aeroportos, nem portos, devendo seu espaço aéreo e águas costeiras ficarem
controlados pelas forças armadas israelenses. Que teriam direito de destruir
qualquer instalação palestina que Telavive considerasse um risco para a
segurança do país sionista.
Ao contrário de um Estado autêntico, o
dos palestinos não teria um exército: rigorosamente proibido. Armas só para a
polícia, assim mesmo depois de sua aprovação pelo regime judaico. E, ainda tem mais: proibição do Estado
dos palestinos firmar acordos de segurança com qualquer outro país ou entidade,
sem o nihil obstat de Israel. Em suma, os palestinos não teriam propriamente um
Estado, mas algo semelhante a uma colônia.
E o que é particularmente cínico, para
chegar a esse objetivo desastroso, a Autoridade Palestina teria de satisfazer
condições humilhantes: reconhecer Israel como o estado nacional do povo judeu
(quando todos os islamitas pedem um estado igualitário); retirar todas as ações
na Corte Criminal Internacional e na Corte Internacional de Justiça contra os
assentamentos e as brutalidades do exército israelense, algumas em estágio
avançado; desarmar e desmobilizar o Hamas e outros grupos similares; destituir
o Hamas do governo de Gaza, para o qual fora democraticamente eleito;
interromper o fornecimento de alimentação às famílias de terroristas presos;
prender e interrogar quem ousar se opor à ocupação israelense.
Em troca, o governo, ora exercido por
Netanyahu, comprometia-se a não criar novos assentamentos durante quatro anos,
prazo que os palestino teriam para acertar com Israel todos os detalhes da nova
ordem. Findo esse prazo sem acordo, The Donald lavava as mãos, deixando os
israelenses livres para anexarem tudo o que quiserem, marcando um adeus
definitivo á ideia de um Estado palestino. Os outros pontos básicos, em que o
pseudo-acordo do século privilegiou os israelenses e prejudicou os palestinos,
focam o status de Jerusalém e o retorno dos refugiados.
Jerusalém, segundo o morador da Casa
Branca, é e deve permanecer a capital indivisa do Estado de Israel. Que os
palestinos se esqueçam de vir a ter Jerusalém Oriental como sua capital. Para
esse fim, o presidente estadunidense generosamente permite que escolham algum
dos subúrbios de Jerusalém.
Os refugiados que foram expulsos de suas
casas e propriedades agrícolas durante as guerras de 1948 e 1967, jamais
poderiam voltar. “São famílias que viveram lá durante duas gerações e foram
desalojadas em favor de famílias que reclamam o país porque seus ancestrais
viveram lá há oito gerações atrás (Craig Murray, 04-02-2020).
Como era esperado, os líderes palestinos
e quase todos os líderes das demais nações árabes condenaram as ideias de Trump
de forma veemente. O Egito e os países do Golfo, que enviaram embaixadores à
apresentação do plano tinham, aparentemente, as aprovado. Mas, cerca de uma
semana depois, corrigiram sua posição: na reunião da Liga Árabe, todos os
membros manifestaram sua rejeição de maneira clara.
O rei Salman, da Arábia Saudita, grande
aliado dos EUA, foi radical, afirmando que ficaria sempre ao lado do povo
palestino e só aprovaria um plano de paz que eles aceitassem. A Liga Muçulmana,
que abrange 57 países islâmicos inclusive não-árabes, em reunião em Jedá:
“apelou a todos os estados membros para que não se engajassem nesse plano (a
obra de Trump) ou cooperassem, de qualquer maneira com a administração dos EUA
na sua implementação (AFP - 01-02-2020”).
A Europa, como sempre que estão em jogo
interesses fundamentais norte-americanos, não ousou criticar o plano.
Glorificou a preocupação de Trump em procurar uma solução para a crise
palestina. Quanto ao conteúdo, iriam estudar profundamente o seu conteúdo. Macron
também se pronunciou assim, no entanto, informou que um acordo na questão
palestina precisaria respeitar as leis internacionais.
O que é ambíguo: para a opinião pública,
o acordo do século passa ao largo das leis, já para os sábios juristas do
departamento de Estado dos EUA, isso não é verdade. De que lado Macron está, só
o futuro dirá. Como se esperava, Boris Johnson, como vassalo de The Donald,
bateu bumbo pela iniciativa do chefe.
Somente a Alemanha foi econômica nas
apreciações pessoais e firme na sua posição de somente apoiar soluções aceitas
pelos palestinos. Na arquitetura do seu plano, o morador da Casa Branca passou
por cima de um aglomerado de leis internacionais e recomendações da ONU. Amit Gilutz, do B´Tselen, entidade
israelense de direitos humanos, foi contundente em sua crítica: “os
assentamentos de Israel de um modo geral, o roubo das terras e recursos dos
palestinos e a violência inerente à imposição da lei militar sobre um povo
marginalizado indefinidamente, tudo isso contraria as leis internacionais”. Yuval
Shany, professor de leis internacionais na Universidade Hebreia de Jerusalém
afirmou que o plano de Trump não tornaria a Palestina um Estado viável. E
concluiu: “Portanto, ele falha por não implementar o direito dos palestinos à
autodeterminação, sob a lei internacional.”
Lembro que os assentamentos são
considerados ilegais por violarem princípios da lei internacional que proíbem
as nações de expandirem seus territórios pela força militar.
