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6 de outubro de 2022

Pesquisas não deram conta das incoerências do eleitor de Bolsonaro!

Saindo do aeroporto, o motorista de táxi ligou o rádio, num volume razoavelmente baixo, mas suficiente para que eu ouvisse uma cantoria evangélica. Não sou de criar caso. Tive alguma vontade de pedir que ele mudasse de estação. Depois, pensei: se eu estivesse desembarcando no Irã ou na Arábia Saudita, o taxista estaria provavelmente ouvindo alguma reza muçulmana, e eu não teria moral para reclamar.

Tiro uma conclusão que não é muito lógica, mas em todo caso é o que eu sinto. Estou num país muçulmano; já não falo português, já não entendo o que dizem.

Nunca fui a um culto evangélico. Nunca assisti a um episódio de A Fazenda. Da cantora sertaneja Marília Mendonça, que morreu num acidente de avião há pouco tempo, eu nunca tinha ouvido falar.

Passei os últimos 20 anos sem ser assaltado. Nunca fui a um baile funk. Não sei quem é o senhor Madruga. Muito de vez em quando, abro ao acaso uma página da Bíblia — e o que encontro são frases sem sentido nenhum.

No caixa da farmácia, no barbeiro, cansei de ver pessoas precisando de maquininha para fazer a conta de 50 menos 20. Bem, esse problema acabou, porque não se usa mais dinheiro vivo — exceto para comprar mansões quando se é da família Bolsonaro.

Que importância tem isso? Os eleitores de Bozo são impermeáveis às notícias sobre a corrupção de seus mitos. A Folha e o Jornal Nacional, parâmetros do establishment, não existem para essa gente. Ou existem, e ninguém dessa turma acredita. Ou então, há o grupo que acredita, mas não quer nem saber, porque é de extrema direita mesmo, e faz de conta que há honestidade em Valdemar da Costa Neto, Daniel Silveira, Roberto Jefferson e bolsonaristas em geral.

Essa turma também não acredita em pesquisas. Sou forçado a concordar que a razão está do lado deles. Logo, logo, vou tentar a cloroquina. Pelo que li, analistas dizem que está muito mais difícil fazer projeções em pesquisas de opinião. A sociedade está tão heterogênea, é um mosaico tão incoerente, que uma pequena amostra não dá conta do que acontece; não se consegue generalizar.

Talvez seja isso. Não sou especialista, mas raciocino o seguinte. Você calcula, por exemplo, que tanto por cento da sua amostra ganha de dois a cinco salários mínimos, e que essa é a proporção dos que pertencem a essa faixa de renda no conjunto da sociedade. Sua amostra exemplifica o que se passa nos muitos milhões de brasileiros com a mesma condição econômica.

Só que não: na faixa dos que ganham essa quantia, a heterogeneidade é tão grande, as contradições são tão insondáveis, os caprichos e desatinos tão variados, que a variável econômica (para falar apenas de uma das muitas) já não separa mais nada de ninguém, junta cebolas com telefones, alhos com safiras. Isso é especulação minha, ou chute meu não entendo de levantamentos de opinião. Não entendo de Brasil, tampouco.

Não me digam que, ora ora, o desastre não foi tão grande assim, que Bolsonaro teve muito menos votos que Lula etc. Era para Bolsonaro ter zero voto depois destes anos de governo. Um presidente que disse "e daí?" para os mortos da pandemia, que desrespeitou todas as leis que buscavam diminuir a contaminação, que fez o que pôde para atrasar a compra de vacinas — e não falo nem sequer do resto, do conjunto da obra —, era para não ter voto de ninguém.

Mas ele teve o voto de vacinados, de pessoas que usaram máscara; entre estas, houve quem elegesse o general Pazuello para a Câmara dos Deputados. Segundo as pesquisas (epa), a maioria da população rejeita a liberação das armas de fogo. Entre esse setor de opinião, haverá, contudo, milhões de eleitores de Bolsonaro.

Há muita gente com um irmão, uma prima, um cunhado ou sobrinha homossexual. Que diferença faz? Vota-se em Bolsonaro. Que Lula e o PT tenham feito todo o mal do mundo, isso não explicaria o apoio a um irresponsável, um incendiário, um golpista, um deformado no cérebro e na alma.

Mas é isso. Eu — e provavelmente você, meu leitor —pertencemos a um mundo em que é notícia o fato de Caetano gostar mais de Lula ou de Ciro Gomes.

Estamos falando em italiano no Paquistão, espanhol na Mongólia, francês nas Filipinas. Arrivederci, hasta luego, au revoir, mais sorte na próxima encarnação. 

                     Ilustração de André Stefanini para coluna de Marcelo Coelho

Autor: Marcelo Coelho - Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”. Artigo publicado na FSP em 04/10/22.

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