“La vida es sueños. E los sueños sueños son (Calderón de La Barca, poeta espanhol)”.
Uma só Irlanda para todos os irlandeses
foi um sonho que virou uma utopia frustrada. O povo irlandês passou vários
séculos lutando, primeiro pela independência da sua ilha, depois pela
unificação das duas partes em que fora dividida pelos ingleses. Nas últimas
décadas teve de desistir, conformou-se com a tirania da realidade e das armas
britânicas. Eis que, num momento sombrio em que os ingleses elegem um populista
de direita, com tudo de negativo que essa ideologia carrega, abre-se uma fresta
e a causa irlandesa, aparentemente perdida, começa a ganhar a forma de um sonho
agora possível, embora de realização difícil e demorada.
Em tempos imemoriais, o povo irlandês
era constituído por clãs, que raramente se uniam em quatro reinos, hostis uns
aos outros. No século 12, sofreu a primeira invasão inglesa bem sucedida. No
entanto, a ocupação da ilha pelo país vizinho não foi total, nem permanente. Somente quase 500 depois, a Inglaterra
consolidou seu domínio, no reinado de Henrique VIII, que impôs a religião
anglicana aos seus súditos. A maioria dos ingleses aceitou, mas os irlandeses
desafiaram as ordens do rei, mantendo-se católicos.
A reação de Henrique foi tomar terras
dos proprietários irlandeses e oferecê-las a nobres ingleses. Essa política foi
ainda mais radical no governo da filha de Henrique, Elizabeth I, o que
estimulou a aliança entre os clãs irlandeses. Eles promoveram a primeira
revolta pela sua independência, por sinal, violentamente reprimida.
No governo republicano do ditador
Cronwell, que derrubou a monarquia, em 1640, a situação ficou ainda desumana.
Inconformados, os irlandeses rebelaram-se mais uma vez. Milhares deles foram
massacrados, sendo vastas áreas tomadas aos católicos e entregues a
protestantes ingleses, trazidos pela ditadura Cronwell.
Mas a monarquia voltou à Inglaterra e,
durante os dois séculos seguintes, a resistência irlandesa continuou, limitada,
porém, a protestos e ações esporádicas. No final do século XVII e início do
XVIII, o Parlamento inglês exagerou o nível da opressão, retirando direitos
políticos dos irlandeses e criando mais leis opressivas.
No período 1847-1848, abateu-se sobre a
ilha a Grande Fome. Sua origem foi uma praga, que destruiu todas as plantações
de batatas, alimento básico dos pobres, causando a morte de 800 mil deles e a
imigração de milhões para os EUA.
Poucos protestantes, maioria nas classes
rica e média, foram atingidos e se aproveitaram para comprar terras dos
emigrados, a preços extremamente baixos. Nessa triste contingência, o governo
inglês se omitiu, nada fez para proteger o povo irlandês.
Com isso, em 1900, 750 proprietários
protestantes possuíam mais de 50% das terras cultiváveis. Os católicos, que se
salvaram da fome devastadora, eram donos de 14%, em geral pequenas
propriedades.
A formação do Eire
Em 1905, os nacionalistas irlandeses
fundaram o partido Sinn Fein - com o objetivo de lutar pela independência da
ilha. A ela se opôs a milícia “Voluntários do Ulster”, criada pelos unionistas.
A essas alturas na região do Ulster
(hoje, Irlanda do Norte), o protestantismo se tornara maioria. Muitos
trabalhadores escoceses e ingleses dessa religião haviam se fixado, atraídos
pelos empregos oferecidos no processo de industrialização, que estava em
marcha. Os conflitos entre protestantes
unionistas (favoráveis à permanência no reino inglês) e os nacionalistas
católicos (defensores da independência) se tornaram mais intensos. Em abril de
1916, no Levante da Páscoa, os nacionalistas decretaram a República da Irlanda.
A repressão inglesa foi feroz, tendo executado os líderes revolucionários,
depois de um julgamento rápido e de duvidosa legalidade.
Não pegou bem no povo. E, nas eleições
de 1918, o Sinn Fein elegeu a maioria dos deputados da ilha no Parlamento da
Inglaterra. Não demorou muito para que, em 1919, esse partido proclamasse a
Independência da Irlanda e a formação de um governo, prontamente rejeitado
pelas autoridades inglesas.
Nesse mesmo ano, foi fundado o IRA
(Exército Republicano Irlandês), que lançou ações terroristas, emboscadas e
explosões de bombas contra objetivos militares e políticos, em toda a Irlanda. Devido às dificuldades para a polícia
inglesa enfrentar os rebeldes, o governo de Londres organizou uma força
paramilitar, integrada por indivíduos violentos, muitos deles veteranos da 1ª
Grande Guerra, desempregados, para colaborar na repressão. Formou-se assim o
Black Tan, uma milícia de triste memória entre os irlandeses.
