O
principal esforço até agora não consistiu em se mobilizar para evitar as mortes
durante a pandemia, mas em banalizá-las.
Ativistas colocam cruzes na Esplanada dos Ministérios em homenagem aos mortos pelo coronavírus no dia 29 de junho. Myke Sena - EFE
Talvez fosse o caso de começar lembrando
que a substância ética de um povo é definida através da maneira com que ele
lida com a morte. Este é um tema maior presente entre os gregos, a saber, como
uma sociedade se destrói a partir do momento em que ela não dá aos mortos o
direito ao luto. Pois o luto mobiliza questões vinculadas à memória, à
universalidade, ao reconhecimento, à suspensão do tempo e ao intolerável.
Se uma das maiores tragédias que os gregos nos legaram ―Antígona―, é exatamente
sobre a defesa incondicional do direito ao luto, mesmo para o “inimigo do
Estado”, era porque ela expressava a consciência tácita de que a banalização do
apagamento dos corpos sem vida representava o caminho mais seguro para
dissolução da própria comunidade. Estes dois pontos estão ligados de forma
indissolúvel: o destino dos vivos e o destino dos mortos, o governo dos vivos e
o governo dos mortos.
Para uma sociedade como a brasileira,
fundada no binômio genocídio/esquecimento, sociedade construída sobre os
escombros do genocídio indígena e negro, lembrar da força política do luto é
uma operação decisiva. Nós fomos formados a partir da fantasia originária da
“tabula rasa”. Aqui, não haveria povos com grandes estruturas estatais, como os
maias, astecas e incas. Toda tomada de posse seria processo civilizatório tendo
em vista retirar essa terra de seus arcaísmos, o arcaísmo das sociedades sem
Estado. Por isto, o genocídio indígena não seria genocídio algum, apenas a
marcha violenta, porém necessária, do desenvolvimento histórico. No Brasil,
“desenvolvimento” significa uma forma de “desaparecimento”, de apagamento. Uma
sociedade que começa desta forma sem nunca conseguir olhar para trás e
recuperar aquilo que foi destroçado, só pode terminar como catástrofe.
Pois essa indiferença bruta do
esquecimento é um verdadeiro projeto de governo. Governar é gerir circuitos de
afetos. Só assim é possível definir o que visível e invisível, sensível e
insensível, perceptível e imperceptível. E controlar os regimes de sensibilidade,
de visibilidade e percepção é controlar o fundamento daquilo que pode afetar a
vida social. É definir a velocidade das urgências, a determinação do tolerável,
estabelecer quais conflitos deverão ser reconhecidos e quais não deverão.
Neste sentido, este cozinhar os afetos
sociais no fogo brando da indiferença é a base de toda uma engenharia social. E
não há fundamento mais forte da produção da indiferença do que a indiferença à
morte. Lembremos das condições libidinais para que a tese da banalização
do mal pudesse funcionar. Era necessário que os carrascos nazistas fossem
capazes de naturalizar a desafecção. Só assim o assassinato em massa poderia se
transformar em um problema de logística. Só assim ele poderia se tornar um
problema de como os trens chegarão aos fornos, em quanto tempo, com quanto
custo, estejam eles transportando pessoas a serem eliminadas ou mercadorias a
serem entregues.
Vale a pena lembrar isto porque o
verdadeiro projeto político com força transformadora, aquilo que deveria nos
unir, é a luta por uma mutação de afetos que passe pela compreensão da
desafecção como base de nossa verdadeira miséria. Temos, até o momento, mais de 60.000
pessoas mortas pela pandemia, isto se acreditarmos em números subnotificados.
Mas o principal esforço até agora não consistiu em mobilizar os esforços e
riquezas do país para evitar as mortes. O principal esforço consistiu em
banalizá-las. Afinal, não é verdade que morre todo o ano mais de 60.000 pessoas
por violência neste país? Qual a razão então para todo esse alarmismo? Como se
os números da violência não fossem por si alarmantes, nos provocando indignação
a todo momento. Números estes, diga-se de passagem, que descrevem,
principalmente, a violência policial: peça maior da gestão social desse
país.
Mas notem como essa desafecção é peça
fundamental para o tipo de laboratório que o Brasil se tornou: um laboratório
mundial para o neoliberalismo autoritário. Porque esse programa econômico que
se impõe a nós, com ou sem pandemia, tem uma economia libidinal que lhe e
própria. Para ele funcionar, é necessário que a sociedade exploda toda
possibilidade de solidariedade genérica, essa solidariedade, que obriga a
realização social de princípios estritos de igualdade e redistribuição. Entre
nós, a crítica do Estado corrupto aparece apenas como exigência de dessolidarização
final. Não se trata de exigir do Estado que ele se volte à defesa do bem comum,
mas que ele desapareça de vez para que qualquer obrigação de solidariedade não
tenha mais voz. Se a sociedade implode qualquer forma transversal de
solidariedade, então a via estará aberta para o retorno final à acumulação
primitiva.
A solidariedade, desde o direito romano,
é um tipo de obrigação contraída com vários na qual um pode quitar a dívida de
todos. Ela é um sistema de obrigação na qual a ação de um tem o efeito da ação
de todos, o que explicita sua natureza radicalmente implicativa. Neste sentido,
ela traz a ideia de um corpo social que se organiza sob as bases do mutualismo.
Um mutualismo que tem força transformadora porque se trata de compreender como
dependo de pessoas que não se parecem comigo, que não tem minha identidade, que
não fazem parte de meu lugar.
Por isto, a verdadeira solidariedade
nada tem a ver com empatia. Temos uma tendência, muitas vezes, de psicologizar
o campo social porque não queremos ver a força real de conceitos eminentemente
políticos. Empatia é um tipo de implicação limitada: tenho empatia por você, o
que não significa que terei empatia por outro. Há traços seus que provocam
minha empatia, enquanto em outro é a repulsa que fala mais alto. Já a
solidariedade não pressupõe empatia alguma pois não é um modo de relação entre
sujeitos, mas entre o sujeito e o corpo social. Posso não ter empatia alguma
por você, o que não implica que serei incapaz de ter solidariedade por ti. Pois
a solidariedade é o regime de comprometimento com o corpo social do qual
fazemos parte. É a compreensão de que o corpo social defende todos os que dele
fazem parte, sem perguntar-se pelos sentimentos particulares de um para com os
outros. Sua força transformadora vem exatamente daí, a saber, da sua capacidade
de criar mutualidade entre diferenças.
Seria bom lembrarmos disto a fim de se
perguntar sobre as razões pelas quais assistimos, nestes últimos meses, a um
verdadeiro cortejo macabro de expressões de desprezo pelos mortos, de exercício
de desafecção e indiferença. Como disse anteriormente, isto é uma forma de
governo que nada tem de gratuito. Foi assim que este país foi criado. Esse é
seu eixo central. Por isto, não se trata de recuperar esse país marcado em seu
seio pela brutalidade da violência sem voz. Trata-se de terminar com ele, de
uma vez por todas. O país no qual podemos habitar ainda não existe. Seria mais
fácil se assumíssemos, de uma vez por todas, que precisaremos criá-lo. E o
primeiro passo para criá-lo é se recusar a aceitar mais um genocídio.
Autor:
Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da
Universidade de São Paulo.
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