Em nossa cultura intelectual e jornalística surge uma nova forma
retórica. Trata-se da arte de escrever para idiotas que, entre nós, tem feito
muito sucesso. Pensávamos ter atingido o fundo do poço em termos de produção de
idiotices para idiotas, mas proliferam subformas, subgêneros e subautores que
sugerem a criação de uma nova ciência.
Estamos fazendo piada, mas quando se trata de pensar na forma assumida
atualmente pela voz da razão
temos que parar de rir e começar a pensar.
Artigos ruins e reacionários fazem parte de jornais e revistas desde
sempre, mas a arte de escrever para idiotas vem se especializando ao longo do
tempo e seus artistas passam da posição de retóricos de baixa categoria para
príncipes dos meios de comunicação de massa. Atualmente, idiotas de direita tem
mais espaço do que idiotas de esquerda na grande mídia. Mas isso
não afeta em nada a forma com que se pode escrever para idiotas.
Diga-se, antes de tudo que o termo idiota aqui empregado guarda algo de
seu velho uso psiquiátrico. Etimologicamente, idiota tem relação com aquele que
vive fechado em si mesmo. Na psiquiatria, a idiotia era uma patologia
gravíssima e que, em termos sociais, podemos dizer que continua sendo. Uma
tipologia psicossocial entra em jogo na história, baseada em dois tipos ideais
de idiotas: o idiota de raiz, dentre os quais se destaca a subcategoria do
idiota representante do conhecimento paranoico, e o neo-idiota, com destaque
para o idiota mercenário que lucra com a arte de escrever para idiotas.
Vejamos quem são:
1- Idiota de raiz é fruto de um determinismo: ele não
pode deixar de ser idiota. Seja em razão da tradição em que está inserido ou de
um déficit cognitivo, trata-se de um idiota autêntico. O Idiota de raiz
divide-se em três subtipos:
1.1 Ignorante orgulhoso: não se abre à experiência do
conhecimento. Repete clichês introduzidos no cotidiano pelos meios de
informação que ele conhece a televisão e os jornais de grande circulação, em que a informação é controlada. Sua formação é midiatizada, mas ele não sabe disso e se orgulha do que lhe permitem
conhecer. No limite, o ignorante orgulhoso diz sou fascista, sem conhecer a
experiência do fascismo clássico da década de 30 e o significado atual da
palavra, assim como é capaz de defender sem razoabilidade algumas ideias sobre
as quais ele nada sabe. Um exemplo muito atual: apesar da violência não ter
diminuído nos países que reduziram a maioridade penal, a ignorância da qual se
orgulha o idiota, o faz defender essa medida como solução para os mais variados
problemas sociais. Ele se aproxima do burro mesmo enquanto imita o
representante do conhecimento paranoico, apresentados a seguir.
1.2 Burro mesmo: não há muito que dizer. Mesmo com informação por
todos os lados, ele não consegue juntar os pontinhos. Por exemplo: o burro
mesmo faz uma manifestação democrática para defender a volta da ditadura. Para
bom entendedor, meia palavra.
1.3 Representante do conhecimento paranoico: tendo estudado
ou sendo autodidata, o representante do conhecimento paranoico pode ser, sob
certo aspecto, genial. Freud comparava, em sua forma, a paranoia a uma espécie
de sistema filosófico. O paranoico tem certezas, a falta de dúvida é o que o
torna idiota. Se duvidasse, ele poderia ser um filósofo. O conhecimento
paranoico cria monstros que ele mesmo acredita combater a partir de suas
certezas. O comunismo, o feminismo, a política de cotas ou qualquer política
que possa produzir um deslocamento de sentido e colocar em dúvida suas
certezas, ocupa o lugar de monstro para alguns paranoicos midiaticamente importantes.
Curioso é que o representante do conhecimento paranoico pode parecer
alguém inteligente, mas seu afeto paranoico o impede de experimentar outras
formas de ver o mundo, abortando a potência de inteligência, que nele é, a todo
o momento, mortificada. Isso o aproxima do ignorante orgulhoso e do burro mesmo.
Em termos vulgares e compreensíveis por todos: ele é a brochada da
inteligência.
2 Neo-idiota: o neo-idiota poderia não ser um idiota, mas sua
escolha, sua adesão à tendência dominante, o coloca nesse lugar. Não se pode
esquecer que, além de cognitiva, a inteligência é uma categoria moral. O
neo-idiota não é apenas um idiota, mas também um canalha em potencial. Há dois
subtipos de neo-idiota:
2.1 Idiota mercenário quer ganhar dinheiro. Ele serve aos
interesses dominantes, mas é um idiota como outro qualquer, porque não ganha
tanto dinheiro assim quando vende a alma.
Nessa categoria, prevalece o mercenário sobre o idiota. Por isso,
podemos falar de um idiota entre aspas. Ganha dinheiro falando idiotices para
os idiotas que o lerão. Seu leitor padrão divide-se entre o burro mesmo e o
idiota cool. Ele escreve aquilo que faz o burro mesmo pensar que é inteligente.
O idiota cool, por sua vez, se sente legitimado pelo que lê. O que revela a
responsabilidade do idiota mercenário no crescimento do pensamento autoritário
na sociedade brasileira. Apresentar Homer Simpson ou qualquer outro exemplo de
burro mesmo como modelo ideal de telespectador ou leitor é paradigmático nesse
contexto.
