O
Estado não tem tanto peso na economia do gigante asiático como pensamos,
escreve o economista em seu último livro, ‘Capitalismo sem rivais’ (Editora
Todavia).
Camponeses da província de Hunan, na fronteira com Hubei - 05-3-20. Noel Celis-AFP-Getty Images
Mas será́ a China realmente um
país capitalista? Trata-se de uma pergunta feita com frequência —
as vezes de forma apenas retórica, outras vezes de
forma genuína. Podemos responder-lhe com certa brevidade usando a definição-padrão de
capitalismo de Marx e Weber (...). Para ser classificada como capitalista, uma
sociedade deve estar organizada de tal modo que sua produção seja
empreendida a partir da propriedade privada dos meios de produção (capital,
terra), que a maioria dos trabalhadores seja assalariada (sem estar atrelada
legalmente à terra ou trabalhar como autônoma, usando seu próprio capital) e que a
maior parte das decisões referentes à produção e à fixação de preços seja tomada de
modo descentralizado (ou seja, sem que alguém as imponha as empresas). A China se
mostra claramente capitalista nesses três quesitos.
Antes de 1978, a taxa de participação das empresas
estatais (EE) no conjunto da produção do país estava próxima de 100%, já́
que a maioria das indústrias pertencia ao Estado. Elas operavam de acordo com
um planejamento central, que, embora mais flexível e abrangendo um leque
muito menor de mercadorias do que ocorria na União Soviética, incluía, de
toda maneira, todos os setores industriais essenciais (carvão e outros
minerais, aço, petróleo, água,
luz, gás etc.), alguns deles até́ hoje mantidos predominantemente por EEs. Em
1998, a participação do Estado na produção industrial já́
havia caído pela metade, ficando em torno de 50%. Desde então, ela vem
declinando ano a ano, de forma consistente, encontrando-se hoje pouco acima de
20%.
A situação na agricultura é mais clara ainda.
Antes das reformas, a maior parte da produção era comandada pelas autoridades das
comunas locais. A partir de 1978, com a introdução do “sistema de
responsabilidade”, que permitiu o arrendamento privado de
terras, quase a totalidade da produção passou a ser realizada de modo privado
— embora obviamente os agricultores não sejam trabalhadores assalariados e sim,
em sua maioria, autônomos, dentro
daquilo que a terminologia marxista chama de “produção simples de
mercadoria”. Esse sempre foi, historicamente, o
modo típico de organização da agricultura
chinesa, de modo que a estrutura atual de propriedade nas áreas rurais
constitui de certa forma um retorno ao passado (com uma diferença significativa —a
ausência de latifundiários).
Mas, à medida que prossegue o êxodo rural em direção as cidades, é
provável também que mais relações
capitalistas de produção se instalem na
agricultura do país. Podemos mencionar também as empresas localizadas em
pequenas cidades ou vilarejos (empresas de propriedade coletiva), que, embora
menos importantes hoje do que no passado, cresceram rapidamente utilizando os
ganhos obtidos com a mão de obra rural para produzir mercadorias não agrícolas.
Elas usam trabalho assalariado, mas sua estrutura de propriedade, que combina,
em proporções diversas, participação do Estado
(ainda que apenas no nível local), cooperativas e propriedades puramente
privadas, é bastante complexa e varia conforme a região
do país.
As empresas privadas não só́ são muitas
numericamente como também são de grandes dimensões. De acordo com dados
oficiais, a participação de empresas
privadas no 1% das maiores companhias por valor total agregado cresceu de cerca
de 40% em 1998 para 65% em 2007 (Bai, Hsieh e Song, 2014).
Os modelos de propriedade na China são
complexos, envolvendo com frequência, em proporções variadas, participação estatal —nos níveis
central, provincial e comunal—, privada e
estrangeira. Mas o peso do Estado no PIB, calculado no que se refere à produção, dificilmente
passa de 20%, enquanto a mão de obra empregada nas EEs e nas empresas de
propriedade coletiva corresponde a 9% do total, incluindo campo e cidade (Anuário
Estatístico sobre Trabalho na China 2017). Esses percentuais se assemelham aos
registrados na Franca no começo dos anos 1980
(Milanović, 1989). Como veremos (...), uma das características do
capitalismo político é, com efeito, que o Estado desempenha um papel
significativo, para além do seu papel de mero representante, por meio da
propriedade formal de capital. Mas o que pretendo aqui, neste momento, é
apenas descartar certos questionamentos existentes quanto à natureza
capitalista da economia chinesa —questionamentos feitos não em bases empíricas
(já́ que os dados os contrariam nitidamente), mas apenas pelo fato, concreto,
de que o partido dominante é chamado de “comunista”,
como se isso, por si só́, bastasse para determinar a natureza de um sistema econômico.
A distribuição dos
investimentos fixos entre os diversos tipos de propriedade também mostra uma tendência clara de
crescimento do investimento privado. Este já́ é responsável por mais da metade
dos investimentos fixos, enquanto a participação do Estado é de cerca de 30% (o
restante provem do setor coletivo e do investimento privado estrangeiro).
Zonas rurais e urbanas
A mudança se reflete de modo gritante também na participação dos
trabalhadores das EEs no conjunto dos empregos existentes nas cidades. Antes
das reformas, quase 80% dos trabalhadores urbanos trabalhavam em EEs.
Atualmente, depois de uma diminuição continua, ano a ano, essa participação está abaixo
de 16%. Nas áreas rurais, a privatização de facto da terra por meio do sistema
de responsabilidade transformou quase todos os trabalhadores rurais em
agricultores do setor privado.
Por fim, o contraste entre os modos de produção socialista e
capitalista aparece mais acentuadamente na descentralização das decisões
relativas à produção e à precificação. No início das
reformas, o Estado determinava os preços de 93% dos produtos agrícolas, 100%
dos produtos industriais e 97% das mercadorias do varejo. Em meados dos anos
1990, as proporções se inverteram: 93% dos preços do varejo eram
definidos pelo mercado, assim como 79% dos preços de produtos agrícolas e de 81% dos
produtos industriais (Pei, 2006, p. 125). Hoje, o percentual de preços determinados
pelo mercado é ainda mais alto.
Autor:
Branko Milanovic (Belgrado, 1953) é um economista especialista em
desigualdade, além de professor na City University. de Nova York e na London
School of Economics. Este texto pertence ao livro ‘Capitalismo sem rivais’,
lançado pela editora Todavia.
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