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3 de setembro de 2022

Milly Lacombe: Os corvos estão em fúria!

Os corvos estão em fúria! 

                            Bolsonaro, Malafaia e Michelle na marcha para Jesus, no RJ. Foto: Rede social de Malafaia.

Cria corvos e eles te comerão os olhos, diz o ditado. Ditados não existem como obras do acaso. Eles normalmente carregam verdades, falam de experiências, de situações muito humanas. São alertas e aprendizados.

O que estamos vendo no Brasil de hoje são corvos docemente criados e alimentados que, por serem corvos, começam a arrancar os olhos de quem os nutriu e acolheu. Jair Bolsonaro nunca foi um candidato legítimo. Naturalizá-lo sempre foi imoral e indecente. Usar o antipetismo para colocar o bolsonarismo em um lugar de aceitação e de resignação foi parte de um jogo perverso e antiético.

Goste-se ou não de Lula, Dilma e do PT, não há como nem por onde argumentar que eles não respeitaram o jogo dentro das linhas democráticas.

Já Bolsonaro, um esquecido deputado que fazia suas maracutaias e recebia seus amigos milicianos nas coxias, sem que ninguém prestasse muita atenção neles, quando se candidatou deveria ter sido recusado a priori.

Não se acolhe docemente alguém que considera o estupro um ato elogiável, alguém que faz juras de amor a um torturador, alguém que diz preferir filho morto a filho gay, alguém que compara pessoas negras a gado. Não se nutre gentilmente um político tão associado a milícias e milicianos – e essa informação sempre esteve disponível.

Não se senta à mesma mesa de alguém que diz apreciar ditadores e ditaduras, que sugere que adversários políticos sejam metralhados e que ex-presidentes sejam assassinados. Não se protege jornalisticamente uma operação que usou de métodos ilegítimos e inquisitórios, como fez a Lava Jato, ou o juiz tendencioso que era seu garoto-propaganda – enviesamentos éticos que Moro nunca fez questão de esconder, nem precisaríamos dos áudios da Vaza Jato – e não se compara a um enxadrista o homem que deveria ser um estandarte da imparcialidade mas que atuava descaradamente como justiceiro.

Não se aplaude midiaticamente a espetacularização de justiciamentos e muito menos a apresentação de um PowerPoint infantilizante e desconexo sem saber que, ao fazer isso, estão engordando os corvos que, ali na frente, comerão seus olhos.

Apoiar as lógicas milicianas de existência e incentivar justiceiros e justiciamentos teria obrigatoriamente que dar nesse lugar medonho onde fomos parar.

Não deveria ser uma surpresa.

Teve muita gente alertando que acabaria assim.

Alertas eram feitos desde que a administração de Dilma passou a ser ameaçada por métodos golpistas.

Muita gente falou, escreveu, argumentou que acabaríamos dando exatamente nesse ambiente dentro do qual os corvos arrancam nossos olhos. Os de todos, inclusive daqueles que os apoiaram, nutriram, paparicaram, lamberam. Corvos são criados por poucos, mas a todos eles arrancam os olhos. A tal da autocrítica, que os criadores de corvos sempre exigiram do PT e de Lula, eles mesmos não são capazes de fazer.

Agora, sem sequer reconhecer seu papel na criação dos corvos, pularam para o lado de cá e gritam apavorados que estão sendo atacados por pássaros selvagens, violentos e descontrolados. O PT, não podemos deixar de dizer, tem sua parcela nessa criação desses corvos porque foi durante os oito anos de Lula que esses pastores endiabrados ganharam poder político.

Mas agora, todos e todas nós sendo devorados pelos corvos enojados e revoltados, seria preciso reconhecer tudo o que foi feito para que déssemos aqui. Não chegamos aqui da noite para o dia. Bolsonaro não é um acidente. Bolsonaro é a válvula de escape de um sistema capitalista e liberal que devastou uma nação e que devasta boa parte do planeta.

Muitos países estão tendo que lidar com seus Bolsonaros e, para se livrar deles, buscando uma saída pela direita. No primeiro debate o que vimos foi um espetáculo circense no qual o que havia de mais à esquerda era Lula, alguém que pode e deve ser colocado mais no centro do que à esquerda. Os nanicos de direita e de extrema direita estavam lá. Os nanicos de esquerda e de extrema esquerda não. Isso não se dá ao acaso. Ao montar o tabuleiro com essas peças, apontando tudo do centro para a direita como se nada mais houvesse, o jogo está desenhado.

Dar voz a alguém como o minúsculo Felipe D’Ávila é também nutrir corvos. Ainda pequeninos, limpinhos, bonitinhos – mas corvos. Estão nos oferecendo os mesmos caminhos que nos trouxeram até aqui. O caminho do “basta pagar pela bagagem que o preço da passagem cai”. O preço não cai e o argumento passa a ser: “faltou fazer uma última reforma. Estamos travados pela participação do estado. Menos estado e tudo se resolve. Vem aqui e vamos privatizar tudo”.

Uma galera que acredita que corrupção existe sem a participação do setor privado.

Uma galera que criou corvos repetindo sem parar em nossos ouvidos que o problema do Brasil era apenas a corrupção e nada mais – corrupção que eles só enxergavam no braço público desse casamento macabro entre o público e o privado porque, do braço privado, eles queriam delações sem comprovação ou checagem para fazer seus Powerpoints que os criadores de corvos no dia seguinte promoviam.

Vai dar no mesmo lugar. Vamos matar esses corvos em fúria, retomar a caminhada pela direita e, logo ali, encontrar novos corvos para nutrir. Hora de pegar a saída pela esquerda.

Investir no social. Na educação. Em pesquisas. Numa forma mais cooperativa e sustentável de vida. Fazer universidades, ampliar o espaço do comum, encolher o espaço do privado. Hora de entender que estamos lutando contra o fascismo, exatamente como fizeram nossos ancestrais.

Bolsonaro nunca foi legítimo. Nem por um dia.

Naturalizá-lo sempre foi saída covarde de quem, secretamente, cravou 17 nas urnas para não ter Lula ou o PT de volta. Pessoas que escolheram ignorar as coisas boas feitas pelas administrações do PT e saíram por aí comparando tudo o que estava posicionado mais à esquerda a Bolsonaro.

Escolheram ignorar dados, estatísticas. Escolheram dar um pontapé na realidade e deixar seus preconceitos serem a lanterna na escuridão. Comparar Lula, Dilma ou Haddad a Bolsonaro nunca foi parte legítima desse jogo. Nem nunca será.

Administrações que fizeram quase 20 universidades públicas, que liquidaram a dívida com o FMI, que criaram leis como a das Domésticas, que implementaram cotas sociais e raciais, que apoiaram causas LGBTQ+.

Quais os termos para compará-los a isso que estamos vendo?

Sabemos exatamente o que o PT fez de errado. Os erros nem original foram. O PT repetiu os mais básicos erros de FHC, de Sarney, de Collor etc. Mas onde o PT acertou ninguém mais até hoje acertou. E os criadores de corvos escolheram jamais falar desses acertos e focar apenas nos deslizes.

Já seria estranho se o rival estivesse dentro do campo democrático. Mas agir assim sabendo que do outro lado está o fascismo é ignóbil, tosco, indecente, imoral.

Hora de chamar as coisas pelo nome que elas têm. Criadores de corvos, vocês nos trouxeram até aqui. Assumam suas responsabilidades, façam suas autocríticas e, aí sim, juntem-se à luta. Vai soar menos hipócrita.

Autora: Milly Lacombe – Colunista do Portal UOL – Artigo publicado no Site VioMundo

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