A cultura do cancelamento caminha de
mãos dadas com o discurso de ódio e a desinformação quando se nega a aceitar a
diversidade de trajetórias e de ideias.
Unsplash - Facebook
Nos idos de 2010, a revista Time escolheu Mark
Zuckerberg como a pessoa do ano ao transformar “o mundo solitário e
antissocial da aleatoriedade em um mundo amigável, um mundo serendipitoso”. Em
2020, Zuckerberg está tendo que lidar com aquela que provavelmente é a
pior crise de imagem de sua empresa: o Facebook e outras plataformas
estão sendo confrontados pela sociedade sobre a toxicidade que impera em
diversas bolhas por trás de curtidas e compartilhamentos.
Além de promover o encontro de pessoas
com afinidades, as redes sociais deram voz aos que eram excluídos de
uma estrutura tradicional de comunicação, feita de um para muitos. Se antes só
poucos veículos conseguiam circular informação para as massas, agora indivíduos
têm o potencial de viralizar conteúdo com um único post. Infelizmente, o
aumento do número de vozes não veio acompanhado nem da qualidade da informação
e nem da qualidade da escuta. Entre gritos, ataques e grunhidos, diversas
camadas das redes foram contaminadas por uma surdez generalizada.
Dez anos depois da capa da Time,
Zuckerberg enfrenta um boicote histórico. Grandes empresas, entre elas
anunciantes como Unilever e Coca-Cola, estão apoiando o Stop Hate for
Profit (pare de lucrar com o ódio, em tradução livre). A iniciativa,
liderada por organizações da sociedade civil americana, pede que empresas
deixem de anunciar no Facebook durante o mês de julho. O objetivo é pressionar
a plataforma para reduzir a circulação e o engajamento dos discursos de ódio.
Zuckerberg anunciou que vai apertar a fiscalização de postagens
prejudiciais aos direitos civis.
Um relatório da Anti Defamation
League revela que a exposição a conteúdo tóxico nas redes sociais atingiu
níveis sem precedentes. Segundo a organização, o aumento da dependência digital
provocada pela pandemia criará novas oportunidades de exploração para quem quer
prejudicar outras pessoas usando serviços e ferramentas digitais. De janeiro a
abril deste ano o Facebook removeu 9,6 milhões de comentários que continham
discursos de ódio da plataforma.
No Brasil, a capacidade de diálogo
também tem se deteriorado nos últimos anos. Em 2019, um levantamento da Ipsos
em 27 países apontou que os entrevistados no país estavam menos propensos a
aceitar as diferenças. Segundo o instituto, 32% dos brasileiros acreditam que
não vale a pena nem tentar conversar com pessoas que tenham visões
políticas diferentes das suas.
Precursor da Comunicação Não-Violenta no
Brasil e integrante do Redes Cordiais, Dominic Barter alerta para o risco
de quando a briga supera a escuta: “A ausência de diálogo é fatal. Quando
alguém afirma que passou o tempo de diálogo, essa pessoa está afirmando que
começou o tempo de guerra”.
Mas diálogo não é uma simples conversa,
um bate-papo. É caminhar na direção mútua rumo a um destino desconhecido.
“Porque, se o destino é algo que descobrimos juntos, então é implícito que
ninguém manda no outro”, ensina Barter.
Seria, portanto, o contrário da cultura
do cancelamento, que prega a “morte virtual” e a interrupção do apoio a um
artista, um político, uma empresa ou marca devido à demonstração de algum tipo
de postura considerada inaceitável — algo que, de certa maneira, está ocorrendo
com o Facebook.
O problema é que o cancelamento
caminha de mãos dadas com o discurso de ódio e a desinformação quando se
nega a aceitar a diversidade de trajetórias e de ideias, e se apoia em uma
tática de exclusão e julgamento, o que pode trazer consequências assombrosas,
com relações cada vez mais tóxicas, que se retroalimentam da disputa.
As redes sociais não foram desenhadas
para o silêncio. Nasceram para interação e engajamento. O algoritmo favorece o
movimento e entende como algo positivo tanto os likes quanto os dislikes. A
cultura do cancelamento aproveita essa arquitetura das redes, mas vai contra o
propósito para o qual foram pensadas —uma nova esfera pública, bem diferente da
redução do diálogo ou do radicalismo do cancelamento, que não tolera o processo
de desconstrução e de aprendizado.
“Quando as pessoas falam cara a cara,
elas seguem normas de educação e civilidade. A comunicação on-line não apenas
facilita o discurso que fere os direitos civis, mas dá audiência para essas
narrativas,” destaca a pesquisa “Convivendo com o Não: Polarização Política e
Diálogos Transformativos”, da Universidade de Missouri (EUA), que analisa a
efetividade de métodos de diálogo para abordar os desafios da polarização.
“O diálogo em uma democracia não
substitui o processo político, nem deveria ser., no entanto, pode apoiar e
fortalecer o processo político para que se torne mais construtivo diante de
divisões e conflitos, mesmo quando esses conflitos parecem intratáveis,”
defendem os autores da pesquisa.
A necessidade de fortalecimento da
democracia passa por reaprendermos a dialogar e a levar isso para as redes.
Parece contra intuitivo, mas o grito é um ato de generosidade para compensar a
surdez do outro. Não adianta se falar de frente ampla se não pudermos voltar
a conversar no almoço de domingo com a família ou falar livremente e
sem briga sobre política no grupo de WhatsApp dos amigos. E o diálogo tem que
ser retomado de baixo para cima. Escuta de qualidade é algo que se precisa
treinar. E o maior presente que você pode dar a uma pessoa é ouvi-la de
verdade. A democracia agradece.
Autores:
Alana Rizzo e Clara Becker são jornalistas e cofundadoras do
Redes Cordiais, projeto de combate à desinformação e aos discursos de ódio em
redes sociais.
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