O caso da falência da empresa de
eletrodomésticos Mabe, cujas plantas principais se localizavam em Campinas e Hortolândia,
desmonta essas falácias. A empresa entrou com pedido de recuperação judicial em
2013, mas teve sua falência decretada em 2016. Alguns podem pensar que na raiz
dessa situação estaria a crise econômica. Nada mais falso.
Mesmo com as vendas de produtos da
linha branca bombando no Brasil, os balanços apresentavam prejuízos
gigantescos. Essa “façanha” foi alcançada por uma decisão conscientemente
tomada pelos seus controladores no México e no Brasil. Por um ardil contábil os
produtos destinados à exportação, e consequentemente os lucros deles
originados, eram contabilizados como se tivessem sido fabricados no México.
A trama foi descoberta pela
administradora judicial da massa falida, que apoiada em investigações feitas
por empresas de consultoria dos Estados Unidos especializadas em fraudes
empresariais, recuperou em computadores da Mabe e-mails apagados entre 2013 e
2016, cujas mensagens sugerem a existência de tais manobras.
Um dos resultados dessa falência
programada foi a de deixar no desalento milhares de famílias sofrendo as
agruras do desemprego. Muitos trabalhadores sequer receberam todos os seus
direitos. Sofrimento aumentado pela dificuldade de alguns operários em arrumar
emprego por causa das lesões provocadas pelo ritmo intenso da produção.
O caso Mabe desmistifica esse suposto
virtuosismo das forças de mercado e sobre o quanto sofrem os empresários
brasileiros. Para garantir seus lucros, os acionistas da empresa não pensaram
duas vezes em premeditar uma situação cujo custo social tem sido pago pelos
trabalhadores e pelo Estado. A dívida trabalhista alcança 120 milhões de reais
e a dívida com o Estado, pela falta de pagamento de impostos, chega a 524,6
milhões. Juntas, representam quase 60% de toda a dívida da empresa, cujo volume
atinge a impressionante soma de 1,1 bilhão de reais. Em razão disso, o Tribunal
de Justiça de São Paulo determinou o bloqueio de bens dos ex-sócios num total
de um bilhão de reais.
Mas o caso Mabe tem outro aspecto
importante que merece ser analisado e do qual podemos extrair importantes
lições para a luta política dos trabalhadores. Trata-se do desaparecimento de
uma burguesia brasileira disposta a esboçar um projeto mínimo de
desenvolvimento e de industrialização do país. Como burguesia de um país
capitalista dependente, ela tem optado crescentemente por uma via de acumulação
de capital cada vez mais ancorada na especulação e no parasitismo financeiro.
De uma burguesia cujo eixo principal
da acumulação girava em torno das atividades funcionantes, conceito utilizado por
Marx para definir o capital investido na produção direta de mais-valia,
assiste-se a uma migração para atividades rentísticas. Temos, portanto, uma
profunda mutação no seio da burguesia brasileira.
Por isso o caso da Mabe também é
ilustrativo. A empresa originariamente se chamava Dako, situava-se em São Paulo
e estava quase inativa. Em 1935, um burguês campineiro chamado Joaquim Gabriel
Penteado, que em 1926 já havia criado em Campinas a primeira fábrica de lápis
do país, adquire a Dako e em 1947 transfere sua planta da capital paulista para
o interior.
Na década de 1980, a empresa se tornou
a maior produtora de fogões a gás da América Latina. Essa iniciativa
empresarial espelhava um período histórico em que se nutria a ideia de um
projeto nacional-burguês de industrialização e de desenvolvimento, não obstante
estar ancorado em uma profunda exploração dos trabalhadores.
Já em 2003, em um contexto histórico
distinto, desaparecida boa parte dos velhos grupos empresariais nacionais,
principalmente os paulistas, todos tragados pela onda de desnacionalização da
economia brasileira iniciada na década de 1990, a família Penteado vende boa
parte de sua participação na Dako para a mexicana Mabe.
Esta tinha uma trajetória empresarial
muito similar a da Dako. Fora criada em 1946, na Cidade do México, por dois
espanhóis refugiados da Guerra Civil. Tornou-se em 1960 a maior exportadora de
eletrodomésticos do México. Em 1986, associou-se em uma joint-venture com a
General Eletric. Em 1994, beneficia-se com o Tratado de Livre Comércio da
América do Norte e expande seus negócios para o mercado norte-americano.
Nas investigações concluiu-se que os
membros da família Penteado, Gabriel Penteado e José Roberto Moura Penteado,
sabiam do propósito dos acionistas majoritários de levarem a empresa à situação
falimentar, mas nada fizeram. Muito pelo contrário, trataram de proteger seu
patrimônio abrindo Offshore na Flórida, Estados Unidos, para evitar um eventual
confisco de seus bens.
O caso ilustra bem a profunda mutação
no caráter da burguesia brasileira, especialmente as frações localizadas no
eixo Rio-SP. Estas têm esposado uma lógica abertamente rentista. Suas profundas
conexões com o circuito financeiro internacional induzem-nas a manter com o
espaço territorial de origem um completo descompromisso com o seu futuro.
Crescentemente apátrida, o destino do Brasil só lhe interessa na medida em que
dele pode acumular capital pela via da espoliação do povo e do saque de suas
riquezas, enviando-o em segurança para o exterior.
Para as grandes massas trabalhadoras,
essa mutação no caráter da burguesia brasileira tem trazido consequências cada
vez mais trágicas. Desemprego em massa, precarização do trabalho, sucateamento
dos serviços públicos, desmonte do Estado nacional, degeneração do tecido
social. Como vivem longe do Brasil, grandes frações burguesas e parcelas
significativas das altas camadas médias estão longe dos efeitos devastadores
causados por essa lógica parasitária e predatória.
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