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1 de fevereiro de 2020

Unificação da Irlanda, sonho possível!

“La vida es sueños. E los sueños sueños son (Calderón de La Barca, poeta espanhol)”.
Uma só Irlanda para todos os irlandeses foi um sonho que virou uma utopia frustrada. O povo irlandês passou vários séculos lutando, primeiro pela independência da sua ilha, depois pela unificação das duas partes em que fora dividida pelos ingleses. Nas últimas décadas teve de desistir, conformou-se com a tirania da realidade e das armas britânicas. Eis que, num momento sombrio em que os ingleses elegem um populista de direita, com tudo de negativo que essa ideologia carrega, abre-se uma fresta e a causa irlandesa, aparentemente perdida, começa a ganhar a forma de um sonho agora possível, embora de realização difícil e demorada.
Em tempos imemoriais, o povo irlandês era constituído por clãs, que raramente se uniam em quatro reinos, hostis uns aos outros. No século 12, sofreu a primeira invasão inglesa bem sucedida. No entanto, a ocupação da ilha pelo país vizinho não foi total, nem permanente. Somente quase 500 depois, a Inglaterra consolidou seu domínio, no reinado de Henrique VIII, que impôs a religião anglicana aos seus súditos. A maioria dos ingleses aceitou, mas os irlandeses desafiaram as ordens do rei, mantendo-se católicos.
A reação de Henrique foi tomar terras dos proprietários irlandeses e oferecê-las a nobres ingleses. Essa política foi ainda mais radical no governo da filha de Henrique, Elizabeth I, o que estimulou a aliança entre os clãs irlandeses. Eles promoveram a primeira revolta pela sua independência, por sinal, violentamente reprimida.
No governo republicano do ditador Cronwell, que derrubou a monarquia, em 1640, a situação ficou ainda desumana. Inconformados, os irlandeses rebelaram-se mais uma vez. Milhares deles foram massacrados, sendo vastas áreas tomadas aos católicos e entregues a protestantes ingleses, trazidos pela ditadura Cronwell.
Mas a monarquia voltou à Inglaterra e, durante os dois séculos seguintes, a resistência irlandesa continuou, limitada, porém, a protestos e ações esporádicas. No final do século XVII e início do XVIII, o Parlamento inglês exagerou o nível da opressão, retirando direitos políticos dos irlandeses e criando mais leis opressivas.
No período 1847-1848, abateu-se sobre a ilha a Grande Fome. Sua origem foi uma praga, que destruiu todas as plantações de batatas, alimento básico dos pobres, causando a morte de 800 mil deles e a imigração de milhões para os EUA.
Poucos protestantes, maioria nas classes rica e média, foram atingidos e se aproveitaram para comprar terras dos emigrados, a preços extremamente baixos. Nessa triste contingência, o governo inglês se omitiu, nada fez para proteger o povo irlandês.
Com isso, em 1900, 750 proprietários protestantes possuíam mais de 50% das terras cultiváveis. Os católicos, que se salvaram da fome devastadora, eram donos de 14%, em geral pequenas propriedades.
A formação do Eire
Em 1905, os nacionalistas irlandeses fundaram o partido Sinn Fein - com o objetivo de lutar pela independência da ilha. A ela se opôs a milícia “Voluntários do Ulster”, criada pelos unionistas.
A essas alturas na região do Ulster (hoje, Irlanda do Norte), o protestantismo se tornara maioria. Muitos trabalhadores escoceses e ingleses dessa religião haviam se fixado, atraídos pelos empregos oferecidos no processo de industrialização, que estava em marcha. Os conflitos entre protestantes unionistas (favoráveis à permanência no reino inglês) e os nacionalistas católicos (defensores da independência) se tornaram mais intensos. Em abril de 1916, no Levante da Páscoa, os nacionalistas decretaram a República da Irlanda. A repressão inglesa foi feroz, tendo executado os líderes revolucionários, depois de um julgamento rápido e de duvidosa legalidade.
Não pegou bem no povo. E, nas eleições de 1918, o Sinn Fein elegeu a maioria dos deputados da ilha no Parlamento da Inglaterra. Não demorou muito para que, em 1919, esse partido proclamasse a Independência da Irlanda e a formação de um governo, prontamente rejeitado pelas autoridades inglesas.
Nesse mesmo ano, foi fundado o IRA (Exército Republicano Irlandês), que lançou ações terroristas, emboscadas e explosões de bombas contra objetivos militares e políticos, em toda a Irlanda. Devido às dificuldades para a polícia inglesa enfrentar os rebeldes, o governo de Londres organizou uma força paramilitar, integrada por indivíduos violentos, muitos deles veteranos da 1ª Grande Guerra, desempregados, para colaborar na repressão. Formou-se assim o Black Tan, uma milícia de triste memória entre os irlandeses.
