A mais forte tendência no pensamento
humano é a de acreditar que nossa espécie pode viver sob um sistema único de
ideias. A conclusão foi apresentada no palco do Fronteiras do Pensamento, pelo
filósofo britânico John Gray.
Gray busca responder uma pergunta
latente na sociedade contemporânea: para onde o incessante conflito de opiniões
vai nos levar? Até onde iremos tentando convencer (ou até forçar) o outro a
aderir às nossas opiniões e visões de mundo?
É fato que a hiperconexão digital
rompeu as esferas de silêncio que ofereciam relativa estabilidade para nossas
relações. Neste saudável distanciamento, éramos capazes de criar um universo
impessoal, em que grupos e comunidades muito diferentes podiam subsistir sem
maiores problemas.
Porém, a internet nos convocou a
vivermos juntos. O tempo todo.
Onde seria desejável apenas respeito e
alguma distância, acabamos apostando em uma guerra de surdos, com resultados
que vão do isolamento à violência. O que o futuro nos reserva?
Do nazismo ao extremismo islâmico,
passando pelo comunismo e pela chamada Revolução Democrática, John Gray esmiúça
a história e aponta como mitos aparentemente opostos partem de uma mesma crença
fundamental: a imposição de um sistema universal.
Não apresentarei doutrinas ou
filosofias, porque uma das minhas crenças mais fortes é que a verdade a
respeito do mundo não pode ser contida numa filosofia única ou num sistema
único de ideias.
Temo e suspeito de qualquer projeto,
intelectual ou político, que queira unificar e harmonizar o pensamento humano,
a vida humana.
Um dos autores do século XX que mais
aprecio é o escritor português Fernando Pessoa.
Diferentemente de Pessoa, não posso
dizer que tenho múltiplas identidades ou heterônimos. Mas, como ele, resisto a qualquer
ideia ou crença de que nosso objetivo deva ser uma identidade única e uniforme,
um tipo único de sociedade que prevaleça no mundo todo.
Nossa meta deve ser um fim aos
conflitos e isso se encaixa com o tema do Fronteiras do
Pensamento, Como viver juntos. Podemos sim viver juntos, porque o
mundo futuro, assim como o atual, consistirá não apenas de um tipo de sociedade
ou visão de mundo, ele consistirá de diversos regimes, assim como no
passado.
Haverá democracias liberais e não
liberais, monarquias, repúblicas, impérios, áreas de anarquia. Qualquer sonho de um sistema
universal, seja ele comunista, anarquista, neoliberal ou positivista, é uma
ilusão.
Nos séculos XIX e XX, e nas primeiras
décadas do século XXI, nenhum desses sonhos demonstrou qualquer sinal de estar
se tornando mais próximo da realidade, mas, mesmo assim, estes sonhos são
constantemente renovados e, muitas vezes, são renovados de forma
violenta.
A violência desse sonho da unidade, da
harmonia, da civilização única, teve diversas formas no século XX: tivemos
formas violentas no leninismo, bolchevismo, stalinismo, no trotskismo e no
maoismo.
Todos eram formas de violência
organizada. Também tivemos o nazismo, o fascismo e mais recentemente, projetos
neoconservadores de mudanças de regime.
Eu fui um dos que atacou o projeto da
Guerra do Iraque desde o início. Aliás, antes do início, em 2002, e não fui o
único a dizer isso.
Quando ficou claro que algo como a
Guerra do Iraque aconteceria, eu fui totalmente contra e disse que o resultado
seria a destruição do Estado do Iraque seguido de um governo fraco onde haveria
uma enorme quantidade de conflitos sectários.
Seria fácil destruir o Estado do
Iraque, o impossível seria reconstruí-lo e isso foi de fato o que aconteceu.
É claro que houve aspectos
geopolíticos na Guerra do Iraque, que tinham a ver com o petróleo no Irã, mas,
para muitas pessoas que eram a favor, criar uma democracia no Iraque seria algo
realizável. Elas acreditavam que a democracia se
espalharia pelo Oriente Médio. Fazia parte do que algumas pessoas chamavam de
Revolução Democrática Global.
