Governo Bolsonaro propõe abstinência,
mas veta educação sexual na ONU e recebe aplausos de sauditas e
ultraconservadores.
A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, em cerimônia em Brasília 20/11/19 - Fábio Rodrigues Pozzebom - Agência Brasil
Ao ouvir os planos do Governo federal
para realizar uma campanha pela abstinência sexual entre
adolescentes, imediatamente me veio à mente as reuniões em que estive presente
em Genebra e em que vi o mesmo governo de Damares Alves, Jair Bolsonaro e
Ernesto Araújo defendendo que fossem retirados dos documentos na ONU e OMS
qualquer tipo de referência sobre “educação sexual”.
Tampouco aceitaram qualquer menção à
saúde e direitos reprodutivos, sempre sob o argumento de que tais termos
poderiam abrir caminho para a promoção do aborto.
Se à primeira vista essa situação pode
parecer contraditória, na agenda ultraconservadora-religiosa não há nada de
paradoxal entre as duas ações. No fundo, elas se completam num sentido mais
amplo: o esforço pelo controle sobre o corpo da mulheres.
Sugere-se o que fazer com o corpo,
enquanto recusa-se a aceitar a educação sexual como um direito
básico. Retira-se o direito de saber para garantir autonomia sobre seu corpo e,
ao mesmo tempo, uma campanha é promovida para dizer quando a mulher deve manter
relações sexuais.
A abstinência pode eventualmente fazer
parte de um programa de saúde e planejamento. De fato, a Sociedade para a Saúde
e Medicina do Adolescente, nos EUA, admite que adiar o início de relações
sexuais pode ter um impacto “saudável”. Mas jamais como uma solução recheada de
carga moral ou religiosa. E muito menos sendo o carro-chefe da estratégia em
que, ao mesmo tempo, a educação sexual é combatida em fóruns internacionais.
Neste caso, a abstinência se transforma
num instrumento de poder. E não em uma opção de saúde pública. A escolha da
idade não é do Estado, nem da família ou dos parceiros. Mas da mulher.
Pelo mundo, diferentes governos
ultra-conservadores vêm promovendo políticas “pró-família”. Mas, em cada uma
delas, a única que parece ser ignorada é a posição da mulher. Seu corpo, na
maioria das vezes, se transforma em um meio para atingir outros objetivos
políticos.
Na Hungria de Viktor Orban, por
exemplo, o Governo passou a dar incentivos para garantir o nascimento de mais
crianças húngaras. O país de fato vive uma redução de sua população. Mas, para
evitar ter de aceitar imigrantes, Budapeste optou por pagar famílias para
manter a “coesão nacional” e, de quebra, a cor da pele e a cruz.
Enquanto famílias são conduzidas a ter
mais de três filhos, Budapeste insiste em atacar a lei de aborto que existe e
ergue muros contra a “invasão” de imigrantes.
O ventre da mulher, neste caso, faz
parte de uma estratégia nacional, supremacista e profundamente xenófoba.
Os húngaros não são os primeiros a
adotar tal postura. Nos EUA, a tradicional ideia de nação ―branca e cristã―
andou de mãos dadas com movimentos Pró-Vida. Sociólogos apontaram como, ao
longo dos anos, a ansiedade da população branca americana cresceu, enquanto sua
participação na demografia do país passou de 90% em 1950 para 60% no início
deste século.
Com mais de 60% dos abortos sendo
realizados por mulheres brancas, uma das teses é de que, com novas leis para
impedi-las de interromper uma gravidez, se impediria que a população negra ou
mestiça superasse a parcela branca dos EUA.
Na Polônia, em 2016, o Governo de
extrema-direita propôs endurecer ainda mais as leis anti-aborto. Pelo projeto,
mulheres poderiam ser presas se buscassem serviços para realizar um aborto. A
proposta não vingou, diante dos protestos. Mas, nos bastidores, não são poucos
os grupos que avaliam que a medida poderia voltar a ser apresentada, com uma
nova roupagem. Também preocupa a ofensiva do Governo sobre os Judiciário.
No caso do Brasil, a recusa em aceitar a
educação sexual em textos oficiais da ONU aproximou o Brasil da
Arábia Saudita, um país “exemplar” no controle sobre o corpo da mulher. Riad,
rapidamente, saiu a aplaudir o novo posicionamento do Governo de Bolsonaro.
Longe de dar uma solução para uma
legítima e profunda crise de saúde pública, Brasil e outros governos optam por
ignorar o que os dados científicos mostram. Em levantamentos realizados por
alguns dos principais institutos de pesquisa, poucas são as evidências que
mostram que a criminalização da autonomia do corpo da mulher tenha gerado
resultados positivos.
De acordo com uma pesquisa publicado na
revista The Lancet, 25 milhões de abortos inseguros foram realizados no
mundo entre 2010 e 2014, a cada ano. Além desses, 7 milhões de mulheres foram
hospitalizadas por conta de abortos ilegais. De acordo com a Anistia
Internacional, 215 milhões de mulheres no mundo não tem acesso à métodos
contraceptivos, ainda que não queiram ter filhos. Segundo dados da ONU, 22.000
mulheres morrem a cada ano como consequência de abortos inseguros.
Pelo mundo, ainda são dezenas as leis
que mantêm um padrão inaceitável de controle do Estado ou dos homens sobre o
corpo da mulher. Em alguns casos, quem comete o estupro pode evitar ser preso
se casar com a vítima. Em outros lugares, clínicas apenas podem dar métodos
contraceptivos a uma mulher se ela chegar acompanhada de seu marido.
Na Irlanda, o aborto é ilegal. Mas,
entre 1980 e 2012, em média doze mulheres viajaram ao Reino Unido para
interromper uma gravidez. E isso a cada dia.
Fora de seu útero, as barreiras não
deixam de ser profundas. Em mais de 30 países, mulheres continuam precisando de
autorização de seus maridos para ter um passaporte, enquanto na Nigéria o
código penal mantém referências sobre “caráter imoral” de uma mulher. No ritmo
que vamos, a igualdade entre homens e mulheres no mercado laboral será obtido
em mais de cem anos.
Portanto, se o Governo brasileiro quer
falar em abstinência, terá de falar primeiro em autonomia da mulher, educação
sexual, direitos e saúde reprodutiva. E, enfim, não estaremos tratando do
dilema do poder da mulher sobre seu marido ou sobre os objetivos do Estado. Mas
estaremos promovendo uma política pública para que mulheres, parafraseando Mary
Shelley, tenham o poder sobre elas mesmas.
E isso, provavelmente, seria a maior
revolução na história da humanidade.
Autor: Jamil Chade é correspondente
na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos
Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta)
e outros cinco livros.
Um comentário:
Boa tarde! Pelo andar da carruagem estamos a anos luz De isso acontecer. Acho que sou um errado, ou um certo quanto a planejamento familiar,e não havendo isso a Mulher ter o direito de escolher em ter ou não o filha(a) Acho que em tudo Homens e mulheres deve estar em igualdade de condições. Obs: penso isso desde sempre!
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