Só de Juliette Gréco, que quase todo mundo se lembra quando se fala em existencialismo.
Jurei a mim mesmo que evitaria tocar em política esta semana. Criei até um mantra inspirado em Vinicius – “Porque hoje é sábado” – para mais suavemente superar a síndrome de abstinência e reforçar a desconfiança de que o varejo noticioso nos está envenenando o espírito, comprometendo nossa saúde mental.
Jurei, mas fraquejei, e aqui estou, capitulante, a escapulir de pautas mais arejadas (um panegírico do grande ator Michael Lonsdale, que nos deixou na segunda-feira, por exemplo), por não ter afinal superado as pressões da indignação. Pressões que atingiram seu pico na manhã de terça-feira diante da torrente de mentiras e leviandades despejada por Bolsonaro na Assembleia-Geral da ONU e do rodízio de adulações que ao seu discurso se seguiu.
Foi uma semana de mentiras, bravatas e desvairado puxa-saquismo. Uma semana de bolsonarite “tous azimuts”, como dizem os franceses, a quem tiro o chapéu, não tanto de condolências pelas mortes de Lonsdale e Juliette Gréco, mas por terem sido eles os primeiros a sacar a mendacidade do capitão, juntando-o aos mais notórios “menteurs” do picadeiro internacional, como Trump, Putin, Boris Johnson, Erdogan, etc., na revista Magazin Littéraire, de novembro de 2018.
Notaram a data? Em cima das eleições presidenciais daqui. Os outros já estavam no poder, o paraquedista não. Clarividência jornalística é isso aí.
Na última edição da revista de humor Charlie Hebdô, Bolsonaro é caricaturado a obrar, sorridente, uma “bolsocaca” sobre o lábaro estrelado e todo o planeta. E o Charlie nem tomara conhecimento ainda do discurso na ONU.
Desde o golpe de 64, a imprensa francesa nunca nos deixou na orfandade. Detalhes palpitantes em Liberdade Vigiada (Record), de Paulo César Gomes, que aqui comentei em junho do ano passado.
Inclusive por negar que o Brasil tenha passado 20 anos sob uma ditadura militar, o general Mourão na certa odeia a imprensa estrangeira, em especial, quero crer, a francesa. E com redobrada intensidade desde que virou vice do presidente mais escrachado, urbi et orbi, da história do País. Ele não se cansa de reclamar da existência de “uma campanha internacional contra o Brasil para atacar o governo”. Disse isso em agosto do ano passado e repetiu a ladainha às primeiras reações da mídia estrangeira ao papelão de Bolsonaro na ONU. É o mimimi padrão dos autoritários paranoicos.
Um mimimi nem sempre vem acompanhado de ameaças de retaliação, geralmente bravatas risíveis e inconsequentes como a que fez o general Augusto Heleno, ao prometer retaliar qualquer país que boicotar o Brasil por questão ambiental. Retaliar como? “Mandando o Abraham Weintraub morar no país que fizer o boicote?”, perguntou alguém na internet.
Se os dicionários definem polêmica como sinônimo de discussão ou “disputa em torno de questão que suscita muitas divergências”, pega mal qualificar de polêmico o que os mesmos dicionários definem como “afirmações contrárias à verdade a fim de induzir a erro”. Lamentável que, a essa altura do naufrágio, a gente ainda tenha de esclarecer a diferença entre bafo de boca e opinião polêmica a quem não deveria ter mais qualquer dúvida a respeito.
Nossos jornais deveriam atentar mais para a distinção entre lorota e controvérsia. Nada de naturalizar o destampatório mendaz do capitão e folclorizar seu jeito tosco de ser, pensar e falar. Vamos chamar as coisas por seus verdadeiros e indiscutíveis nomes, devidamente traduzidos em todas as línguas, inclusive nas faladas naqueles países onde também se mente muito.
Quanto ao puxa-saquismo, nenhum outro áulico palaciano superou, neste setembro negro parte 2, o general Luiz Eduardo Ramos. Dias antes da lorotança negacionista na ONU, o ministro-chefe da Secretaria de Governo atribuiu ao chefe os mesmos poderes divinos de Zeus, Tupã e outros deuses da chuva, noves fora João Nuvem Negra, o pluvioso personagem dos quadrinhos de Ferdinando Buscapé.
O fato de ter chovido no Pantanal depois que o presidente o sobrevoou no fim de semana não autorizava seu mais falastrão auxiliar a propalar um milagre daquela magnitude. Mas ele o fez, difundindo de quebra a ilusão entre os seguidores da seita de que, na ocasião apropriada, o “rain maker” do Planalto irá multiplicar pães e peixes, com a mesma facilidade com que multiplicou praticamente por 10 o valor real do auxílio emergencial, em sua fala na ONU. Se fizer parte da agenda do presidente caminhar sobre as águas do Paranoá, é de se esperar que reserve o espetáculo para mais perto das eleições de 2022.
Para não dizer que não falei de Juliette Gréco, morta na quarta-feira aos 93 anos de idade. Não era minha cantora francesa favorita, mas era quem foi: a Simone de Beauvoir da canção, a Edith Piaf dos existencialistas. Quando O Ser e o Nada, de Sartre, chegaram às livrarias, Juliette tinha apenas 16 anos. Já gostava de cantar, mas ainda teria de esperar uma década para tornar-se a musa da Rive Gauche, o rouxinol das enfumaçadas caves de Saint-Germain-des-Prés. Macambúzia, sempre vestida de preto, parecia uma viúva de guerra a remoer suas dores em canções que até quando davam bom-dia falavam em tristeza. Mesmo hoje, quando se fala em existencialismo, é só dela que quase todo mundo se lembra de imediato – depois, bien sûr, de Sartre e Simone.
Juliette
confessou não ter lido quase nada do que Sartre escreveu. Assimilou o que
julgava suficiente sobre a essência e a existência do ser humano ouvindo o
próprio filósofo em festas e mesas de bar. Uma das razões da popularidade do
existencialismo foi a forma mundana como seus luminares viviam. Eram boêmios e
até na hora de trabalhar preferiam se acantonar em bares, cafés e restaurantes.
Autor: Sérgio Augusto é jornalista e escritor, autor de “Esse mundo é um pandeiro – Publicado no Jornal O Estado de S. Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário