Vivemos
tempos duros, nos quais uma onda mundial tenta reverter as grandes reformas
democráticas que tornaram o mundo menos desigual.
O presidente Jair Bolsonaro ao lado do filho, o senador Flávio Bolsonaro, em lançamento de seu partido, Aliança Pelo Brasil. Evaristo Sa (AFP)
O título desta coluna não tenta ser uma
provocação, e sim a descrição de uma dura realidade. Vi a feliz frase sobre
“taxar as grandes pobrezas” numa lúcida análise de Eliane Cantanhêde no
jornal O Estado de S. Paulo. As reformas que o governo de extrema
direita está realizando deveriam, de fato, ter começado com os olhos
postos nas franjas mais frágeis da sociedade, e não ao contrário. Assim, em vez
de ter começado, por exemplo, taxando as grandes fortunas, os grandes bancos,
os grandes dividendos, as grandes heranças, os escandalosos privilégios dos
políticos e das corporações, que levaram a política no mundo todo a se arrastar
desprestigiada pelo chão, decidiram ampliar ainda mais as grandes pobrezas,
cobrando imposto até sobre o seguro-desemprego. Esquecendo-se de que só uma
política social assegura o exercício pleno da democracia, com a soberania do
povo. O contrário conduz aos tempos sombrios da escravidão.
Sim, o governo Jair Bolsonaro está
levando a cabo reformas que, começando pela previdenciária e
continuando com mudanças trabalhistas —carteira verde-amarela ou
taxar o seguro-desemprego—, castiga os grandes bolsões de pobreza e
miséria que juntos representam a maioria dos 210 milhões de brasileiros. O
novo projeto das aposentadorias deveria ter começado por levar em conta aqueles
milhões de trabalhadores que durante toda uma vida realizaram os trabalhos mais
duros, nas fábricas, no campo, em todos os setores menos remunerados.
Justamente esses milhões que trabalharam duro durante mais de 30 anos e que,
quando chegar sua vez de um justo descanso, terão que sobreviver com uma pensão
de fome; eles que, ganhando um salário mínimo, não conseguiram economizar nem
acumular capital, porque mal tinham como chegar ao fim do mês sem se endividar.
Ao contrário, quem já ao longo da vida
goza de um trabalho bem remunerado chega à aposentadoria com um acúmulo de bens
que dá e sobra para poder viver sem aposentadoria e com tranquilidade. Sim, são
as grandes pobrezas que estão sendo castigadas e humilhadas para que os
privilegiados de sempre possam continuar desfrutando e sem apertos na hora
da aposentadoria.
A quem culpar por essa tragédia social
em que os mais frágeis serão novamente os bodes expiatórios do capitalismo
brutal que vai deixando rios de dor e injustiças pelo caminho? Ao governo
ultraliberal de Bolsonaro? Não. Antes da sua chegada, uma esquerda
distraída e culpada, que passou 13 anos no poder e com o consenso de até 80% da
população em alguns momentos, teve a oportunidade de realizar essas mesmas
reformas, mas com o coração voltado para os mais frágeis. Reformas com forte
conteúdo social, começando pela base de uma pirâmide de trabalhadores que cada
vez se amplia mais, enquanto continua enriquecendo as grandes fortunas que são
a minoria da população.
Essa esquerda que neste momento só soube
dizer não às reformas da ultradireita, sem apresentar alternativas sociais, não
foi capaz de realizar as grandes reforma com forte conteúdo social. Nem a
trabalhista nem a política nem a do Estado, ainda que tenha feito algumas
mudanças na Previdência. E não porque faltasse a esses governos consenso
popular ou força no Congresso, já que governou com os partidos mais fortes.
Foi, entretanto, incapaz de instaurar governos social-democratas, de
centro-esquerda, em vez de sair de braços dados com a grande direita do
dinheiro. Ainda me lembro de ter escutado o então presidente Lula dizer numa
reunião com banqueiros em São Paulo: “Vocês nunca antes tinham ganhado tanto
como comigo”. Triste recorde que humilha os pobres que devem pagar juros
absurdos para poder sobreviver.