Sua anexação a Israel também é visada
pela Quarta Convenção de Genebra, que proíbe explicitamente os Estados
ocupantes de transferirem seus civis para os territórios ocupados. Há 20 anos, a Corte Internacional de
Justiça condenou os assentamentos judaicos e, em 2017, o mesmo fez o Conselho
de Segurança da ONU, por 15 x 1, taxando-os de “uma flagrante violação das leis
internacionais” e ordenando que o governo de Israel interrompesse a fundação de
novos assentamentos – o que não foi cumprido. Para Kevin Jon Heller, professor
de leis internacionais na Universidade de Amsterdam, a planejada anexação do
Vale do Jordão, se for implementada, será considerada violação da lei
internacional, pois “significa roubo de terras. Pura e simplesmente (al
Jazeera, 02-02-2020)”. Tendo Jerusalém Oriental sido tomada pelo exército de
Israel durante a guerra de 1967, sua anexação também se enquadra no mesmo
ilícito criminal aqui indicado.
A pseudossolução trumpniana deixaria o
cotidiano do novo Estado e dos seus habitantes palestinos à mercê de Israel,
através do controle exercido sobre todo o território em questão. Isso seria
apartheid. Definido como “um regime institucionalizado de opressão sistemática
e dominação de um grupo racial por outro”, o apartheid é criminalizado pelo
Estatuto da Corte Criminal Internacional.
Mutaz Qafisheh, professor de leis
internacionais na Universidade de Hebron, diz: “o plano apresenta uma
prescrição de apartheid, discriminação racial e dominação colonial (al Jazeera,
02-02-2020)”. Que, para The Donald, a lei da selva está acima do direito
internacional, isso não é novidade para ninguém. Discute-se qual a razão que o
levou a escolher este momento, a apenas um mês das eleições judaicas.
Para a maioria dos analistas, seria uma
forma de valorizar Netanyahu, sabidamente coautor do plano, e por tabela ajudar
a conquistar para Bibi a aprovação e os votos do povo de Israel.
Pesquisas recentes mostram que cerca de
50% dos israelenses ficaram encantados com o plano. No entanto, 46% dos
israelenses judeus e 68% dos israelenses árabes acham que se trata de uma
interferência norte-americana em favor de Netanyahu (pesquisa do Instituto
Democrático DE Israel).
Nas primeiras pesquisas depois da
revelação de Trump, a diferença entre a coligação de Netanyahu e os adversários
do partido Azul e Branco continuava praticamente a mesma, com Benny Gantz entre
1 e 3% na frente. Para os palestinos, quem vencer importa pouco, os dois se
comprometeram com a farsa do século.
Acredita-se que, diante da rejeição
palestina, nada mudará, até que Israel comece a anexar assentamentos, como
aliás Netanyahu teria anunciado para breve, conforme voz corrente na imprensa
americana. É difícil imaginar como os palestinos reagirão. Certamente, alguns
ineficazes disparos de mísseis partirão de Gaza, provocando os costumeiros
bombardeios da força aérea israelense.
Os palestinos prometeram levar sua causa
ao Conselho de Segurança da ONU. Não dá para garantir que terão apoio europeu.
Aposto que os países do bloco entrarão com um “deixa disso”, insistindo em
conversações entre palestinos e parças de Netanyahu, para se buscar uma solução
que agrade a todos. A qual jamais será encontrada, enquanto as reuniões irão
minguando até seu fim, amargo porque não darão em nada.
E tudo continuará como antes. Há
alternativas, claro. A mais otimista seria a União Europeia ficar do lado das
leis e dos palestinos, condenando o plano Trump como ilegal. Seja como for, Abbas, o presidente da
Autoridade Palestina, deverá levar a questão para a Assembleia Geral da ONU,
onde os ventos têm ultimamente soprado a seu favor. Pouco adiantará. Decisões
nesta instância não tem poder mandatório.
Certo que os EUA ficariam isolados, mas
o presidente dos EUA nem se toca. O que o preocupa são suas chances de
convencer os eleitores norte-americanos de que seu plano fake é a nona
maravilha do mundo (dizem que ele se acha a oitava). E assim impulsionar sua
candidatura à reeleição. Seu plano não fora concebido para conseguir resolver
problemas do Oriente Médio, mas para conseguir mais votos de crédulos e
evangélicos desavisados; enormes doações e o engajamento entusiásticos de
bilionários judeu-americanos para influenciar jornais e revistas, emissoras de
TV e de Rádio, além de congressistas dos dois partidos.
Num cenário em que a discussão
internacional dos problemas da Palestina está se desvanecendo, a última opção
que os palestinos deveriam adotar seria o apelo ao terrorismo ou a ataques
maciços de mísseis lançados pelo Hizbollah e o Hamas. Desse jeito, perderiam o
apoio da opinião pública internacional, hoje tendendo para o seu lado. Parece
ser mais efetivo o uso da desobediência civil, da paralisação dos serviços
públicos e do fechamento das estradas com manifestações maciças.
A esperada reação violenta dos
ultradireitistas que governam Israel poderia animar a comunidade internacional
a intervir de maneira concreta. Seja o que os palestinos pretendam fazer, o
recomendável é esperar por novembro, pelas eleições dos Estados Unidos. Um
democrata pode ganhar e a justiça começar a prevalecer na Palestina.
Autor:
Luiz Eça - Publicado no Correio da Cidadania
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