Para 2024, o jornalismo local precisa estar preparado para dar um passo para trás e noticiar conceitos básicos, sobre como as organizações públicas funcionam e quais atribuições cada uma tem.
Se eu fosse apostar num cenário para o jornalismo local brasileiro durante as eleições municipais de 2024, eu apostaria num deserto. Pessimista, eu sei. Mas eu acredito muito que colocar à mesa temas difíceis nos fará enfrentar um grande desafio e — quem sabe — alcançar perspectivas melhores.
Não é novidade que o jornalismo local precisa de incentivo. Segundo os dados da 6ª edição do Atlas da Notícia, divulgados em agosto deste ano, em 2.712 cidades moram 26,7 milhões de brasileiros que não têm acesso a notícias sobre o lugar de onde vivem. Apesar de ser um deserto, o número representa uma redução de 8,6% de desertos de notícia no país, o que significa que 256 municípios passaram a ter, só no último ano, pelo menos um veículo de informação jornalística no seu território. É uma boa notícia. Mas essa é uma conta quantitativa. O que me preocupa são os dados qualitativos, principalmente quando falamos sobre cobertura em nível local.
Vivemos numa era de desinformação. Durante as eleições presidenciais de 2018, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) fez uma parceria inédita com as agências de checagem de fatos no País para evitar a disseminação de informações falsas durante a campanha. A jornalista e pesquisadora Cristina Tardáguila, fundadora da Agência Lupa, divulgou à época que as equipes identificaram uma média de uma mentira por hora durante um único fim de semana eleitoral.
Agência Lupa, Aos Fatos, Boatos.org, Comprova, E- Farsas e Fato ou Fake, são algumas das iniciativas essenciais e corajosas no combate ao mal do século.
Outras tantas iniciativas surgiram Brasil afora nos últimos anos para combater o surgimento sistêmico de informações falsas. Projetos como o Coar, na região Norte e Nordeste, e o Amazônia Check, do Grupo O Liberal, na região Norte, são alguns bons exemplos da necessidade de se trabalhar estratégias de combate à desinformação de forma regionalizada. Nas últimas eleições presidenciais, em 2022, o Google, por meio do Programa Núcleos de Checagem Eleitoral, criado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) ajudou esses e outros 31 veículos de notícias brasileiros a atuar na checagem de fatos com foco na cobertura estadual das eleições. Meta e outras plataformas também desenvolveram projetos similares no período, mas, sem recursos permanentes, boa parte das iniciativas ficaram pelo caminho após as eleições. Vale ressaltar que a maioria das iniciativas impulsionadas era voltada para a cobertura nacional e/ou estadual.
Checar informação custa caro. São necessárias horas de treinamento da equipe para o desenvolvimento de capacidades específicas de apuração, como a utilização das técnicas de Open Source Intelligence (OSINT), por exemplo, ferramentas, checadores, editores, designers. Isso sem colocar na conta as iniciativas de acolhimento e saúde mental de quem trabalha praticamente enxugando gelo. Se em boa parte dos municípios brasileiros os jornais locais sobrevivem com recursos captados em anúncios ou divulgação de atos oficiais dos governos municipais, sobra muito pouco para investir em técnicas inovadoras. Somada à inação das plataformas digitais, a desinformação no nível local encontra um espaço fértil para criar raízes.
Na
contramão, estão cada vez mais acessíveis tecnologias que geram, em segundos
textos, fotos e vídeos.
Minha preocupação com a cobertura das eleições no jornalismo local me pega num
ponto muito pessoal. Eu moro numa cidade com 451.505 habitantes, segundo dados
do Censo (2022). Nas eleições municipais de 2020, meu pai, que na época tinha
60 anos, começou a receber mensagens no celular de números de telefone que ele
não tinha na agenda. O conteúdo era assinado por um candidato ao cargo de
vereador na cidade.
Esse candidato pedia voto, mandava fotos e materiais de campanha, fazia algumas promessas (muitas delas sequer cabiam na atribuição de um vereador, vale dizer) e compartilhava desinformação. Muitas mensagens eram absurdas, do tipo “vão fechar as igrejas na cidade se você votar em alguém do partido XX”.