Ainda há pessoas que defendem isso. A maioria das pessoas acredita que há
um tipo de regime que é o melhor para o mundo. A maior parte das pessoas acredita que
a história humana se encaminha a um tipo único de regime.
Se esse desenvolvimento for lento ou
se houver resistência de algumas partes do mundo, esse desenvolvimento pode ser
acelerado por meio de guerras, de invasões, de mudanças de regime.
Os resultados dessa crença são quase
sempre os mesmos: o experimento mais recente disso foi aquele que a França e a
Grã-Bretanha, mais do que os EUA tentaram fazer na Líbia, derrubando o Kadafi e
o resultado foi uma condição de caos total na Líbia, com militantes islâmicos
que cada vez têm mais poder, uma excesso de refugiados econômicos que têm ido
cada vez mais para a Europa.
Enfim, os resultados foram ainda mais
rapidamente desastrosos do que os que vimos no Iraque. Então, não existe nenhum
exemplo de mudança de regime desse tipo que tenha obtido os resultados daqueles
que a apoiam.
Não estou nem dizendo que tais
resultados eram desejáveis, estou apenas dizendo que, em provavelmente todos os
casos, os resultados foram diferentes ou até mesmo opostos aos imaginados por
aqueles que apoiavam as mudanças de regime.
Mesmo assim, os governos ocidentais e
os pensadores ocidentais ainda apoiam isso. É uma tendência incurável no
pensamento ocidental. Imaginar que as nossas instituições sejam um sistema
global.
Na década de 1980, eu participava de
muitos debates sobre se a União Soviética entraria em colapso e eu acreditava
que sim. Quando isso começou, no outono de 1989, eu critiquei
fortemente Francis Fukuyama que, então, havia publicado seu primeiro
artigo sobre o fim da história, em agosto de 1989.
Em outubro daquele ano, publiquei uma
crítica ao artigo de Fukuyama, publicado no meu livro Anatomia de Gray, em
que falei que não estamos observando o fim da história. Pelo contrário, na verdade, a história
está continuando no seu curso normal. O curso normal da história não é uma
divisão ideológica, mas sim o conflito por recursos, por religiões, por
nacionalidades, grupos sociais concorrentes, isso sim é normal. Me chamaram de
pessimista, de negativo e até de apocalíptico. Achei engraçado, pois
apocalíptica é a visão de que a história acabou.
Me perguntaram: como poderemos viver
no mundo descrito por Gray e eu respondi como puderam viver nele até agora? Me
perguntaram, no início da década de 1990, o que você acha que vai acontecer
após a nova direita?
Eles estavam falando da direita
liberal. Eu respondi que era óbvio o que aconteceria, a antiga direita
voltaria. Os racistas, os nacionalistas, os machistas, os antissemitas,
anticiganos, antigays, anti-imigrantes, tudo isso voltaria.
Isso está acontecendo agora na
Hungria, na Grécia, em todos os lugares. Na Espanha e na Itália com os partidos
da esquerda, na França, a Frente Nacional está mais forte do que nunca, e é
isso que vai acontecer.
Por que esse tipo de sonho de sistema
único é tão forte, sendo que ele já foi falsificado tantas vezes? Não existe
nenhum tipo de tendência que aponte realidade nesse direcionamento a um sistema
único.
Algumas pessoas me dizem que estou
atacando os mitos, falsificá-los. Não. Mitos não podem ser vistos como ideias
falsas, porque não são teorias científicas. Mitos são as únicas coisas que as
pessoas têm de fato. Então, eles vão continuar a existir.
Devemos refletir sobre se queremos
fortalecer estes mitos, se ficamos apreensivos quando nossos mitos são questionados,
se ficamos nervosos ou deprimidos.
Se é isso que procuram, sugiro que não
leiam meus livros e procurem Malcolm Gladwell ou livros de autoajuda. A minha
proposta é pensar em uma forma alternativa para viver bem, que é a forma como
quase todos pensavam até 200 anos atrás.
Autor: John
Gray
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