Quem garante que os ataques verbais de
Bolsonaro à imprensa e à sociedade civil não se concretizarão, aproximando o
Planalto de líderes como Viktor Orban?
Cartaz de protesto contra Bolsonaro na Índia. Francis Mascarenhas - Agencia Reuters
Uma das discussões importantes entre os
analistas da democracia brasileira atualmente consiste em saber se o presidente
Jair Bolsonaro e seu Governo representam ou não um risco para a democracia
brasileira. Na segunda-feira, o cientista político Celso Rocha de Barros,
escreveu um importante artigo respondendo a articulistas que vêm
defendendo a ideia de que o balanço que se pode fazer do primeiro ano de
Governo Bolsonaro é o de que a democracia brasileira resistirá às bravatas
autoritárias do atual presidente e aliados.
Para Rocha de Barros, as ameaças são
reais e o fato de as instituições não terem desmoronado no primeiro ano de
Governo não significa que elas não estejam em risco. Claudio Couto, mostrando
como o teste permanente das instituições pode acabar esgarçando essa
resistência, e Claudio Ferraz, apontando que as democracias se fragilizam
em contextos de extrema polarização, também contribuíram para o debate.
Parece claro que não podemos simplesmente
comemorar o fato de a democracia ter resistido a um presidente com perfil e
discurso claramente autoritário em seu primeiro ano, como um sinal de que ela
resistirá mais adiante.
Eu escrevi, em novembro, para o site da
revista Piauí, um artigo alertando que o autoritarismo do século
XXI vai minando a democracia aos poucos. Não acordamos um dia com tanques
na rua e um regime autoritário, mas governantes eleitos democraticamente vão,
ao longo de alguns anos, corroendo instituições de freios e contrapesos, até
que elas perdem força e o autoritarismo se consolida. Os artigos que apontam a
sobrevivência da democracia neste primeiro ano como sinal de que não teremos
uma virada autoritária poderiam tranquilamente ter sido escritos ao final dos
primeiros anos dos Governos —hoje claramente autoritários— na Nicarágua, Hungria,
Venezuela, Polônia, Turquia e Índia.
Claro que também se deve ter cuidado
para não se tocar de forma leviana o alarme do autoritarismo. O Brasil ainda
tem instituições que têm funcionado como contrapesos importantes às inclinações
autoritárias do Executivo. Congresso, Supremo Tribunal Federal, imprensa e
sociedade civil têm conseguido reagir contra diversos ataques ao bom
funcionamento da democracia.
Também não se pode fingir que as
inclinações autoritárias presentes na sociedade e no Estado brasileiros
surgiram com a eleição de Bolsonaro. As milícias que oprimem regiões inteiras
do Rio e mataram Marielle Franco penetram o Estado bem antes de sonharem
com o Planalto, a Constituição é obra de ficção para os jovens negros das
periferias, ataques aos povos indígenas não são exatamente uma novidade na
nossa história. Os exemplos são, infelizmente, infindáveis.
O que mudou? O que faz com que o momento
atual represente um risco muito mais tangível de uma virada autoritária
profunda no Brasil?
Há uma mudança clara na sociedade. Um
defensor explícito da tortura, da ditadura e da homofobia não seria eleito em
um Brasil relativamente recente. Algo mudou na tolerância da nossa
sociedade com esses valores antidemocráticos. O autoritarismo latente na
nossa história tornou-se novamente desavergonhado – talvez fruto da forte
polarização como aponta Ferraz- e não há como negar que isso represente um
terreno muito mais fértil para que ataques à democracia deixem marcas mais
profundas em nossas instituições.
Além disso, parece haver na sociedade
uma radicalização da tensão em torno de temas morais, com ênfase especial na
questão de gênero. As reações violentas contra debates e manifestações a favor
da pauta LGBT ou de direitos das mulheres tomam proporções impressionantes.
Seja na bomba jogada no prédio da produtora do grupo Porta dos Fundos,
seja nas ameaças recebidas por Felipe Neto por defender um quadrinho com beijo
gay, seja na violência contra a antropóloga Debora Diniz, forçada a deixar
o país, podemos perceber que a manifestação pública nesse tema gera um novo
tipo de violência. Essa radicalização tem propiciado uma naturalização de
violências contra defensores de uma visão de mundo menos conservadora.
Nada disso foi inventado por Bolsonaro.
O que muda então? A presença de um chefe do Poder Executivo que foi eleito
baseado justamente nos valores afirmados por essas violências altera a forma
como as instituições brasileiras reagem a essas manifestações violentas.