Na época, ele já frequentava a Assembleia de Deus há três anos. E já tinha sido pressionado pelo pastor a votar em Jair Bolsonaro nas eleições de 2018. Esse contexto, trouxe pra ele uma pista do por que ele estava sendo alvo de mensagens massivas durante as eleições municipais. Não demorou muito desde a primeira mensagem e o mistério foi resolvido. O tal candidato que todo santo dia pedia voto no WhatsApp, apareceu em carne e osso em um dos cultos transmitidos online. E aqui tem um adendo importante — nas eleições de 2020, estávamos em plena pandemia e as aglomerações eram desencorajadas. Mas não na igreja, que estava em campanha eleitoral. Mas isso é assunto para outro artigo.
O fato é que foi depois dessa live que meu pai descobriu que o telefone dele, e de todos os fiéis da igreja, que faziam parte do grupo de WhatsApp criado pelo pastor, havia sido repassado sem qualquer consentimento prévio ao tal candidato.
Meu pai, que é um homem esclarecido, ficou confuso com muitas das mensagens de desinformação que recebeu. Nas vezes em que nos falávamos, ele sempre me perguntava sobre uma informação absurda que tinha recebido no celular. “É verdade que o candidato fulano vai apresentar um projeto de lei para criar o dia da macumba em Mogi e proibir a Marcha pra Jesus, se ele ganhar?”. E era claro que era mentira. Ele também se sentia incomodado de ter o seu telefone “invadido”, com um volume grande de material de campanha de alguém que ele sequer considerava como um possível voto. “Você que é jornalista, como podemos denunciar isso?”, ele sempre me perguntava. Na época, utilizamos a plataforma do TSE que recebia denúncias de campanhas de desinformação no WhatsApp. Eu também o ajudei a escrever um texto, citando LGPD e tudo pro tal candidato, que parou de mandar as mensagens pro meu pai logo em seguida.
Mas meu
pai era uma exceção. Para todas as outras centenas de pessoas no grupo do tal
pastor, a campanha eleitoral má intencionada durou bem mais. Eu, uma leitora
assídua dos conteúdos locais, não encontrei nenhuma reportagem que tratasse
sobre o comportamento das propagandas eleitorais em nível municipal e como as
igrejas têm sido usadas como bases eleitorais e disseminação de conteúdo
desinformativo. Eu não atribuo esse silêncio aos meus colegas jornalistas. Os
poucos que ainda estão empregados nos jornais locais, fazem o que está ao
alcance dentro de uma carga horária exaustiva de trabalho, pouco reconhecimento
e salários em atraso, para levar alguma informação ao público. O problema é na
gestão dos veículos, que pouco conseguem inovar quando enxergam a informação
como mercadoria, e só.
Em 2019, a prefeitura chegou a criar o projeto “Prefeitura Esclarece”, dedicada
a desmentir informações falsas que circulavam na cidade. Esses releases de
checagem eram publicados nos jornais locais, mas a iniciativa é de um órgão
público e, sua linha editorial, muito bem definida — desmentir os boatos
relacionados à atuação do serviço público. Todo o restante fica sem
verificação, num momento muito decisivo, que é a eleição.
E como mudamos esse cenário?
Em 2020, a jornalista Nina Weingrill já cantava a bola do que seria o futuro do jornalismo local e a cobertura das eleições. Em seu texto, que faz parte desta mesma coleção, ela nos convidou a conhecer iniciativas de comunicação local, criadas para combater a escassez de informações fundamentais em diferentes territórios. Nem sempre os conteúdos são desenvolvidos por jornalistas diplomados. Nem sempre a distribuição vem no formato de lead quem, fez o quê, quando, como, onde e por quê. Mas são jeitos de ocupar um espaço que está vazio e que o jornalismo responsável precisa chegar antes do que a desinformação.
Para 2024, o jornalismo local precisa estar preparado para lidar com a desinformação. Dar um passo para trás e noticiar conceitos básicos, sobre como as organizações públicas funcionam, quais atribuições cada uma tem. Analisar comportamentos, rebater discursos políticos baseando-se em dados e evidência. A demanda é grande. A necessidade é maior ainda. As organizações jornalísticas que já estão estabelecidas precisam fomentar iniciativas hiper locais, oferecer recursos para que comunicadores trabalhem em seus territórios. O jornalismo local é — muitas vezes — a base de interlocução entre o cidadão e como uma comunidade se organiza e funciona. É também o garantidor da democracia. Manter o jornalismo local atuante e sustentável nos tempos atuais é uma responsabilidade de todos.
Autora: Jamile Santana – Jornalista de Dados, ativista em transparência pública em municípios e coordenadora da Escola de Dados, programa da Open Knowlegde Brasil. Publicado na Newsletter Farol Jornalismo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário