Em algum dia,
não longínquo, se escreverá um grande romance tolstoiano sobre a heroica luta
do povo venezuelano contra a ditadura de Chávez e Maduro. E o final será,
claro, um final feliz.
Algum dia se escreverá um grande livro
sobre a heroica luta do povo venezuelano contra a ditadura de Chávez e Maduro,
que recorde os sofrimentos que padeceu durante todos estes anos sem deixar de
resistir, apesar dos torturados e dos assassinados, da catástrofe econômica —
provavelmente a mais atroz que a história moderna recorda — que levou um
país potencialmente muito rico à fome coletiva e obrigou quase três milhões de
cidadãos a fugirem, a pé, em direção aos países vizinhos para não
perecerem pela falta de trabalho, de comida, de remédios e de esperança. Menos
mal que o martírio da Venezuela parece chegar ao seu fim, graças ao novo ímpeto
inoculado na resistência por Juan Guaidó e outros jovens dirigentes.
Arte: Fernando Vicente
Parece impossível, não é mesmo?, que
uma ditadura rejeitada por todo o mundo democrático, a OEA, a União Europeia,
o Grupo de Lima, as Nações Unidas e no mínimo por três quartas partes de
sua população possa sobreviver a esta última arremetida da liberdade com a
proclamação, pela Assembleia Nacional da Venezuela (o único organismo mais ou
menos representativo do país), de Juan Guaidó como presidente encarregado de
convocar novas eleições que devolvam a legalidade perdida à nação. E,
entretanto, o tirano ainda continua lá.
Por quê? Porque as Forças Armadas
ainda o protegem e armaram um escudo protetor ao seu redor. Vimos na
televisão àqueles generais e almirantes atulhados de medalhas, enquanto o
ministro da Defesa, general Vladimir Padrino, jurava lealdade ao regime
espúrio. O que explica esta suposta lealdade não são afinidades ideológicas. É
o medo. O recurso do qual Chávez se valeu, e que Maduro manteve com
esta cúpula militar para assegurar sua cumplicidade, foi comprá-la,
praticamente lhe entregando o negócio do narcotráfico, de tal maneira que um
bom número destes oficiais enriqueceu e têm suas fortunas em paraísos fiscais.
Mas quase todos eles estão fichados internacionalmente e sabem que, quando o
regime cair, irão para a cadeia. As promessas de anistia que Guaidó lhes fez
chegar não os tranquilizam, porque suspeitam que não valham fora do território
venezuelano, e suas sujas operações estão perseguidas e serão punidas por
tribunais internacionais em todos os cantos do planeta.
Mas por que então esses jovens
oficiais – tenentes, capitães – e soldados golpeados pela atroz crise econômica
não se rebelam contra a tirania de Maduro, assim como o resto da população
venezuelana? Por uma razão também muito simples. Pela vigilância estrita e
implacável exercida sobre as Forças Armadas da Venezuela pelos técnicos e
profissionais de Cuba, a quem o comandante Chávez praticamente entregou o
controle da segurança militar e civil do regime que implantou. Trata-se de algo
sem precedentes; um país renuncia à sua soberania e entrega a outro o controle
total de suas Forças Armadas e policiais. E os comunistas, como já foi
comprovado a não mais poder, arruínam a economia, destroem as instituições
representativas, arregimentam e esmagam a cultura, mas levaram a censura e a
repressão de toda forma de insubmissão e rebeldia a uma perfeição quase
artística. Não nos esqueçamos de que todas as instituições militares
venezuelanas foram submetidas a expurgos sistemáticos, e que há várias centenas
de oficiais expulsos ou encarcerados por não serem considerados “seguros” para
a ditadura.
Entretanto, a URSS desmoronou
como um castelo de cartas, e também seus satélites centro-europeus desmoronaram
e hoje em dia são verdadeiros baluartes contra aquele regime que tinha
prometido baixar o paraíso a terra, e na verdade criou as piores satrapias que
a história conhece. O regime de Maduro se ufana da proteção fornecida a ele por
ditaduras como a russa, a chinesa e a turca, e da solidariedade de outras
tiranias latino-americanas, como Cuba, Nicarágua e Bolívia. Tremendos
companheiros de viagem, para os quais vale o famoso ditado: “Diga-me com quem
andas, e te direi quem és”. No caso da Rússia e da China, ambos os países
fizeram empréstimos tão extravagantes à ditadura de Maduro — os quais só
serviram para agravar a corrupção reinante — que temem, com muitíssima
razão, jamais conseguirem cobrá-los. Bem feito para eles: queriam assegurar
fontes de matérias primas para si fortalecendo economicamente uma tirania
corrupta, e o mais provável é que acabem sendo também parte de suas vítimas.
A fera que vai morrer se defende com
unhas e dentes, e não há dúvida de que o regime, agora que se sente encurralado
e pressente seu fim, pode causar muita dor e derramar ainda mais sangre inocente.
Por isso é indispensável que os países e instituições democráticas
internacionais multipliquem a pressão contra o Governo de Maduro, estendendo os
reconhecimentos à presidência de Juan Guaidó e à Assembleia Nacional, e obtendo
o isolamento e a orfandade do regime a fim de precipitar sua queda antes que
cause mais danos do que já causou à desventurada Venezuela.
O secretário-geral da OEA, Luis
Almagro, disse com clareza: “Não há nada que negociar com Maduro”. Todas as
tentativas de diálogo se viram frustradas porque a ditadura pretendia utilizar
as negociações só para ganhar tempo, sem fazer a menor concessão, e conspirando
sem trégua, graças à ajuda que lhe prestavam pessoas ingênuas ou maquiavélicas,
para semear a discórdia entre as forças da oposição. As coisas foram já longe
demais, e a primeira prioridade agora é acabar o quanto antes com a ditadura de
Maduro, a fim de que sejam convocadas eleições livres e os venezuelanos possam
finalmente se dedicar à reconstrução de seu país.
A mobilização do mundo democrático,
começando pelos países ocidentais, foi algo sem precedentes. Não me recordo de
ter visto nada parecido nos muitos anos que tenho. Ao mesmo tempo em que
diversos Governos, começando pelos Estados Unidos e Canadá e os
principais países europeus, reconheciam Guaidó como presidente, a União Europeia,
a OEA, as Nações Unidas e todos os países democráticos latino-americanos, com
exceção do Uruguai e México (algo previsível), rompiam com a ditadura e se
mobilizavam a fim de apressar a queda do regime sanguinário de Maduro. Não se
deve esquecer, nestes momentos em que finalmente se vê uma luz ao final deste
longo caminho, que nada disto teria sido possível sem o sacrifício do povo da
Venezuela, que, se em um primeiro momento se rendeu aos cantos de sereia de
Chávez, depois reagiu com exemplar coragem e manteve sua resistência por todos
estes anos, sem se deixar intimidar pela ferocidade da repressão.
Obrigado a Julio Borges, María Corina
Machado, Leopoldo López, Lilian Tintori, Henrique Capriles, Antonio
Ledezma, Juan Guaidó e aos milhares e milhares de mulheres e homens que os
seguiram por todos estes anos, demonstrando nas ruas, e nos calabouços e no
exílio, que a América Latina já não é, como no passado, terra de
sátrapas e de ladrões, e que um povo que ama a liberdade não pode ser
indefinidamente acorrentado. Algum dia, não longínquo, o rebento de um desses
grandes escritores que a Venezuela já deu à língua espanhola escreverá esse
grande romance tolstoiano sobre o que ocorreu e está ocorrendo por lá. E o
final será, claro, um final feliz.
Autor: Mario Vargas Llosa – El País
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