Anne Applebaum
relata a fome premeditada por Stalin para subjugar a população da Ucrânia,
frear qualquer tentativa de nacionalismo e liquidar as organizações que
resistiam a integrá-la à URSS.
FERNANDO VICENTE
Em 1928, Stalin fez uma
viagem pela Sibéria que durou três semanas. Tinha derrotado seus adversários
dentro do Partido Comunista e já era o amo supremo da União Soviética. Os
cereais começavam a escassear no imenso território e, depois do que viu e ouviu
naquela viagem, Stalin tirou as conclusões ideológicas pertinentes. Segundo a
doutrina marxista, a culpa era dos camponeses retrógrados, que, graças à
expropriação dos latifúndios e à liquidação dos kulaks, tinham se tornado
pequenos proprietários de terra e contraído as taras características da
burguesia. A solução? Obrigá-los a ceder suas granjas e a se incorporar às
fazendas coletivas que os tornariam proletários, a força poderosa e renovadora
que substituiria sua mentalidade burguesa pelo fervor solidário dos
bolcheviques.
Essa é a origem, segundo Anne
Applebaum, em seu extraordinário livro Red Famine: Stalin’s War on Ukraine (fome
vermelha: a guerra de Stalin contra a Ucrânia), do colapso da agricultura em
todos os domínios da URSS, mas que golpearia principalmente, com ferocidade
inigualável, a Ucrânia, causando, nos anos de 1932 e 1933, vários milhões
de mortes e cenas arrepiantes de suicídios, assassinatos de crianças, saques e
canibalismo.
A pesquisa realizada pela autora
revela ao mundo, em sua dimensão apocalíptica, um acontecimento que, pelo menos
em suas características reais, tinha sido ocultado pela censura stalinista,
apesar dos esforços isolados de alguns historiadores como Robert Conquest,
em The Harvest of Sorrow (a colheita do sofrimento), para divulgá-lo. Mas
só agora, com a independência da Ucrânia, os documentos e testemunhos relativos
àquele holocausto podem ser consultados e Anne Applebaum, que domina plenamente
o russo e o ucraniano, tem feito isso com meticulosidade e objetividade
escrupulosa.
Segundo ela, a fome foi premeditada
por Stalin e seu séquito de cúmplices – Molotov, Kaganovich, Voroshilov,
Postishev, Kosior e alguns outros − para subjugar a Ucrânia, frear qualquer
tentativa de nacionalismo em seu seio e liquidar as organizações que resistiam
a integrá-la à URSS sob o açoite de Moscou. Ela cita como prova o fato de que,
naqueles mesmos anos, o Politburo soviético reduziu drasticamente a publicação
de livros e jornais em ucraniano, assim como o ensino dessa língua nas escolas
e universidades, e impôs o russo como idioma oficial do país.
Seja como for, em 1929 é iniciada a
dissolução das pequenas propriedades agrícolas a fim de incorporá-las às
fazendas coletivas. Os camponeses, que tinham visto com simpatia a revolução,
resistem a entregar suas terras e seu gado, e a se associar às enormes empresas
coletivas que, dirigidas por burocratas do partido, costumam ser pouco eficientes.
As instruções de Stalin são rigorosas: aquela resistência só pode vir dos
inimigos de classe que querem acabar com o socialismo, e deve ser esmagada sem
piedade pelos revolucionários.
As brigadas comunistas percorrem os
campos confiscando propriedades, gado, ferramentas agrícolas e sementes, e
mandando para a prisão quem não colabora. Um dos chefes do Gulag, na Sibéria,
envia um telegrama a Moscou pedindo que não lhe enviem mais detidos porque já
não tem como alimentá-los. Ao mesmo tempo, um prisioneiro escreve para sua
família: “Que maravilha! Eles me dão um pãozinho por dia!”.
