Não
significamos nada para este senhor Jair. Ele tem por nós desdém, desprezo,
desapego, desinteresse. Acima de tudo, desamor.
Quando ouvi o presidente exclamar “E
daí?” diante das mortes provocadas pelo covid 19, tive ânsia de
vômito. Em seguida, pensei: é um monstro. Um homem sem aquilo que minha mãe
chamava de misericórdia. Na mesma hora, me veio a ordem do governador geral da
Polônia, em janeiro de 1942, pouco antes da reunião em Wannsee, Berlim, que
determinou a aceleração da Solução Final (nem Bolso nem o chancelar Arruda
acreditam nela), destinada a exterminar todos os judeus, todos os inimigos do
nazismo. O resultado, 6 milhões de mortos em fornos crematórios, fuzilamentos,
e tudo o mais.
Sabemos hoje alguns nomes daqueles que
comandaram a operação. Inesquecíveis Himmler, Heydrich, Adolf Eichmann e Josef
Mengele, este chamado de o Doutor Morte, pela frieza com que executou as mais
perversas “pesquisas” em nome da ciência.
E daí? Daí que me veio acachapante
sensação, que não foi de repulsa ante a frieza e a indiferença com os milhões
de habitantes do Brasil. Não foi de raiva, nem de ódio. Foi de uma tristeza
imensa diante de tal desumanidade e desrespeito à dor alheia, à dor de uma
nação. Não significamos nada para este senhor Jair. Ele tem por nós desdém,
desprezo, desapego, desinteresse. Acima de tudo, desamor. Fiquei deprimido. Não
sou ninguém, minha família nada é, meus amigos nada são, nenhum brasileiro tem
qualquer significado, nenhum ser humano tem direito à vida. Nosso presidente
não liga um pingo para nós, para nossas existências. Nem pelas vidas daqueles
que votaram nele. Porque, se as mortes continuarem nessa progressão, onde vão
parar? Se é que vão.
Expressão tão sórdida, me provocou
sensação de asco. No mesmo momento, tive um retorno, memória afetiva (afetiva
não é bem o termo aqui), que me fez mal, acabrunhou-me. Reação igual de mal
estar tive em 1987, quando, em Berlim, como um dos convidados do DAAD para os
750 anos da cidade, decidi percorrer uma exposição chamada Topografia do
Terror.
Em determinado espaço da cidade, estavam
alguns edifícios que lembravam a zona do terror nazista, a Gestapo, a SS, a
Direção de Segurança do Terceiro Reich. Um espaço relativamente (hoje é um
memorial) pequeno onde se reunia a mortífera concentração de poder e terror do
nazismo, a Prinz-Albecht-Strasse (hoje Niederkirchenstrasse), a Wilhelmstrasse
e a Anhalterstrasse. Dali, emanavam as ordens de morte, horror, torturas,
prisões, assassinatos, lugar que faria a delícia do famigerado Ustra, ícone do
Messias. Dali, saíam as ordens que levaram milhões e milhões de judeus,
ciganos, homossexuais, inimigos políticos para a morte em campos de
concentração. Esse horror é conhecido.
Havia também o prédio, o Tiergarten 4,
onde se procedia o Projeto T4 para Eutanásias, ou seja, a eliminação de loucos,
deficientes físicos, seres inúteis, tuberculosos, não convenientes a raça
ariana. Como os idosos hoje, aqui. Quem estudou a história, há de se lembrar da
Hans Frank e sua frase célebre. Em reunião na mansão de Wannseee, lago ameno na
periferia de Berlim, em janeiro de 1942, quando se acertaram os ponteiros para
a Solução Final, ou seja, a morte de todos os judeus, Frank acentuou:
“Cavalheiros, devo lhes pedir que se armem contra quaisquer sentimentos de
compaixão”. Havia então, na Polônia, 3,5 milhões de judeus. Frank disse: “Não
podemos atirar nesses 3,5 milhões, não podemos envenená-los, mas devemos ser
capazes de tomar medidas que, de alguma forma, levem ao sucesso no extermínio
absoluto”.
Assim, a morte de seis milhões de pessoas
foi executada sem compaixão. Neste momento, no Brasil, enquanto hostes humanas
– milhares e milhares de médicos, enfermeiros e voluntários – lutam, arriscando
a própria vida, para defender a vida, o presidente, condena o isolamento e diz:
“E daí?” “É humano esse homem? É isso um homem?”, como perguntou Primo
Levi, em um de seus livros mais pungentes. E daí? Daí que nem eu, nem mais de
210 milhões de brasileiros queremos morrer de covid 19. Se sobrevivermos, vamos
nos lembrar sempre de você, Jair, como o Presidente Morte.
Autor: Ignácio de Loyola Brandão, O
Estado de S. Paulo
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