Saindo do
aeroporto, o motorista de táxi ligou o rádio, num volume razoavelmente baixo, mas
suficiente para que eu ouvisse uma cantoria evangélica. Não sou de criar caso.
Tive alguma vontade de pedir que ele mudasse de estação. Depois, pensei: se eu
estivesse desembarcando no Irã ou na Arábia Saudita, o taxista estaria
provavelmente ouvindo alguma reza muçulmana, e eu não teria moral para
reclamar.
Tiro uma
conclusão que não é muito lógica, mas em todo caso é o que eu sinto. Estou num
país muçulmano; já não falo português, já não entendo o que dizem.
Nunca fui
a um culto evangélico. Nunca assisti a um episódio de A Fazenda. Da cantora
sertaneja Marília Mendonça, que morreu num acidente de avião há pouco tempo, eu
nunca tinha ouvido falar.
Passei os
últimos 20 anos sem ser assaltado. Nunca fui a um baile funk. Não sei quem é o
senhor Madruga. Muito de vez em quando, abro ao acaso uma página da Bíblia — e
o que encontro são frases sem sentido nenhum.
No caixa
da farmácia, no barbeiro, cansei de ver pessoas precisando de maquininha para
fazer a conta de 50 menos 20. Bem, esse
problema acabou, porque não se usa mais dinheiro vivo — exceto para comprar mansões
quando se é da família Bolsonaro.
Que
importância tem isso? Os eleitores de Bozo são impermeáveis às notícias sobre a
corrupção de seus mitos. A Folha e o Jornal Nacional, parâmetros do
establishment, não existem para essa gente. Ou existem, e ninguém dessa turma
acredita. Ou então, há o grupo que acredita, mas não quer nem saber, porque é
de extrema direita mesmo, e faz de conta que há honestidade em Valdemar da
Costa Neto, Daniel Silveira, Roberto Jefferson e bolsonaristas em geral.
Essa
turma também não acredita em pesquisas. Sou forçado a concordar que a razão
está do lado deles. Logo, logo, vou tentar a cloroquina. Pelo que li, analistas
dizem que está muito mais difícil fazer projeções em pesquisas de opinião. A
sociedade está tão heterogênea, é um mosaico tão incoerente, que uma pequena
amostra não dá conta do que acontece; não se consegue generalizar.
Talvez
seja isso. Não sou especialista, mas raciocino o seguinte. Você
calcula, por exemplo, que tanto por cento da sua amostra ganha de dois a cinco
salários mínimos, e que essa é a proporção dos que pertencem a essa faixa de
renda no conjunto da sociedade. Sua amostra exemplifica o que se passa nos
muitos milhões de brasileiros com a mesma condição econômica.
Só que
não: na faixa dos que ganham essa quantia, a heterogeneidade é tão grande, as
contradições são tão insondáveis, os caprichos e desatinos tão variados, que a
variável econômica (para falar apenas de uma das muitas) já não separa mais
nada de ninguém, junta cebolas com telefones, alhos com safiras. Isso é
especulação minha, ou chute meu não entendo de levantamentos de opinião. Não
entendo de Brasil, tampouco.
Não me
digam que, ora ora, o desastre não foi tão grande assim, que Bolsonaro teve
muito menos votos que Lula etc. Era para Bolsonaro ter zero voto depois destes
anos de governo. Um presidente que disse "e daí?" para os mortos da
pandemia, que desrespeitou todas as leis que buscavam diminuir a contaminação,
que fez o que pôde para atrasar a compra de vacinas — e não falo nem sequer do
resto, do conjunto da obra —, era para não ter voto de ninguém.
Mas ele
teve o voto de vacinados, de pessoas que usaram máscara; entre estas, houve
quem elegesse o general Pazuello para a Câmara dos Deputados. Segundo
as pesquisas (epa), a maioria da população rejeita a liberação das armas de
fogo. Entre esse setor de opinião, haverá, contudo, milhões de eleitores de
Bolsonaro.
Há muita gente com um irmão, uma prima, um cunhado ou sobrinha homossexual. Que diferença faz? Vota-se em Bolsonaro. Que Lula e o PT tenham feito todo o mal do mundo, isso não explicaria o apoio a um irresponsável, um incendiário, um golpista, um deformado no cérebro e na alma.
Mas é
isso. Eu — e provavelmente você, meu leitor —pertencemos a um mundo em que é
notícia o fato de Caetano gostar mais de Lula ou de Ciro Gomes.
Estamos falando em italiano no Paquistão, espanhol na Mongólia, francês nas Filipinas. Arrivederci, hasta luego, au revoir, mais sorte na próxima encarnação.
Ilustração de André Stefanini para coluna de Marcelo Coelho
Autor: Marcelo Coelho - Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”. Artigo publicado na FSP em 04/10/22.
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