As colheitas começam a encolher, os
roubos e ocultação de alimentos se multiplicam por todo lugar, Stalin insiste
que o partido deve ser “implacável” em sua luta contra os sabotadores da
revolução, e a fome entra em cena com suas terríveis sequelas: roubos,
assassinatos, suicídios, aldeias que desaparecem porque todos os seus
habitantes fugiram para as cidades na esperança de encontrar trabalho e
alimentos. Os cadáveres já são tão numerosos que ficam estendidos nas ruas e
estradas porque não há gente suficiente para enterrá-los.
Os testemunhos reunidos por Anne
Applebaum são de arrepiar: há pais que matam seus filhos com as próprias mãos
para que não sofram mais e, os mais desesperados para se alimentar com eles. Já
comeram todos os cães, cavalos, porcos, gatos e até ratos que conseguiam pegar,
e os comunicados que chegam à Ucrânia vindos de Moscou são cada dia mais
urgentes: negar a fome e, principalmente, o canibalismo e os suicídios, e punir
sem dó os verdadeiros causadores dessa catástrofe: os inimigos de classe, os
fascistas, os kulaks, os responsáveis reais pelas calamidades que se abatem
sobre a Ucrânia.
Quantos morreram? Cerca de cinco
milhões de ucranianos, pelo menos. Mas não há como saber com exatidão, porque
as estatísticas eram forjadas pela disciplina partidária que assim exigia ou
pelo medo dos burocratas do partido de ser punidos como responsáveis pela fome.
O Kremlin impôs, além disso, uma versão oficial dos acontecimentos que era
reproduzida não só pela imprensa comunista, mas também pela capitalista, que
fazia isso por meio de jornalistas vendidos ou covardes, como o repulsivo
Walter Duranty, então correspondente do jornal The New York Times, que,
comprado com casas e banquetes por Stalin, dava um jeito, em artigos que
pareciam redigidos por um Pôncio Pilatos moderno, de apresentar um quadro de
normalidade e desmentir os exageros de certos testemunhos que conseguiam vazar
para o exterior sobre o que realmente ocorria na URSS e, principalmente, na
Ucrânia. Uma das exceções foi o britânico Gareth Jones, quem conseguiu
percorrer a pé o coração da fome durante várias semanas e contar aos leitores
ingleses do jornal The Evening Standard os horrores vividos na
Ucrânia.
Ler um livro como o de Anne Applebaum
não é um prazer, e sim um sacrifício. Mas obrigatório, se queremos conhecer os
extremos a que podem levar o fanatismo ideológico, a cegueira e a imbecilidade
que o acompanham, e a irremediável violência que, mais cedo ou mais tarde, vem
como consequência. A fome e as mortes na Ucrânia ajudam a entender melhor o
terrorismo jihadista e a bestialidade irracional que consiste em se tornar uma
bomba humana e explodir em um supermercado ou uma discoteca, pulverizando
dezenas de inocentes. “Ninguém é inocente!” era um dos gritos do terror
anarquista segundo Joseph Conrad, que descreveu melhor do que ninguém essa
mentalidade em O Agente Secreto.
Se ler o livro de Anne Applebaum
provoca calafrios, como terão sido os anos que sua autora levou para
escrevê-lo? Posso imaginá-la muito bem, imersa horas e horas em arquivos
empoeirados, lendo informes, cartas de suicidas, sermões, e descobrindo de
repente que está com o rosto encharcado de lágrimas ou que está tremendo da
cabeça aos pés, como uma folha de papel, transubstanciada por aquele
apocalipse. Ela deve ter sentido mil e uma vezes a tentação de abandonar essa
tarefa terrível. No entanto, continuou até o fim, e agora esse testemunho atroz
está ao alcance de todos. Aconteceu há quase um século lá na Ucrânia, mas não
nos enganemos: não é coisa do passado, continua ocorrendo, está ao nosso redor.
Basta ter a coragem da Anne Applebaum para ver e enfrentar isso.
Autor: Mario
Vargas Llosa - Direitos mundiais de imprensa em todas as línguas reservados a
Edições EL PAÍS, SL, 2019. © Mario Vargas Llosa, 2019.
Nenhum comentário:
Postar um comentário