Como funciona
a 'máquina' de difamação operada pela ala mais radical de apoiadores do
presidente Jair Bolsonaro nas redes sociais.
A repórter do Estado Constança
Rezende tornou-se alvo no domingo, 10, de um violento ataque digital.
Quando se preparava para sair de casa e almoçar com a família, Constança foi
informada por uma de suas fontes via WhatsApp de que um post publicado pelo
canal Terça Livre, que reúne militantes bolsonaristas e pupilos do escritor e
pensador Olavo de Carvalho, estava provocando uma forte reação contra ela
nas redes sociais. A razão: uma suposta tentativa de “arruinar” o
presidente Jair Bolsonaro com as reportagens sobre o Caso
Queiroz. Constança se dedica a essa cobertura desde o princípio.
A partir da publicação do Terça Livre,
com base em declarações distorcidas de Constança divulgadas por um blogueiro
belgo-marroquino num site francês, a vida da jornalista virou um tormento. Ela
foi xingada, ameaçada e tornou-se tema de memes nas redes. Páginas falsas dela
foram criadas na internet. Pior: a certa altura, o próprio presidente
compartilhou o post do Terça Livre em suas redes sociais, amplificando os
ataques. O Estado, que logo publicou uma reportagem sobre o caso em
seu site, mostrando que as declarações da repórter haviam sido deturpadas,
também acabou se transformando em alvo das milícias virtuais, que “subiram” a
hashtag #EstadaoMentiu no Twitter, para tentar desqualificar o jornal.
O caso de Constança revela, em toda a
sua extensão, o funcionamento da máquina de assassinato de reputação operada
por grupos bolsonaristas e olavistas, que formam as correntes mais radicais e
dogmáticas da chamada “nova direita” do País. Em razão dos ataques virtuais
desferidos pela turma, várias vítimas acabam por restringir o acesso a seus
perfis e silenciar sobre o tema que deu origem às agressões. Algumas pessoas
simplesmente apagam suas páginas, aterrorizadas pela agressividade dos
comentários.
Hegemonia. Nesta reportagem
especial, baseada em conversas com integrantes e ex-integrantes dessa
engrenagem, o Estado mostra como ela funciona, quem são seus
principais líderes e apoiadores e quais são seus tentáculos nos gabinetes
palacianos e parlamentares. Conta, também, os casos de outras vítimas das
milícias virtuais bolsonaristas e olavistas. Além de jornalistas, a lista
inclui personalidades e influenciadores da própria direita e integrantes do
governo, como o vice-presidente Hamilton Mourão, o ministro da Justiça e
Segurança Pública, Sérgio Moro, e o ministro da Educação, Ricardo
Vélez Rodríguez, indicado pelo próprio Olavo de Carvalho.
O ex-secretário-geral da Presidência
da República Gustavo Bebianno, que deixou o cargo em meados de fevereiro,
foi chamado de “mentiroso” nas redes por Carlos Bolsonaro, um dos filhos
do presidente, cujo post foi compartilhado pelo pai, por afirmar que havia
conversado três vezes com Bolsonaro sobre o uso de “laranjas” nas eleições
por candidatos do PSL.
Na campanha eleitoral, a turba já
havia se levantado contra qualquer um que pudesse colocar em risco a hegemonia
de Bolsonaro junto ao eleitorado de centro-direita. O ex-presidenciável João
Amoêdo, do partido Novo; o atual governador de São Paulo, João Doria (PSDB);
o empresário Flávio Rocha, pré-candidato à Presidência pelo PRB; e até a
garotada do MBL foram alvos de ataques torpes da máquina de difamação
bolsonarista e olavista.
‘Jacobinos’. Como cruzados em
luta para conquistar Jerusalém, os bolsominions e os olavetes, como eles são
mais conhecidos fora de seus mundinhos, insurgem-se contra os adversários de
Bolsonaro e Olavo de Carvalho e contra aliados que ousam discordar dos dois,
ainda que de forma pontual. Não por acaso, receberam a alcunha de “jacobinos”,
em referência ao movimento surgido na Revolução Francesa, em 1789, que defendia
o extermínio da aristocracia e se tornou conhecido por impor o terror no
país. No Brasil, nos tempos do PT, também havia uma máquina implacável de
destruição de reputação de adversários, em especial de jornalistas. A diferença
é que, naquela época, os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma
Rousseff e seus parentes procuravam não se envolver diretamente, ao menos
em público, na “guerra suja”. Além disso, a tropa de choque petista na internet
recebia fartos recursos oficiais, para defender o governo e o partido e atacar
os seus críticos.
Agora, o quadro mudou. Bolsonaro, seus
filhos e alguns assessores palacianos e parlamentares envolvem-se diretamente
nos ataques. E, por ora, de acordo com as informações disponíveis, sites e
páginas como o Terça Livre, Isentões e Senso Incomum, que agem como se
estivessem numa “guerra santa” contra infiéis, não estão recebendo recursos
públicos para financiar suas atividades.