Na guerra sangrenta contra o IRA, o
Black Tan destruiu lares, matou rebeldes e inocentes, mulheres e crianças,
cometeu inúmeras atrocidades. Foi o autor do incêndio do centro da cidade de
Cork, da cidade de Balbriggan e de muitas aldeias, provocando terror. E assim
incentivando centenas de adesões à causa da independência.
Num dos episódios desta guerra civil,
tendo o IRA fuzilado 14 agentes-secretos ingleses infiltrados em suas fileiras,
as autoridades militares resolveram dar uma lição ao povo irlandês. Num domingo de novembro, um estádio
estava lotado por torcedores assistindo um jogo de futebol gaélico.
Subitamente, entraram carros de combate ingleses que despejaram tiros de
metralhadora nos assistentes, matando quatorze pessoas e ferindo 65. E, ainda
no mesmo dia, a polícia do governo espancou até a morte três rebeldes
prisioneiros.
Esse atentado ficou na história com o
nome de Domingo Sangrento de 1920. Pressionado por uma guerra que se tornava
intolerável, por seu alto custo e má repercussão internacional, o governo
inglês acabou por ceder. Em 1922, reconheceu a independência do Estado Livre da
Irlanda (Eire, em idioma gaélico), ocupando 4/5 da ilha, que se tornou membro
da Commonwealth (Comunidade Britânica de Nações) sob autoridade apenas formal
do rei da Inglaterra.
Por outro lado, a região do Ulster, 1/5
da Irlanda, continuava parte da Inglaterra, com o nome de Irlanda do Norte.
Postergação histórica
Os líderes da luta pela independência
foram forçados a aceitar a inócua subordinação ao rei da Inglaterra,
considerando ser preferível a uma guerra, que já derramara sangue em excesso e provavelmente
não teria chances de êxito.
Em 1949, com a retirada da Commonwealth
e o fim do juramento de fidelidade ao rei inglês, uma das concessões do acordo
de 1922 foram canceladas. Sobrava a outra, a partição da ilha. O IRA se opôs, queria a unificação das
duas partes separadas num só país, a República da Irlanda. Tendo em vista esta reivindicação, o IRA
passou a focar suas ações bélicas na Irlanda do Norte, contra a posição
pró-status quo da população protestante. Acentuou-se então a rivalidade entre
católicos e protestantes, estes apoiados pelo governo inglês e a polícia local.
Com o tempo, a situação se estabilizou, com redução gradativa dos choques. Em
fins de 1960, inícios dos anos 70, as coisas voltaram a pegar fogo numa
campanha pelos direitos civis dos católicos, contra a discriminação que sofriam
nos direitos de voto, de habitação e de emprego, pelo governo protestante e
empresas locais. Os manifestantes eram atacados por
grupos protestantes radicais, com ajuda da força policial. Rapidamente a
violência dos dois lados cresceu e se espalhou.
Em janeiro de 1972, aconteceu novo
domingo sangrento. Um batalhão de paraquedistas ingleses atirou contra civis
católicos, matando 11 e ferindo outros. Todos estavam participando de uma
marcha pacífica pelos direitos civis em Derry.
O exército inglês quis enganar a opinião
pública, alegando que os mortos estavam armados. Uma cuidadosa investigação
levou 38 anos, mas revelou que nenhuma das vítimas portava armas. No governo Thatcher (1979-1990), quando
os rebeldes presos foram tratados no cárcere como criminosos comuns ou mesmo
assassinados por setores da segurança, o IRA multiplicou sua ação. Promoveu
atentados a bomba não mais só na Irlanda do Norte, também na própria
Inglaterra.
Não dava mais para continuar. A opinião
pública internacional condenava os métodos violentos das forças de segurança. A
opinião pública em todo Reino Unido exigia o fim da guerra civil. Foi um primeiro-ministro trabalhista,
Tony Blair, que, em 1998, mediou um acordo entre os unionistas pró-Reino Unido
e os nacionalistas do Sinn Fein, estabelecendo eleições livres para a formação
de um parlamento norte-Irlandês e um ministério com participação católica. E a
Irlanda do Norte teria autonomia administrativa, embora permanecendo
subordinada ao governo de Londres em questões fundamentais.
O IRA e os Voluntários do Ulster se
obrigavam a entregar suas armas e interromper suas lutas. E assim se fez a paz.
Nos termos do chamado “Acordo da Boa
Sexta-feira”, a partição da ilha seria mantida, com base no “princípio do
consentimento”, respeitando a posição da maioria dos protestantes
norte-irlandeses, que desejavam continuar no Reino Unido. Os representantes do Sinn Fein foram
para casa, conformados, pois um aumento do número de católicos suficiente para
dominar as eleições seria algo remoto e incerto. A unificação das Irlandas
ficaria, quem sabe, para seus netos.
