No Vale do
Silício proliferam escolas sem tablets nem computadores e jardins da infância
onde o celular é proibido por contrato.
Autor: Pablo Guimón - Palo Alto (Califórnia, EUA)
A professora, armada com giz colorido,
acrescenta frações no grande quadro-negro, emoldurado em madeira rústica, que
cobre a parede frontal da classe. As crianças da quarta série, 9 e 10 anos,
fazem suas contas nas carteiras com lápis e cartelas. A sala de aula é
revestida de papéis: mensagens, horários, trabalhos dos alunos. Nenhum saiu de
uma impressora. Nada, nem mesmo os livros didáticos, que as próprias crianças
elaboram à mão, foi feito por computador. Não há nenhum detalhe nesta aula que
possa estar fora de sintonia com as memórias escolares de um adulto que
frequentou a escola no século passado. Mas estamos em Palo Alto. O coração
do Vale do Silício. Epicentro da economia digital. Habitat daqueles que
pensam, produzem e vendem a tecnologia que transforma a sociedade do século
XXI.
Escolas de todo o mundo se esforçam
para introduzir computadores, tablets, quadros interativos e outros prodígios
tecnológicos. Mas aqui, no Waldorf of Peninsula, uma escola particular onde são
educados os filhos de administradores da Apple, Google e outros gigantes
tecnológicos que rodeiam esta antiga fazenda na Baía de São Francisco, as telas
só entram quando eles chegam ao secundário (o ensino médio).
"Não acreditamos na caixa preta,
na ideia de que você coloca algo em uma máquina e sai um resultado sem que se
compreenda o que acontece lá dentro. Se você faz um círculo perfeito com um
computador, deixa de ter o ser humano tentando alcançar essa perfeição. O que
desencadeia o aprendizado é a emoção, e são os seres humanos que produzem
essa emoção, não as máquinas. Criatividade é algo essencialmente humano. Se
você coloca uma tela diante de uma criança pequena, você limita suas
habilidades motoras, sua tendência a se expandir, sua capacidade de
concentração. Não há muitas certezas em tudo isso. Teremos as respostas daqui a
15 anos, quando essas crianças forem adultas. Mas queremos correr o risco?
", pergunta Pierre Laurent, pai de três filhos, engenheiro de computação
que trabalhou na Microsoft, na Intel e em várias startups, e agora preside
o conselho da escola.
Suas palavras ilustram o que está
começando a ser um consenso entre as elites do Vale do Silício. Os adultos que
melhor entendem a tecnologia dos celulares e dos aplicativos querem que seus
filhos se afastem dela. Os benefícios das telas na educação infantil são
limitados, argumentam, enquanto o risco de dependência é alto.
USO DE CELULARES EM MENORES NOS
ESTADOS UNIDOS
Famílias onde há pelo menos uma
criança menor de oito anos.
Fonte: Common Sense Media. EL PAÍS
Os pioneiros tinham isso claro desde o
início. Bill Gates, criador da Microsoft, limitou o tempo de tela de seus
filhos. "Não temos telefones na mesa quando estamos comendo e só lhes
demos celulares quando completaram 14 anos", disse ele em 2017. "Em
casa, limitamos o uso de tecnologia para nossos filhos", explicou Steve
Jobs, criador da Apple, em uma entrevista ao The New York Times em
2010, na qual disse que proibia os filhos de usarem o recém-criado iPad.
"Na escala entre doces e crack, isso está mais próximo do crack",
declarou Chris Anderson, ex-diretor da revista Wired, bíblia da cultura
digital, também ao The New York Times.
