Projeto
que foi aprovado no Senado corrige arroubo de generosidade dos deputados.
A maioria dos brasileiros – infelizmente
não todos – entende que é a proteção da vida e da saúde das pessoas a maior de
todas as prioridades neste momento. Estamos debruçados em números e projeções
assustadores, que mostram a escalada da pandemia que já ultrapassou os 3,5
milhões de infectados e já matou ao menos 250 mil pessoas no mundo. No Brasil,
já ultrapassamos a marca dos 100 mil infectados e dos 7 mil mortos nos números
oficiais que, sabemos, estão subestimados em função da baixa taxa de testagem
da população. Mesmo com toda essa tragédia humana, a pandemia ainda está longe
de estar controlada e nós no Brasil estamos longe de entender toda a extensão
do seu impacto sobre a população e sobre a economia do País.
Medidas emergenciais foram adotas nas
áreas da saúde e da economia. Discussões políticas acaloradas fizeram parte do
noticiário dos últimos meses. A ignorância e o descaso dominaram a pauta em
alguns momentos. Esses passarão para a nossa história de forma vergonhosa. Mas
a verdade é que, na medida em que outros países do mundo começam a adotar
medidas de flexibilização do isolamento social e se preparam para um novo
normal, levantam-se as dúvidas quanto ao futuro e à capacidade de recuperação
das economias após essa brusca interrupção. Percebe-se que as incertezas em
relação à recuperação não estão vinculadas apenas à intensidade da crise, mas
também à natureza das medidas adotadas durante os momentos mais agudos e à
efetividade das ações de retomada. No Brasil não será diferente.
Um exemplo é o plano de ajuda aos
Estados e municípios. Colocado em contexto, responde à necessidade urgente de
aumento de gastos com saúde que os entes subnacionais enfrentam como linha de
frente no combate à pandemia. A situação se agrava com a queda de arrecadação
vinculada à interrupção da atividade econômica. Entes subnacionais não emitem
dívida e estão, portanto, limitados às suas receitas e às transferências da
União. Se alguma dessas despenca, tudo desaba. Ainda mais no desequilíbrio que
já viviam. Priorizar vidas neste momento significa ajudar esses entes a
ultrapassarem esse momento. O projeto aprovado na Câmara ia muito além,
prometendo o céu e contratando uma conta não necessariamente vinculada às
necessidades impostas pela pandemia.
Felizmente, o projeto que foi aprovado
no último sábado pelo Senado corrige boa parte desse arroubo de generosidade. A
proposta define um limite de R$ 60 bilhões para o auxílio financeiro direto,
contribuindo para que o socorro não gere leniência na gestão da arrecadação
local. Além disso, inclui-se como contrapartida o congelamento dos salários dos
servidores públicos – exceção feita a profissionais de saúde, de segurança e
das Forças Armadas – até o final de 2021. Ao também restringir reestruturações
de carreira, contratação de pessoal (exceto para repor vagas abertas) e
interromper por um ano e meio a contagem de tempo para concessão de anuênios,
quinquênios, etc., o Senado conseguiu bloquear a canalização desses recursos
para o financiamento de aumentos das despesas de pessoal no setor público. Ao
excluir a segurança desse dispositivo, boa parte da economia ficou de fora, mas
ainda é melhor do que só o congelamento. Outra grande conquista é que essas
limitações atingem os três poderes e não somente o Executivo. A não ser que
haja as conhecidas e históricas reações corporativistas no Judiciário, teremos
um pouco mais de controle desses gastos pela primeira vez em décadas.
Mas a verdade é que, ao mesmo tempo em
que mantemos a proteção da vida e da saúde dos brasileiros no topo das
prioridades e intensificamos o combate à pandemia, temos de pensar no dia de
amanhã e já começar a construí-lo. É chegada a hora de começarmos a pensar em
um plano nacional de retomada que parta dos conceitos corretos e faça a transição
entre o enfrentamento da crise e a gestão do futuro. Não me refiro aqui a obras
públicas mirabolantes, listadas a partir de um delírio nacionalista e
nostálgico. Falo de um plano de retomada que leve em conta as diversas
dimensões desta crise: o monitoramento da curva de contaminação e as
necessárias ações de saúde; os motores de crescimento da economia (crédito,
confiança, ambiente de negócios); a aceleração do processo de digitalização dos
serviços públicos e a retomada da agenda de reformas, única garantia possível
de manutenção de nossa solvência e dos patamares baixos de juros e, portanto,
da recuperação de nossa capacidade de crescimento. Um plano assim se constrói
com liderança e coesão e passa necessariamente pela recuperação dos laços
federativos esgarçados por embates políticos. Passa também por uma grande
coalizão entre Executivo, Legislativo e Judiciário e por capacidade de
formulação de medidas de retomada que combinem responsabilidade, competência e
consistência. Afinal, apesar de você, amanhã há de ser outro dia.
Autora: Ana Carla Abrão, O Estado de S.
Paulo é economista e sócia da consultoria Oliver Wyman. o artigo reflete
exclusivamente a opinião da colunista.
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