Agora, quando essa direita tomou o poder
e é ela que faz essas reformas com o coração posto naqueles que menos precisam
delas, de pouco serve derramar lágrimas de carpideira. Já é tarde. A esquerda
não terá mais força para suscitar um movimento de rebeldia. Perdeu o trem,
adormecida que estava sobre os louros de um consenso impressionante, que não
soube aproveitar.
Em um período semelhante de 14 anos, na
Espanha, o governo socialista de Felipe González, com apoio do rei
Juan Carlos, teve tempo de transformar um país arruinado, despedaçado após 40
anos de dura ditadura franquista. Encontraram um país que precisava ser
reconstruído política, jurídica e socialmente após décadas de pobreza material
e cultural, em que tinham sido abolidas todas as liberdades modernas e os
direitos mais elementares. E o fizeram com as grandes reforma progressistas que
devolveram ao país os direitos sindicais, de liberdade de expressão, de
divórcio, de gênero e do aborto. Essas grandes reformas que colocam um país na
rota da modernidade e que a esquerda brasileira não soube concluir quando tinha
força para isso.
Vivemos tempos duros, nos quais uma onda
mundial tenta reverter as grandes reformas democráticas que tornaram o mundo
menos desigual e lhe permitiram viver os ares de uma democracia séria e segura,
sem a qual não existem reformas possíveis. E nestes momentos quem mais sofrerá
com essa tentativa de volta à escuridão política e social serão sem dúvida os
párias de sempre, que, por sua vez, sustentam com seu trabalho as colunas do
mundo.
Se os políticos de esquerda e de direita
encasquetarem em não querer olhar para essas massas de trabalhadores que a
sociedade do consumo abandonou na pobreza; se não forem capazes de abrir os
olhos a essas tremendas injustiças sociais que aumentam com os problemas dos
milhões de migrantes que percorrem o mundo como uma sombra e um alarme, então é
possível que pela primeira vez o mundo, que sempre foi melhor em seu presente
que em seu passado, porque as conquistas da ciência e a tecnologia lhe abriam
espaços novos de liberdade, acabe nos fazendo suspirar pelo passado, numa grave
miragem perversa.
O Brasil se reduz cada vez mais a essa
nova trindade apresentada simbolicamente pelo novo partido criado por
Bolsonaro, de Deus, violência e caça às bruxas comunistas, que já não
existem mais porque, além de tudo, se aburguesaram. A esses milhões que se
entregaram nas mãos de Bolsonaro agitando a bandeira de Jesus com a Bíblia na
mão seria preciso recordar a dura passagem do evangelho em que Jesus grita:
“Atam cargas pesadas e as colocam sobre os ombros dos mais fracos que sois
incapazes de suportar” (Mt, 23, 4ss).
Que leiam, sim, os evangelhos, mas para
entender que o cristianismo foi, em seus primórdios, revolucionário e em defesa
dos mais necessitados. Que o profeta de Nazaré, perante as multidões famintas,
necessitadas e sem poder que lhe seguiam, exclamou: “Tenho compaixão por esta
gente”. E é essa compaixão por quem é abandonado no caminho por ser diferente é
a única coisa que pode mais uma vez salvar este mundo atormentado e cada dia
mais injusto. Quem se atreverá a apostar nessa utopia sem a qual a realidade
nos levará ao inferno da violência e do desprezo pelos valores do único
humanismo que pode nos salvar? Todo o resto são inúteis atalhos sem saída.
Cabe aqui um recado ao ministro da
Economia, Paulo Guedes, que justificou a alusão feita ao famigerado
decreto AI-5 por temer protestos como o que sacodem o resto da América
Latina. Ministro, troque o medo pela compaixão proposta por Nazaré. Deixe-se
guiar pelas vozes e os sentimentos certos. Pode valorizar os mascarados
agressivos dos protestos do Chile, ou prestar atenção na música do cantor
Victor Jara que os jovens chilenos têm cantado durante os atos: “o direito
de viver em paz”, buscando dignidade por um novo pacto social que corrija as
mesmas injustiças de taxar a grande pobreza, herdada de Pinochet.
Autor:
Juan Arias – El País.
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