Laurent, que só deu um celular ao
filho mais novo quando ele estava no último ano do ensino básico (14 ou 15
anos), alerta para uma mudança perigosíssima no modelo de negócios, do qual foi
testemunha em sua vida profissional. "Qualquer um que faz um aplicativo
quer que seja fácil de usar", explica. "É assim desde o começo. Mas
antes queríamos que o usuário ficasse feliz em comprar o produto. Agora,
com smartphones e tablets, o modelo de negócios é diferente: o
produto é gratuito, mas são coletados dados e colocados anúncios. Portanto, o
objetivo hoje é que o usuário passe mais tempo no aplicativo, a fim de
coletarem mais dados ou colocarem mais anúncios. Ou seja, a razão de ser do
aplicativo é que o usuário gaste o máximo de tempo possível diante da tela.
Eles são projetados para isso."
O problema da relação das crianças com
a tecnologia é que o ritmo vertiginoso em que se transforma dificulta a
reflexão e o estudo. Uma pesquisa da Common Sense Media, organização sem
fins lucrativos, “dedicada a ajudar as crianças a se desenvolverem em um mundo
de mídia e tecnologia”, dá uma ideia da velocidade das mudanças: as crianças
norte-americanas de zero a oito anos passavam em 2017 uma média de 48 minutos
por dia no celular, três vezes mais que em 2013 e 10 vezes mais que em 2011.
"Quando teve início todo esse furor pelos smartphones?", se
pergunta María Álvarez, vice-presidenta da organização. "Não tem mais que
12 ou 13 anos. E os primeiros tablets ainda menos. É preciso ainda
muitas pesquisas para determinar qual é o impacto que essa exposição pode ter
nas crianças pequenas. Mas há alguns estudos que começam a ver uma relação
entre essa tecnologia e certos marcos na educação. Eles oferecem indicações que
os pais precisam levar em conta.”
Um estudo publicado em janeiro deste
ano na revista médica JAMA Pediatricsrevelou que um tempo maior diante da
tela aos dois e três anos está associado com atrasos das crianças em
atingir marcos do desenvolvimento dois anos depois. Outros estudos relacionam o
uso excessivo de telefones celulares por adolescentes com falta de sono, risco
de depressão e até suicídios. A Academia de Pediatras dos Estados Unidos
publicou algumas recomendações em 2016: evitar o uso de telas para crianças
menores de 18 meses; apenas conteúdo de qualidade e visualizações na companhia
de pais, para crianças entre 18 e 24 meses; uma hora por dia de conteúdo de
qualidade para crianças entre dois e cinco anos de idade; e, a partir dos seis
anos, limites coerentes no tempo de uso e conteúdo.
Acontece que definir limites não é
fácil para os pais que trabalham. E isso leva a uma redefinição do que
significa a brecha digital. Até recentemente, a preocupação era que as crianças
mais ricas levassem vantagem por acessar a Internet antes. Hoje, segundo a
Common Sense Media, 98% dos domicílios com filhos nos EUA possuem
celulares, ante 52% em 2011. Quando a tecnologia se generalizou, o problema é o
contrário: as famílias com elevado poder aquisitivo têm mais facilidade para
impedir que seus filhos passem o dia na frente de celulares. Enquanto os filhos
das elites do Vale do Silício são criados entre lousas e brinquedos de madeira,
os das classes baixa e média crescem colados em telas.
Adolescentes de famílias de baixa
renda, de acordo com um estudo da Common Sense Media, gastam duas horas e 45
minutos por dia a mais nas telas do que aqueles de famílias de alta renda.
Outros estudos indicam que crianças brancas são significativamente menos
expostas a telas do que negras ou hispânicas. A lacuna é vista até mesmo dentro
do Vale do Silício. Dirigindo 15 minutos para o norte, partindo do Waldorf of
Peninsula, instituição cuja matrícula é de cerca de 30.000 dólares por ano
(117.000 reais), chega-se à escola pública Hillview. A primeira só introduz as
telas no secundário. A segunda anuncia um programa pelo qual cada aluno tem um
iPad. Na primeira, o visitante é recebido por um espantalho rústico, colocado
em uma horta que os alunos cultivam. Na segunda, por uma tela de LED que expõe
os comunicados do dia.
