Fachada do Congresso Nacional, em Brasília. Foto de Jefferson Rudy da Agência Senado.
Parlamentos se institucionalizaram a partir da crescente complexidade da sociedade e da racionalização do mundo, que passaram a exigir alguma forma de tomada de decisão, com potencial legitimidade, diante de múltiplos interesses divergentes. Os parlamentos assumiram, então, o papel de câmaras de compensação (clearing-houses) políticas, possibilitando a formação de compromissos. As sessões legislativas são ocasiões para trocas sociais, patronagem e uma vasta variedade de transações, ajudando a estabilizar e a harmonizar o relacionamento entre os diferentes grupos sociais.
Vistos dessa forma, os parlamentos eram como feiras políticas e tiveram para o mundo político papel similar ao que as feiras tiveram para o mundo econômico. O mercado trouxe a inédita possibilidade de transações em larga escala entre anônimos, respeitados os interesses particulares e assegurado um meio de pagamento aceito por todos. No parlamento havia uma linguagem na qual o conflito e a oposição podiam se manifestar de forma controlável, propiciando uma estrutura na qual o poder de mando passou a se dar por meio de uma divisão de trabalho organizada. Em parlamentos, poder é moeda.
A história do parlamento britânico, que serviu de modelo para os parlamentos modernos, pode razoavelmente ser vista como um inequívoco movimento na direção de sua distinção entre os vários competidores pelo poder no sistema político, uma instância legitimadora em potencial. O modelo de Westminster deixou aos grupos profissionais, aos sindicatos, aos religiosos, aos indivíduos o direito de defenderem seus interesses e de se digladiarem, verbalmente, antes e durante a ação. Como câmara de compensação, o parlamento oferece um espaço capaz de manter a moderação das controvérsias, ainda que tiros de revólver não sejam algo desconhecido no seu interior.
Pouco a pouco, o parlamento foi adquirindo substância, deixando de estar ancorado nas tradições do costume, para se fundar em noções pós-tradicionais. Propiciou uma estrutura comunicativa para que governantes e governados chegassem a acordos sobre o tamanho das contribuições individuais ao bem comum. Desse processo, resultaram, de forma clara, o princípio do governo representativo, a definição da unidade política e sua vinculação ao processo de representação, e a competência do Poder Legislativo para tomar as decisões referentes ao Orçamento Público, bem como seu papel no processo de checks and balances entre os principais poderes de uma república. Estas foram aquisições apropriadas pelos regimes democráticos, aprofundadas pelo posterior republicanismo, tornando-se suas características essenciais até o presente.
O parlamento brasileiro guardou características do modelo britânico (inspirador da primeira Constituição monárquica). Ao longo do Império, isso ficou bastante evidente com a alternância entre gabinetes conservadores e liberais. E um ponto ressalta ainda mais essa dimensão: quando o parlamento não foi capaz de encontrar e dar uma solução para o conflito de interesses, houve ruptura institucional. Tal foi o caso no pré golpe de 1964, do qual lembramos, para não esquecer, seis décadas depois.
O contexto era de muita disputa política e ideológica, que refletiam uma profunda divisão na sociedade brasileira da época. O governo de João Goulart tinha um programa de reformas sociais e econômicas que enfrentava forte oposição. Propostas de reforma agrária e reformas na educação, particularmente, geraram intensos debates e confrontos legislativos. A câmara de compensação não foi suficiente e o sistema político democrático entrou em falência. A incapacidade das assembleias democráticas em solucionar as controvérsias sociais ocasiona um inevitável descontentamento com a própria democracia. Os parlamentos perdem a legitimidade de sua institucionalidade e passam a serem vistos apenas como locais de debates inúteis e intermináveis.
O parlamento reduz o risco social, ao assegurar um
lugar em que os interesses sejam debatidos, conciliados e reduzidos a decisões,
com a garantia de que todas as partes aceitem os resultados. Sem essa
instância, o risco sistêmico aumenta, com a crescente desconfiança de
defensores de determinados interesses. Quando a câmara de compensação política
falha, há perda generalizada de confiança no sistema e os participantes tendem
a buscar soluções extra sistêmicas para alcançarem os resultados que desejam.
Foi o caso em 1964. Com a escalada da crise política, algumas forças sociais
optaram pelo abandono do sistema e apoiaram o golpe militar. Não foi por acaso:
cada vez que a legitimidade do parlamento é colocada em dúvida, sente-se o
cheiro do autoritarismo.
Autor:
André Sathler - Doutor em Filosofia, mestre em
Informática e em Comunicação. Consultor do MEC, da Capes, do Ministério da
Justiça e coordenador do Grupo de Pesquisa e Extensão em Parlamento Digital.
Coordenador do Congresso em Foco Análise. Publicado no Site Congresso em Foco.
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