Cada detalhe
da sua vida digital é uma gota no oceano do ‘big data’ Você confia
inocentemente que ninguém vai bisbilhotar ali!
Cristina Erre
“Funes não só se lembrava de cada
folha de cada árvore de cada montanha, mas de cada uma das vezes que a
percebera ou imaginara". Um dia, o jovem Ireneo Funes caiu do cavalo,
perdeu a consciência e, quando se recuperou, "o presente era quase intolerável
de tão rico e nítido, e também as recordações mais antigas e triviais".
Ele é o personagem de Funes o
Memorioso, um dos melhores contos de Jorge Luis Borges, incluído em Ficções (1944).
Essa mente prodigiosa — a do protagonista da história, não a de
Borges — se vê sufocada pelo acúmulo dos mínimos detalhes. Era capaz de
reconstruir um dia inteiro, mas levava um dia inteiro para fazer isso. "O
que foi pensado apenas uma vez não podia mais ser apagado". Parece um dom
milagroso, mas é uma desgraça. Porque Ireneo Funes é incapaz de ter ideias
gerais. Borges conclui: "Pensar é esquecer diferenças, é generalizar,
abstrair. No mundo abarrotado de Funes só havia detalhes, quase imediatos”.
Os humanos comuns tendem a esquecer
mais do que a reter cada detalhe da folha de uma árvore. Isso nos permite
manter o equilíbrio, simplificar a complexidade e não sofrer tanto como Funes,
que não conseguia dormir. Também esquecemos, consciente ou inconscientemente,
coisas de nós mesmos que não queremos reter, e assim vamos construindo um eu em
parte real e em parte fictício.
De vez em quando, o Facebook te
assalta com memórias. Há dois anos você escreveu isto, quer compartilhar
novamente? Talvez algo te arranque um sorriso, talvez te envergonhe. Talvez
apareça a imagem daquela pessoa amada e perdida ou do companheiro que te
deixou. Talvez uma piada de mau gosto, rótulos em fotos de uma noite louca.
Qualquer coisa que você não queria que perdurasse.
Os seus rastros digitais são
extenuantes. Em algum canto do big data estão todas as mensagens que
você trocou, os caminhos que seguiu todos os dias, as suas buscas, as fotos de
que você gostou, sua lista de amigos, seus cookies(sim, aceito). Muito
poucos se preocupam em apagar o rastro de seu passado, o que exigiria tanto
tempo quanto dedicaram ao longo do dia mexendo no celular. Esperamos que nesse
oceano de dados ninguém vai remexer, só mesmo os algoritmos que tiram
proveito disso. A menos que você se torne uma figura pública, é claro, e
os trolls se empenhem em fuçar nos seus antigos tuítes para
descobrir indiscrições. Mas não é preciso ser famoso. Em qualquer site ou
aplicativo, não só os seus dados te acompanham, mas os seus metadados, um
perfil que você não escreveu.
Ireneo Funes "achava que na hora
da morte ainda não teria terminado de classificar todas as memórias da
infância". Para nós, cidadãos do século 21, chegará a hora sem termos
podido apagar tudo o que desejaríamos que não continuasse ali.
Autor: Ricardo de Querol – Publicado no El País
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