O silenciamento da pessoa-chave para
elucidar crimes, que podem estar ligados ao clã Bolsonaro, aprofunda a pergunta
mais perigosa da República.
Homem caminha em frente a um mural de Marielle Franco, no Rio de Janeiro.
Na semana em que completou 700 dias
que Marielle Franco foi assassinada, a notícia não é a elucidação do crime – e,
sim, o assassinato da pessoa-chave para elucidar o crime. A execução de
Marielle, uma vereadora do Rio de Janeiro e uma ativista dos direitos
humanos, assinalou o momento em que um limite foi superado no Brasil. O não
esclarecimento até hoje, quase dois anos depois, de quem foi o mandante e por
que ela foi morta aponta a crescente e cada vez mais perigosa incapacidade das
instituições de proteger a democracia no país. O silenciamento de Adriano da
Nóbrega, premeditado ou não, no domingo, 9/2, mostra que o Brasil é um país em
que os limites entre lei e crime foram borrados num nível sem precedentes. Não
sabemos quem está no Governo. E precisamos saber.
A maioria já conhece os fatos. Mas é
preciso reafirmá-los. Adriano da Nóbrega poderia esclarecer o esquema
de “rachadinha”, desvio dos salários de servidores, no gabinete do então
deputado estadual Flávio Bolsonaro, hoje senador e filho do presidente
Jair Bolsonaro. Poderia esclarecer qual é a profundidade das relações da
família Bolsonaro com as milícias do Rio de Janeiro. Poderia ajudar a
esclarecer o assassinato de Marielle Franco.
Poderia, mas não pode mais. Foi morto
numa suposta troca de tiros durante uma operação conjunta da Polícia Militar da
Bahia e da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Dezenas de policiais treinados foram
supostamente incapazes de prender, numa casa isolada, uma pessoa considerada
essencial para a elucidação de crimes que assombram a República. Foram capazes
apenas de matá-lo. Segundo o advogado do morto, Paulo Emílio Catta Preta,
Adriano teria afirmado dias antes que, caso fosse encontrado pela polícia,
seria eliminado como “queima de arquivo”. Quando foi assassinado, estava
escondido na casa de um vereador do PSL, num sítio no município de
Esplanada, na Bahia. O PSL até há pouco era o partido do presidente e também de
seu primogênito.
Quem era Adriano da Nóbrega?
Ex-capitão do BOPE, elite da polícia
militar carioca, Adriano estava foragido havia um ano, suspeito de chefiar a
milícia de Rio das Pedras, a mais antiga do Rio, e também o Escritório do
Crime, um grupo de matadores de aluguel. Formado por policiais e ex-policiais
civis e militares, o Escritório do Crime está relacionado pelas investigações à
execução de Marielle Franco. Adriano já havia sido preso três vezes, por
homicídio e tentativas de homicídio, e liberado. Sua mulher e sua mãe
trabalharam no gabinete de Flávio Bolsonaro até novembro de 2018.
Adriano era próximo de Fabrício
Queiroz, suspeito de comandar o esquema da rachadinha para Flávio Bolsonaro e
de envolvimento com a milícia de Rio das Pedras. Queiroz, por sua vez, era não
só funcionário, mas amigo pessoal de Jair Bolsonaro desde os anos 1980. Também
era policial militar aposentado. Um cheque de Queiroz, no valor de 24 mil
reais, foi depositado na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro.
O homem que foi morto era publicamente
respaldado pela família Bolsonaro no exercício de seus mandatos como
parlamentares. Como deputado, Flávio deu ao então policial a Medalha de
Tiradentes, a mais alta honraria da Assembleia Legislativa do Rio. Naquele
momento, 2005, Adriano cumpria prisão pelo assassinato de um guardador de
carros que havia denunciado policiais. Era a segunda vez que o filho mais velho
do presidente homenageava o PM. Também em 2005, Jair Bolsonaro, então deputado
federal, fez um discurso na Câmara dos Deputados, defendendo Adriano e
protestando contra a sua condenação por homicídio. Segundo o Ministério Público
do Rio, as contas de Adriano foram usadas por Queiroz para transferir o
dinheiro do esquema de “rachadinha” no gabinete de Flávio Bolsonaro.
Os dois acusados pelo assassinato de
Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes são o policial
reformado Ronnie Lessa, que teria dado os tiros, e o ex-PM Élcio Vieira de
Queiroz, que teria dirigido o carro. Ambos são suspeitos de pertencer ao
Escritório do Crime, que seria chefiado por Adriano da Nóbrega. Ronnie
Lessa, por sua vez, vivia no mesmo condomínio de Jair Bolsonaro, na Barra da
Tijuca.
Neste mapa de coincidências e
suspeições, Adriano da Nóbrega era a pessoa capaz de juntar os pontos e
preencher as lacunas. Mas está morto.