A cada discurso que reforça uma visão
autoritária por parte do Governo (do ministro emulando nazismo ao
presidente dizendo que as pessoas de esquerda não merecem ser tratadas como
pessoas normais), os setores mais violentos da sociedade vão se sentindo à
vontade para avançar contra seus inimigos e as instituições vão, pouco a pouco
se sentindo confortáveis para reforçar as violências ao invés de proteger a
constituição.
O Governo anuncia que não haverá mais
fiscalização, os grileiros e o crime organizado reagem imediatamente não apenas
avançando no desmatamento, mas com ameaças e assassinatos de líderes indígenas
e defensores do meio ambiente. E as instituições respondem não coagindo essas
violências. O presidente diz que as ONGs são responsáveis pelos incêndios nas
florestas causados por esses mesmo grileiros criminosos, as instituições reagem
falseando investigações para acusar brigadistas que trabalhavam com ONGs —e
até com polícia e bombeiros locais— para apagar o fogo.
O presidente e seu ministro escolhem a
agenda do enfraquecimento da legislação para punir policiais que matam, a
polícia do Rio reage com seu ano mais violento da história, com o número
assustador de cinco pessoas mortas pela polícia por dia no Estado. O presidente
diz que o jornalista Glenn Greenwald “talvez pegue uma cana aqui no Brasil”, as
instituições reagem apresentando uma denúncia sem fundamento, em um dos
mais graves atentados à liberdade de imprensa no país pós-88. O discurso
presidencial estimula o ódio contra a esquerda, um grupo fascista reage jogando
uma bomba no prédio do grupo Porta dos Fundos e Judiciário carioca responde
censurando o especial de natal do grupo.
É esse mecanismo de alimentar a
violência através do discurso e criar um ambiente para que as instituições
corroborem essa violência ao invés de reprimi-la que marca a diferença do que
vemos hoje com o autoritarismo latente do Brasil.
Neste primeiro ano de Governo, apesar de
uma reação de apoio aos ventos autoritários por parte de instituições
principalmente locais, o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal,
parte relevante da imprensa e a sociedade civil têm conseguido impedir que o
discurso de fato desmonte a democracia.
São inúmeros os exemplos em que essas
instituições (em geral a soma de suas ações) têm conseguido barrar o
autoritarismo. Ou seja, a discussão não é sobre se há ou não ameaça à
democracia. Mas se essas instituições serão capazes de resistir a essa pressão
—apontada por Claudio Couto— constante por tanto tempo. E é aí que as
perspectivas são menos animadoras.
Bolsonaro indicará no mínimo dois
ministros do STF até 2022 e mais dois caso seja reeleito. Com a atual forma do
STF decidir, na qual decisões individuais são quase sempre mais
importantes do que o voto do plenário, é difícil prever o que ministros
comprometidos com os valores e ideias de Bolsonaro podem fazer com nossa
democracia.
Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre não
poderão ser reeleitos para as presidências das casas legislativas (a não ser que
alterem a Constituição) e, a partir de 2021, Bolsonaro poderá tentar emplacar
aliados mais próximos no comando das Casas. Quem garante que os ataques verbais
de Bolsonaro à imprensa e à sociedade civil não se concretizarão nos próximos
anos, aproximando seu Governo de seus pares no campo internacional como
Viktor Orbán?
O risco à nossa democracia existe. O
contexto global de crescimento de Governos autoritários exige que reconheçamos
isso. No nosso caso, a correia de transmissão entre o discurso autoritário,
passando pela violência de grupos sociais e a acolhida de instituições
estatais, fica cada vez mais clara. A resistência à naturalização desse processo
passa por denunciá-lo constantemente e evitar qualquer barganha para
naturalizá-lo (“nenhum silêncio é inocente”, alertou Eliane Brum aqui no EL
PAÍS).
Também é necessário compreender que há
um campo de batalha política fundamental na defesa de um STF comprometido com a
Constituição, de um Congresso que valorize a democracia e na preservação da
imprensa livre e do espaço para a sociedade civil. A capitulação desses pilares
pode transformar uma violência esparsa na nossa sociedade em uma violência
diretamente direcionada para a manutenção de um grupo político no poder, com
beneplácito das instituições. Se isso acontecer, não podemos ficar
surpresos, os indícios que vemos aqui são muito parecidos com indícios que
países hoje autoritários apresentaram depois de um ano de Governo.
Autor: Pedro Abramovay é mestre em direito constitucional pela UnB,
doutor em ciência política pelo IESP-UERJ e diretor da Open Society Foundations
para a América Latina e Caribe.
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