Na linha de frente dos ataques aos
adversários e críticos de Bolsonaro e de Olavo figuram dois filhos do
presidente – o vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), responsável pela
bem-sucedida campanha do pai nas redes e ainda hoje o principal administrador
de suas páginas e perfis pessoais, e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP),
o mais ideológico da família e o mais ligado a Olavo. Ao lado deles, instalados
no Palácio do Planalto, destacam-se o assessor internacional da Presidência,
Filipe G. Martins, e os assessores presidenciais José Matheus Sales Gomes –
criador dos sites Bolsonaro Zuero e Bolsonaro Opressor 2.0 na campanha e
considerado o “gênio” das redes do presidente, e Tercio Arnaud Tomaz, ambos
ex-funcionários do gabinete de Carlos, na Câmara Municipal do Rio. Vejam no quadro abaixo o Ninho de intrigas - A máquina de bolsonaristas e olavistas para enfrentar adversários e até aliados nas redes sociais.
Desgaste. Aparentemente, Carlos é
o único que tem a senha para operar as páginas e perfis pessoais de Bolsonaro,
além do próprio presidente. Na semana passada, ele afirmou numa rara
entrevista (ao canal da jornalista Leda Nagle no YouTube) que, às vezes,
sente-se “culpado” pelo conteúdo que publica na internet e leva um “puxão de
orelha” do pai. Não se sabe, porém, se ele disse isso para tentar isentar
Bolsonaro de responsabilidade pelas controvertidas publicações feitas em seu
nome ou para exibir sua força na gestão do conteúdo nas páginas do
presidente.
Os analistas que conhecem de perto o
grupo mais próximo de Bolsonaro afirmam que Filipe Martins, um pupilo fervoroso
de Olavo que foi introduzido no círculo bolsonarista pelas mãos de Eduardo, é
quem está por trás de muitos ataques aos adversários e críticos do “professor”
e do presidente. Eles dizem reconhecer o inconfundível estilo “jacobino” de
Martins em vários dos ataques desfraldados por Olavo nos últimos tempos.
Quem conhece bem a forma de atuação do
grupo afirma também que Olavo está sendo “brifado” em vários de seus posts por
Martins e outros olavetes que ganharam cargos oficiais no atual governo e usado
por eles para desferir ataques em todas as direções. Assim, Olavo dá a sua
contribuição para preservar seus discípulos do desgaste inevitável que teriam
se fizessem, eles mesmos, as publicações mais agressivas.
O caso de Mourão – “detonado” diversas
vezes por Olavo, que o chamou de “palpiteiro” e afirmou que o vice é “uma
vergonha para as Forças Armadas”, por causa de suas posições em defesa da opção
das mulheres pelo aborto, contra a relativização da posse de armas e por suas
críticas contra a política externa – é emblemático. Segundo o site O
Antagonista, Mourão identificou as digitais de Martins, que conversa com
frequência com o escritor, nos ataques desferidos contra ele.
Comando central. O
diplomata Paulo Roberto de Almeida, exonerado da presidência do Instituto
de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri) no início de março e outro alvo
dos “petardos” de Olavo, também atribuiu a Martins o seu afastamento do cargo.
“Ele é um desses olavistas fanáticos, que tem a verdadeira fé”, disse em
recente entrevista ao Estado.
Muitas vezes, como no caso de Almeida,
Mourão e Constança, os ataques virtuais parecem seguir uma estratégia bem
elaborada e as orientações de um comando central, com o apoio de
influenciadores como Allan dos Santos, do Terça Livre, os youtubers Nando Moura
e Bernardo Küster e o empresário Leandro Ruschel, e de propagadores com
milhares de seguidores nas redes, como Bruna Luiza Becker, ex-namorada de
Martins que se tornou assessora de Vélez Rodríguez, a advogada Cláudia Wild e o
perfil do Twitter Tonho Drinks.
De acordo com especialistas em redes
sociais, os ataques digitais têm o apoio de robôs, que funcionam como uma
espécie de faísca para incendiar a massa. No WhatsApp, por exemplo, onde os
grupos podem ter no máximo 250 pessoas, costuma haver sempre dois ou três
perfis falsos, destinados a enviar de forma automática mensagens com ataques a
fulano ou beltrano. Em seguida, elas são compartilhadas pelos demais
integrantes dos grupos em suas próprias redes, provocando o “efeito manada”.
Mas, mesmo nesses casos, deve-se levar
em conta que há uma adesão espontânea que torna difícil caracterizar os grupos
bolsonaristas e olavistas como membros de uma rede 100% estruturada de
comunicação virtual. Nas eleições de 2018, o PT até tentou implementar algo do
gênero por baixo do pano, remunerando os participantes, mas a iniciativa acabou
“vazando” e o partido teve de abortá-la, para abafar o caso e evitar punições
pesadas da Justiça Eleitoral. Uma rede profissional de milícias virtuais,
encarregada de destruir a reputação de opositores e críticos pontuais, também
exigiria um caminhão de dinheiro, difícil de obter com o cerco ao caixa 2
eleitoral e à corrupção.
Autor:
Jornalista José Fucs – O Estado de São Paulo
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