"Quantas famílias trabalhadoras
podem se dar ao luxo de deixar seus filhos completamente longe das
telas?", pergunta Álvarez, da Common Sense Media. "Não acho que isso
seja algo realista para a maioria das famílias. Tenho um filho de 12 e outro de
6. Não sei quantas vezes eles se jogaram no chão gritando como loucos se eu
lhes tirava o tablet. Estive nessa posição como mãe e sei que não é
fácil.”
Funcionários das grandes empresas de
tecnologia se reuniram no ano passado em uma iniciativa chamada A Verdade
Sobre a Tecnologia. Seu objetivo é convencer as empresas da necessidade de
introduzir parâmetros éticos na concepção de ferramentas utilizadas diariamente
por bilhões de pessoas, incluindo crianças. "A engenharia da computação
foi por muito tempo algo muito técnico, não havia uma ideia clara do impacto
que isso teria nas pessoas, e menos ainda nas crianças", explica Pierre
Laurent. "Não havia a consciência de que tínhamos que lidar com a ética.
Algo que acontece, por exemplo, se você trabalha na indústria médica. Na
tecnologia nunca houve um código ético claro.”
É uma luta desigual. Pais
superatarefados contra equipes de engenheiros e psicólogos que projetam
tecnologia para manter seus filhos viciados. Mas algo está começando a mudar.
Os gigantes tecnológicos, cada vez mais questionados em suas políticas comerciais
e de privacidade, começam a introduzir mudanças em seus produtos, exceções
tímidas ao sacrossanto princípio de captar mais atenção.
No ano passado, dois grandes
investidores da Apple, a Jana Partners ea CalSTRS (fundo de aposentadoria de
professores da Califórnia), detentores em conjunto de cerca de 2 bilhões
de dólares em ações (7,8 bilhões de reais), enviaram uma carta aberta aos
chefes da empresa de Cupertino, pedindo que tomem mais medidas contra o vício
das crianças nos celulares. "Analisamos as evidências e acreditamos que há
uma clara necessidade da Apple de oferecer aos pais mais opções e ferramentas
para ajudá-los a garantir que os jovens consumidores usem seus produtos da
melhor forma", escreveram eles.
A Apple respondeu
apresentando o Screen Time, uma nova ferramenta que ajuda a controlar
e limitar o uso de dispositivos móveis. O Google incorporou uma
ferramenta semelhante, a Digital Wellbeing. Para os críticos, são apenas
remendos que não atacam o problema subjacente: a natureza viciante dos
produtos. Até que isso seja abordado, os pais serão responsáveis por orientar
seus filhos neste mundo de potencial incerto.
"Nós incentivamos os pais a serem
mais proativos quando se trata de procurar conteúdo", conclui Álvarez.
"A chave é como aprendemos a equilibrar, a tirar proveito, a limitar o uso
e a saber que, para sua saúde física e mental, é preciso haver momentos na
família em que nada disso seja usado. Temos uma campanha que convida as pessoas
a comer e jantar sem celulares, sem um dispositivo constantemente interrompendo
com notificações. Recomendamos também o uso compartilhado dos dispositivos e
conversar com as crianças sobre o que elas veem. E é importante que sejamos um
modelo para os nossos filhos. Se estamos olhando compulsivamente para o
celular, justificando que é para o trabalho, que mensagem estamos
passando?"
Plantas, móveis de madeira, lápis e uma lousa se destacam na sala de aula no colégio Waldorf of Peninsula do Vale do Silício
Autor: Pablo Guimón - Palo Alto (Califórnia, EUA)
Um comentário:
Bom dia! Tudo isso só me levou a uma viajem a nossos tempos. O tempo de andar muito pra chegar ao colégio,o de enfrentar uma biblioteca para apresentar um trabalho, o Tempo que a noticia vinha nos jornais e revistas e o aprendizado pra quem tinha vontade de aprender. Tempos maravilhosos,e deveriam ter muito + escolas assim nos dias de hoje! Grande abraço!
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