Na guerra sangrenta contra o IRA, o Black Tan destruiu lares, matou rebeldes e inocentes, mulheres e crianças, cometeu inúmeras atrocidades. Foi o autor do incêndio do centro da cidade de Cork, da cidade de Balbriggan e de muitas aldeias, provocando terror. E assim incentivando centenas de adesões à causa da independência.
Num dos episódios desta guerra civil, tendo o IRA fuzilado 14 agentes-secretos ingleses infiltrados em suas fileiras, as autoridades militares resolveram dar uma lição ao povo irlandês. Num domingo de novembro, um estádio estava lotado por torcedores assistindo um jogo de futebol gaélico. Subitamente, entraram carros de combate ingleses que despejaram tiros de metralhadora nos assistentes, matando quatorze pessoas e ferindo 65. E, ainda no mesmo dia, a polícia do governo espancou até a morte três rebeldes prisioneiros.
Esse atentado ficou na história com o nome de Domingo Sangrento de 1920. Pressionado por uma guerra que se tornava intolerável, por seu alto custo e má repercussão internacional, o governo inglês acabou por ceder. Em 1922, reconheceu a independência do Estado Livre da Irlanda (Eire, em idioma gaélico), ocupando 4/5 da ilha, que se tornou membro da Commonwealth (Comunidade Britânica de Nações) sob autoridade apenas formal do rei da Inglaterra.
Por outro lado, a região do Ulster, 1/5 da Irlanda, continuava parte da Inglaterra, com o nome de Irlanda do Norte.
Postergação histórica
Os líderes da luta pela independência foram forçados a aceitar a inócua subordinação ao rei da Inglaterra, considerando ser preferível a uma guerra, que já derramara sangue em excesso e provavelmente não teria chances de êxito.
Em 1949, com a retirada da Commonwealth e o fim do juramento de fidelidade ao rei inglês, uma das concessões do acordo de 1922 foram canceladas. Sobrava a outra, a partição da ilha. O IRA se opôs, queria a unificação das duas partes separadas num só país, a República da Irlanda. Tendo em vista esta reivindicação, o IRA passou a focar suas ações bélicas na Irlanda do Norte, contra a posição pró-status quo da população protestante. Acentuou-se então a rivalidade entre católicos e protestantes, estes apoiados pelo governo inglês e a polícia local. Com o tempo, a situação se estabilizou, com redução gradativa dos choques. Em fins de 1960, inícios dos anos 70, as coisas voltaram a pegar fogo numa campanha pelos direitos civis dos católicos, contra a discriminação que sofriam nos direitos de voto, de habitação e de emprego, pelo governo protestante e empresas locais. Os manifestantes eram atacados por grupos protestantes radicais, com ajuda da força policial. Rapidamente a violência dos dois lados cresceu e se espalhou.
Em janeiro de 1972, aconteceu novo domingo sangrento. Um batalhão de paraquedistas ingleses atirou contra civis católicos, matando 11 e ferindo outros. Todos estavam participando de uma marcha pacífica pelos direitos civis em Derry.
O exército inglês quis enganar a opinião pública, alegando que os mortos estavam armados. Uma cuidadosa investigação levou 38 anos, mas revelou que nenhuma das vítimas portava armas. No governo Thatcher (1979-1990), quando os rebeldes presos foram tratados no cárcere como criminosos comuns ou mesmo assassinados por setores da segurança, o IRA multiplicou sua ação. Promoveu atentados a bomba não mais só na Irlanda do Norte, também na própria Inglaterra.
Não dava mais para continuar. A opinião pública internacional condenava os métodos violentos das forças de segurança. A opinião pública em todo Reino Unido exigia o fim da guerra civil. Foi um primeiro-ministro trabalhista, Tony Blair, que, em 1998, mediou um acordo entre os unionistas pró-Reino Unido e os nacionalistas do Sinn Fein, estabelecendo eleições livres para a formação de um parlamento norte-Irlandês e um ministério com participação católica. E a Irlanda do Norte teria autonomia administrativa, embora permanecendo subordinada ao governo de Londres em questões fundamentais.
O IRA e os Voluntários do Ulster se obrigavam a entregar suas armas e interromper suas lutas. E assim se fez a paz.
Nos termos do chamado “Acordo da Boa Sexta-feira”, a partição da ilha seria mantida, com base no “princípio do consentimento”, respeitando a posição da maioria dos protestantes norte-irlandeses, que desejavam continuar no Reino Unido. Os representantes do Sinn Fein foram para casa, conformados, pois um aumento do número de católicos suficiente para dominar as eleições seria algo remoto e incerto. A unificação das Irlandas ficaria, quem sabe, para seus netos.
