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1 de abril de 2021

Borboletas, ditadores e escritores!

A crítica literária e editora alemã Michi Strausfeld se refere à literatura latino-americana em seu novo livro como um todo, muito variado, mas orgânico, e ao mesmo tempo a julga como algo ligado à história.

Foi uma sorte para a América Latina que, em sua infância, Michi Strausfeld visse os documentários de Hans Domnick que mostravam as suntuosas ruínas dos astecas e maias no México e na Guatemala e as enigmáticas pedras do santuário militar de Machu Picchu, no Peru. Isso resultou em uma crítica e editora latino-americanista que fez pela difusão da literatura da América Latina na Alemanha mais do que todas as universidades juntas de seu país.

Não exagero em nada. Ela estudou Filologia inglesa e românica e se doutorou com uma tese sobre a obra de García Márquez. Viajou por todos os rincões do Novo Mundo, as grandes cidades e as pequenas vilas perdidas, se tornou amiga de escritores e editores, aprendeu as línguas lá faladas (além dos infinitos dialetos), o espanhol, o português, o francês e o inglês e, como editora, primeiro na editora Suhrkamp e depois na S. Fisher, publicou traduções de muitos autores latino-americanos, além de organizar simpósios, mesas redondas e fazer com que fossem convidados à Alemanha uma infinidade de autores. Eu disse: mais do que todas as universidades da Alemanha juntas.

E, como se tudo isso fosse pouco, acaba de editar em espanhol um esplêndido livro de mais de quinhentas páginas chamado Mariposas Amarillas y los Señores Dictadores (Debate), que termino de ler. Primeiramente, há duas coisas pelas quais felicitar Michi Strausfeld. A primeira é que se refere à literatura desse vasto continente como um todo integral, muito variado, mas orgânico (que diferenças essenciais há entre as literaturas do Equador, Peru e Bolívia, e entre a argentina e a uruguaia?) e, a segunda, que julga e se refere à poesia, o conto, o ensaio e o romance como algo essencialmente ligado à história; foi assim na Europa no passado e, sobretudo, no século XIX. Isso permite, em sua frondosa pesquisa, se referir não somente aos livros literários mais originais e criativos, como, também, a fabulações de menor importância pelo que contribuem como testemunhos e investigações particulares da violência que percorre esse continente derivada das ditaduras, da luta contra elas, da discriminação da mulher e, nos últimos anos, como consequência do tráfico de drogas. O livro é muito bem escrito e, apesar de sua envergadura, é lido com prazer e simpatia, porque as sisudas nomenclaturas e rigorosas análises são abrandados com relatos, fofocas, confidências e alarmantes passeios por regiões inóspitas, domínio das guerrilhas e sede de incontáveis assassinatos.

Como muitos intelectuais europeus, as revoluções encantam minha amiga Michi Strausfeld e ela gostaria que os escritores estivessem sempre do lado dos rebeldes que lutam por boas causas ―nem sempre é assim e alguns intelectuais latino-americanos estamos muito longe das pistolas e bombas e queremos que a América Latina seja um continente pacífico e democrático, sem pistoleiros e explosivos, como acontece agora na Alemanha, por exemplo―, mas é preciso dizer a seu favor que não discrimina ninguém segundo critérios políticos, e que dá tanto espaço a Mario Benedetti e Eduardo Galeano como a Octavio Paz e Sergio Ramírez nas páginas de seu fascinante livro. A única omissão maior que encontrei nestes capítulos onde há mais de uma centena de livros e autores estudados ―em análises geralmente penetrantes e acertadas― é a do chileno Jorge Edwards, romancista, contista e ensaísta de alto nível, que teria merecido figurar nesse original panorama das letras latino-americanas.

O livro começa com o descobrimento, ou seja, em outubro de 1492, quando Colombo escreve ao papa Alexandre VI que tem a impressão de “que estas paragens são as do Paraíso terreno”, os principais cronistas, Bernal Díaz del Castillo para o México e o Inca Garcilaso de la Vega, do Peru, estão bem estudados, com páginas que conservam intacto o maravilhamento dos espanhóis com os palácios, praças e caminhos, ao mesmo tempo que descobrem tribos primitivas, civilizações refinadas de sofisticadas arquiteturas e cidades lacustres. O livro dá um salto sobre os anos coloniais ―sem deixar de citar, evidentemente, a soror Juana Inés de la Cruz, discípula longínqua de Góngora―, em que os romances estiveram proibidos na América, por uma misteriosa razão que, até agora, ninguém soube explicar. A proibição não funcionou no que se refere à importação de livros, porque o contrabando era muito intenso ―se diz que os primeiros exemplares do Quixote chegaram a Callao ocultos em uma barrica de vinhos―, mas sim a de publicar, pois o primeiro romance impresso na América é El Periquillo Sarniento, no México, somente em 1816.

O livro se intensifica nos séculos XIX, XX e no XXI, à medida que as colônias se tornam independentes e começa o período das ditaduras militares, em que a América Latina, com exceções para as que sobram os dedos de uma mão, se dedica a matar-se, a roubar e a destruir as flamantes repúblicas que, traindo o legado de Bolívar, ao invés de unirem-se como na América do Norte, se dividem e subdividem e se dedicam a guerrear entre si e com os vizinhos, até transformar o novo continente em um sabá sinistro. Este é o momento em que surgem com grande força a poesia e os romances, como uma floração literária da guerra e dos múltiplos problemas sociais. Michi Strausfeld insiste muito, e de modo convincente, em que essa literatura preenche os vazios deixados pela história, e exalta e diversifica ao extremo o que os grandes fatos históricos não estão em condições de detalhar: o sofrimento injusto das vítimas, a crueldade em que se traduzem aos pobres as enormes divisões sociais, a maneira como os Estados Unidos ajudam as empresas norte-americanas subornando e derrubando os governos que iniciam processos de reforma agrária e estabelecendo os primeiros sintomas ―na educação pública― da igualdade de oportunidades.

Essas são as páginas mais interessantes de seu livro: a maneira como a literatura se infecta da problemática social e a vai refletindo, às vezes aumentada, às vezes diminuída, mas sempre se apoiando em uma realidade viva, ainda que imagine um povoado de mortos, como Juan Rulfo, e o espetáculo de um país devastado por um ditador louco, erudito e sanguinário, como o doutor Francia, nos romances de Augusto Roa Bastos. Ela alerta, com muitíssima razão, que é na literatura que se começa a documentar a condição da mulher, e as lutas, agora estendidas por todo o continente, por sua emancipação, um processo lento e terrível já em marcha e com conquistas certamente alcançadas.

O problema da droga ocupa bom número de páginas e com muita razão: os cartéis acumularam riquezas que cegam e geraram uma violência infernal especialmente na Colômbia e no México; naquele país subvencionaram meio século de guerrilhas e seus massacres espantosos, e neste a violência atingiu cotas de horror sobre o que nos ilustram as “crônicas” do jornalismo, gênero ao que Michi dedica, muito justamente, bom número de páginas.

Ela lamenta que, após o famoso e já defunto “boom” da literatura latino-americana, a Europa tenha se desinteressado agora por ela, sobretudo pensando nos anos sessenta e setenta do século passado. Não deveria. Já estamos lá, também na Europa, e não somos nada exóticos, não valemos pelo mundo do qual viemos e sim em função do que fazemos, nem mais e nem menos do que os franceses, os ingleses, os italianos, os alemães e os outros europeus. Não era isso o que queríamos?

Autor: Mario Vargas Llosa – El País.

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