E um dia veio o Brexit
Mas os ventos ensaiaram uma mudança de
direção, já em 2016. No referendo do Brexit, realizado em todo o Reino Unido, a
maioria do eleitorado norte irlandês – 55% - votou para continuar na Europa,
contra a maioria do eleitorado das regiões britânicas.
Várias tentativas para se chegar a um
acordo que permitisse uma saída civilizada da União Europeia foram bloqueadas
especialmente porque as duas Irlandas exigiam que as fronteiras entre elas
continuassem abertas, por sérias razões econômicas e humanas. Com o Brexit
parecia impossível – pois ambas integrariam entidades diferentes – na Irlanda
do Norte, o Reino Unido, e na República da Irlanda, a União Europeia.
No entanto, nas dezenas de anos sem
fronteiras entre as duas Irlandas, ambas integrantes da União Europeia, os dois
povos se aproximaram. Através de relações comerciais livres de
impostos, da prestação de serviços de habitantes de uma região a pessoas da
outra, escolas frequentadas indiferentemente por estudantes do Norte e do Eire,
de um sem número de outras atividades, dois povos estavam se tornando um único,
com mútuos interesses econômicos e humanos que não queriam perder.
Para manterem as fronteiras abertas no
Brexit, surgiram diversas soluções, entre elas, a unificação de toda a ilha na
República da Irlanda, que ganha apoio crescente entre todos os irlandeses. No
entanto, surgiu um obstáculo: o princípio do consentimento, que dava à maioria
protestante o direito de decidir sobre o status da Irlanda do Norte.
Mas vieram as eleições parlamentares e,
pela primeira vez na história da Irlanda do Norte, os nacionalistas, advogados
da unificação, venceram os unionistas, pró-permanência no Reino Unido. O placar
foi 9 deputados contra 8 dos adversários.
Michelle O´Neil, vice-líder do Sinn
Fein, celebrou o resultado: “o gênio saiu da garrafa da unidade irlandesa e não
vai voltar. Acredito que esta tendência irreversível estará se movimentando
muito rapidamente (Irish Post, 25-10-2009)”.
Ele deve ter razão. Os norte-irlandeses
já sentiram as vantagens da fronteira livre. Para eles, são tão importantes
que, unidos ao governo do Eire, bloquearam várias propostas de acordo no Brexit
por não garantirem a continuidade do livre trânsito de pessoas e bens entre as
duas partes da ilha. O feroz conflito de religiões, que
marcou a história da Irlanda durante séculos, abrandou-se de forma sensível,
muito em função dos interesses comerciais e laços pessoais que uniram os
irlandeses de toda a ilha, quando membros da União Europeia.
A vitória dos partidos adeptos da
unificação, pela primeira vez na história, parece um sinal de que o feeling of
belonging (sentimento de pertencer) à nação Irlanda ficou mais forte, superando
o peso da identificação religiosa.
A vitória dos defensores da unificação
no pleito de 2019 foi significativa, mas a margem de 9 x 8 ainda é muito
apertada.
Maturação
Vale como começo, mas é de se crer que
será necessário um vasto trabalho para convencer a grande maioria dos
norte-irlandeses da ideia de “uma só Irlanda”. Só assim se criará uma vox
populi suficientemente forte para calar as objeções que surgirão.
Os líderes do Sinn Fein já falam num
referendo, mas são realistas, sabem que não é para logo. Num discurso em Derry, Mary Lou
Macdonald, líder do Sinn Fein apostrofou os chefes de governo do Reino Unido e
do Eire: “que esta mensagem chegue alta e clara ao prédio do governo, em
Dublin, e a Downing Street, 10 (sede do primeiro ministro inglês), que esta
nova década seja aquela em que finalmente acabaremos com a partição e
chegaremos à nova Irlanda unida”. Nessa ocasião, afirmou que o referendo
sobre o assunto deveria ser convocado no prazo de cinco anos (Irish Times, 16
de novembro). Podemos prever que o governo de Boris Johnson não vai gostar nada
e fará de tudo para afundar esse barco.
Há quem sustente ser dispensável o nihil
obstat inglês. Diz Craig Murray, ex-embaixador da Inglaterra, no seu website:
“é perfeitamente normal que Estados se tornem independentes sem a permissão do
Estado do qual estão se separando”.
E ele cita: “o próprio governo inglês
alegou precisamente esta posição diante da Corte Internacional de Justiça no
caso de Kosovo (no julgamento da independência desta nação)”. Não se pode confiar totalmente no poder
desse argumento. É de se pensar que o populista primeiro-ministro Boris Johnson
é daqueles para quem nada vale quando não convém a seus interesses.
Autor:
Luiz Eça – Correio da Cidadania.
Nenhum comentário:
Postar um comentário