E um dia veio o Brexit
Mas os ventos ensaiaram uma mudança de direção, já em 2016. No referendo do Brexit, realizado em todo o Reino Unido, a maioria do eleitorado norte irlandês – 55% - votou para continuar na Europa, contra a maioria do eleitorado das regiões britânicas.
Várias tentativas para se chegar a um acordo que permitisse uma saída civilizada da União Europeia foram bloqueadas especialmente porque as duas Irlandas exigiam que as fronteiras entre elas continuassem abertas, por sérias razões econômicas e humanas. Com o Brexit parecia impossível – pois ambas integrariam entidades diferentes – na Irlanda do Norte, o Reino Unido, e na República da Irlanda, a União Europeia.
No entanto, nas dezenas de anos sem fronteiras entre as duas Irlandas, ambas integrantes da União Europeia, os dois povos se aproximaram. Através de relações comerciais livres de impostos, da prestação de serviços de habitantes de uma região a pessoas da outra, escolas frequentadas indiferentemente por estudantes do Norte e do Eire, de um sem número de outras atividades, dois povos estavam se tornando um único, com mútuos interesses econômicos e humanos que não queriam perder.
Para manterem as fronteiras abertas no Brexit, surgiram diversas soluções, entre elas, a unificação de toda a ilha na República da Irlanda, que ganha apoio crescente entre todos os irlandeses. No entanto, surgiu um obstáculo: o princípio do consentimento, que dava à maioria protestante o direito de decidir sobre o status da Irlanda do Norte.
Mas vieram as eleições parlamentares e, pela primeira vez na história da Irlanda do Norte, os nacionalistas, advogados da unificação, venceram os unionistas, pró-permanência no Reino Unido. O placar foi 9 deputados contra 8 dos adversários.
Michelle O´Neil, vice-líder do Sinn Fein, celebrou o resultado: “o gênio saiu da garrafa da unidade irlandesa e não vai voltar. Acredito que esta tendência irreversível estará se movimentando muito rapidamente (Irish Post, 25-10-2009)”.
Ele deve ter razão. Os norte-irlandeses já sentiram as vantagens da fronteira livre. Para eles, são tão importantes que, unidos ao governo do Eire, bloquearam várias propostas de acordo no Brexit por não garantirem a continuidade do livre trânsito de pessoas e bens entre as duas partes da ilha. O feroz conflito de religiões, que marcou a história da Irlanda durante séculos, abrandou-se de forma sensível, muito em função dos interesses comerciais e laços pessoais que uniram os irlandeses de toda a ilha, quando membros da União Europeia.
A vitória dos partidos adeptos da unificação, pela primeira vez na história, parece um sinal de que o feeling of belonging (sentimento de pertencer) à nação Irlanda ficou mais forte, superando o peso da identificação religiosa.
A vitória dos defensores da unificação no pleito de 2019 foi significativa, mas a margem de 9 x 8 ainda é muito apertada.
Maturação 
Vale como começo, mas é de se crer que será necessário um vasto trabalho para convencer a grande maioria dos norte-irlandeses da ideia de “uma só Irlanda”. Só assim se criará uma vox populi suficientemente forte para calar as objeções que surgirão.
Os líderes do Sinn Fein já falam num referendo, mas são realistas, sabem que não é para logo. Num discurso em Derry, Mary Lou Macdonald, líder do Sinn Fein apostrofou os chefes de governo do Reino Unido e do Eire: “que esta mensagem chegue alta e clara ao prédio do governo, em Dublin, e a Downing Street, 10 (sede do primeiro ministro inglês), que esta nova década seja aquela em que finalmente acabaremos com a partição e chegaremos à nova Irlanda unida”. Nessa ocasião, afirmou que o referendo sobre o assunto deveria ser convocado no prazo de cinco anos (Irish Times, 16 de novembro). Podemos prever que o governo de Boris Johnson não vai gostar nada e fará de tudo para afundar esse barco.
Há quem sustente ser dispensável o nihil obstat inglês. Diz Craig Murray, ex-embaixador da Inglaterra, no seu website: “é perfeitamente normal que Estados se tornem independentes sem a permissão do Estado do qual estão se separando”.
E ele cita: “o próprio governo inglês alegou precisamente esta posição diante da Corte Internacional de Justiça no caso de Kosovo (no julgamento da independência desta nação)”. Não se pode confiar totalmente no poder desse argumento. É de se pensar que o populista primeiro-ministro Boris Johnson é daqueles para quem nada vale quando não convém a seus interesses.

Autor: Luiz Eça – Correio da Cidadania.

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