2.2 Idiota cool lê o que escreve o idiota mercenário. Repete suas
ideias na esperança de ser aceito socialmente. De ter um destaque como sujeito
de ideias (prontas). Ele gosta de exibir sua leitura do jornal ou do blog e usa
as ideias do articulista (do representante do conhecimento paranoico ou do
idiota mercenário) para tornar-se cool. Ele segue a tendência dominante. Ao
contrário do burro mesmo, nele sobressai o esforço para estar na moda. Como,
diferentemente dos seus ídolos, ele não escreve em jornais ou blogs famosos,
ele transforma o Facebook e outras redes sociais no seu palco.
Diante disso, temos os textos produzidos a partir da altamente falaciosa
arte de escrever para idiotas. O sucesso que alcançam tais textos se deve a um
conjunto de regras básicas. Identificamos dez, mas a capacidade para escrever
idiotices tem se revelado engenhosa e não deve ser menosprezada:
1- Tratar como idiota todo mundo que não concorda com as idiotices
defendidas. O texto é construído a partir do narcisismo infantil do
articulista. O autor sobressai no texto, em detrimento do argumento. Assim ele
reafirma sua própria imagem desqualificando a diferença e a inteligência para
vender-se como inteligente.
2- Não deixar jamais que seu leitor se sinta um idiota. Sustentar
idiotices com as quais o leitor (o burro mesmo, o ignorante orgulhoso e o
idiota cool) se identifique, o que faz com que o mesmo se sinta inteligente.
3- Abordar de forma sensacionalista qualquer tema. Qualquer assunto,
seja socialmente relevante ou não, acaba sendo tratado de maneira
espetacularizada.
4- Transformar temas desimportantes em instrumentos de ataque e
desqualificação da diferença. Por exemplo, a depilação feminina já foi um
assunto apresentado de modo enervante, excitante, demonizante e estigmatizante.
Nesse caso, o preconceito de gênero escondeu a falta de assunto do articulista.
5- Distorcer fatos históricos adequando-os às hipóteses do escritor.
Em uma espécie de perversão inquisitorial, o acontecimento acaba substituído
pela versão distorcida que atende à intenção do autor do texto para idiotas.
6- Atacar alguém. Este é um dos aspectos mais importantes da arte de
escrever para idiotas. A limitação argumentativa esconde-se em ataques
pessoais. Cria-se um inimigo a ser combatido. O inimigo é o mais variado, mas
sempre alguém que representa, na fantasia do escritor, o ideal contrário ao dos
seus leitores (os idiotas: o burro mesmo, o ignorante orgulhoso e o idiota
cool).
7- Reduzir tudo a uma visão maniqueísta. Toda complexidade desaparece
nos textos escritos para idiotas. O mundo é apresentado como uma luta entre o
bem e o mal, o certo e o errado, o comunismo e o capitalismo ou Deus e o Diabo.
8- Desconsiderar distinções conceituais. Nos textos escritos para
idiotas, conservadores são apresentados como liberais, comunistas são
confundidos com anarquistas, etc.
9- Investir em clichês e ideias fixas. Clichês são pensamentos
prontos e de fácil acesso. Sem o esforço de reflexão crítica, os clichês dão a
sensação imediata de inteligência. Da mesma maneira, o recurso às ideias fixas
é uma estratégia para garantir a atenção do leitor idiota (o burro mesmo, o
ignorante orgulhoso e o idiota cool) e reforçar as certezas em torno das
hipóteses do escritor (nesse particular, Goebbels, o chefe da propaganda de
Hitler, foi bem entendido).
10-Escrever mal. A pobreza vernacular e as limitações gramaticais são
essências na arte de escrever para idiotas. O leitor idiota não pode ser
surpreendido, pois pode se sentir ofendido com algo mais inteligente do que
ele. Ele deve ser capaz de entender o texto ao ler algo que ele mesmo pensa ou
que pode compreender. Deve ser adulado pela idiotice que já conhece ou que o
escritor quer que ele conheça.
(Para além do que foi identificado acima, fica a questão para quem deseja escrever para idiotas: como atingir a pobreza essencial na forma e no conteúdo que concerne a essa arte?)
(Para além do que foi identificado acima, fica a questão para quem deseja escrever para idiotas: como atingir a pobreza essencial na forma e no conteúdo que concerne a essa arte?)
A arte de escrever para idiotas constitui parte importante da retórica
atual do poder. Saber é poder, falar/escrever é poder, e o idiota que fala e é
ouvido, que escreve e é lido, tem poder. O empobrecimento do debate público se
deve a essas cabeças de papelão, fato que é identificado tanto por pensadores
conservadores quanto por progressistas.
O grande desafio, portanto, maior do que o confronto reducionista entre
direita e esquerda, desenvolvimentistas e ecologistas, governistas e
oposicionistas, entre machistas e feministas, parece ser o que envolve os que
pensam e os que não pensam. Sem pensamento não há diálogo possível, nem
emancipação em nível algum.
Se não houver limites para a idiotice, ao contrário da esperança que
levou a escrever esse texto, resta isolar-se e estocar alimentos.
Autores: Márcia
Tiburi e Rubens Casara, Cult
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