O que não é possível
Todas as coincidências podem ser apenas
coincidências. É possível que a família Bolsonaro seja apenas ingênua ao
escolher amigos e colaboradores. É possível que Flávio Bolsonaro estivesse
apenas distraído demais para notar o que, suspeita-se, estava acontecendo no
seu gabinete sob o comando de seu amigo Queiroz. É possível que Bolsonaro não
tivesse tido relações com este vizinho chamado Ronnie Lessa. É possível que o
grupo de policiais da Bahia e do Rio que foram prender Adriano sejam apenas
incompetentes. É possível que essa quantidade de policiais militares e ex-policiais
suspeitos de crimes seja apenas ocasional e não revele nada sobre o que a
instituição Polícia Militar se tornou.
O que não é possível é continuarmos sem
saber se há ou não envolvimento de Bolsonaro e seu clã com criminosos. Se
há ou não envolvimento de Bolsonaro e seu clã com as milícias. Se houve ou não
o esquema de rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro. O que não é possível é
700 dias depois do assassinato de Marielle Franco o Brasil – e o mundo – não
saber quem mandou matá-la. E por quê.
Nada é normal no Brasil de hoje
Há um esforço para tratar o que hoje
vive o Brasil como normalidade. Como se houvesse apenas anomalias que pudessem
ser corrigidas no curso do processo eleitoral e sob a vigilância de
instituições robustas. Como se o que está em curso fosse do jogo da democracia.
Não há, porém, nada de normal no que acontece hoje no Brasil.
Há forte desconfiança de que Adriano da
Nóbrega foi executado para não poder contar o que sabia. Ainda que tenha sido
incompetência da polícia, como achar que é normal uma parte significativa da
população brasileira ter certeza de que as PMs trabalham para si mesmas ou
para interesses que não são os da população nem da justiça? Como achar normal
que esta rede de suspeitos sejam policiais ou ex-policiais? Como achar normal
conviver com o poder das milícias, que são formadas por integrantes das forças
de segurança formais dos estados? E como achar normal o DNA de milicianos
marcarem atos e fatos do presidente da República, de um senador da República
que é filho do presidente e de outros familiares do clã? Este Brasil não nasceu
agora, mas só hoje temos um presidente e uma família presidencial envolvida em
tantas coincidências criminosas, que produzem cada vez mais sangue e parecem
estar cada vez mais longe de serem esclarecidas.
Bolsonaro e as instituições
A trajetória de Jair Bolsonaro pode ser
contada pela ação e também pela inação das instituições brasileiras. Se o então
capitão tivesse sido condenado pelo Superior Tribunal Militar, em vez de absolvido,
por planejar colocar bombas em unidades militares para protestar contra os
baixos salários, o país seria diferente hoje? Se o então deputado federal Jair
Bolsonaro tivesse sido julgado e condenado por cada declaração racista e de
incitação à violência que pronunciou durante seus quase 30 anos de Congresso, o
Brasil seria diferente hoje? Se o então parlamentar Jair Bolsonaro tivesse
respondido na Justiça e sido cassado pelos seus pares por homenagear um
torturador durante o impeachment de Dilma Rousseff, o Brasil seria
diferente hoje?
O exercício do “e se” vale apenas como
isso mesmo, um exercício para iluminar melhor o que aconteceu de fato. Ou não
aconteceu de fato. O que está diante de nós, hoje, é o que fazer diante desta
realidade agora. Não que país seria o Brasil, mas sim que país será o Brasil
caso não descobrirmos por que não podemos descobrir quem mandou matar Marielle
Franco.
A pergunta mais perigosa
A aparente impossibilidade de elucidar a
morte de Marielle, que já provocou alarmantes declarações de autoridades
públicas no passado recente, nos lança em perguntas cada vez mais perigosas. As
perguntas perigosas costumam ser as mais importantes.
Sabemos há muito que há um poder
paralelo no Brasil. Um poder do crime que, em diferentes momentos, teve e tem
ramificações na estrutura do Estado. As milícias cariocas, herdeiras dos
esquadrões da morte formados por policiais, são o exemplo mais bem acabado
desta distopia que virou realidade. E também de sua evolução ainda mais
perversa, ao confundirem-se nas últimas décadas com o próprio Estado, na medida
em que são agentes do Estado usando a estrutura do Estado para controlar as
comunidades, lucrar com esse domínio e executar quem se opõe ao seu poder.
Começaram a atuar com a desculpa de proteger as favelas e periferias do tráfico
de drogas. E se tornaram ainda piores do que o tráfico. Em alguns casos são
sócias dos traficantes, na maioria dos casos mais poderosas.
Como o cidadão pode se contrapor a um
poder que controla ao mesmo tempo o crime e as forças de repressão ao crime, a
usurpação dos serviços públicos e os próprios serviços públicos, um poder que
comercializa até mesmo lotes de votos numa eleição, como fazem algumas
milícias? As muitas comunidades que hoje são reféns das milícias no Rio podem
contar como é viver sob o jugo da lei que corrompe a lei, da polícia que é
bandida.
O que Adriano da Nóbrega poderia
esclarecer é se este poder já deixou de ser paralelo. Se chegamos a um ponto em
que um e outro são o mesmo também no Planalto. Poderia, mas não pode mais.
E nós, que (ainda) estamos vivos, o que podemos? E, mais importante, o que
faremos?
Eliane Brum é escritora, repórter e
documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de
Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho
da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma
Duas.
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