Uma das frases mais ouvidas no
contexto da tragédia criminosa de Brumadinho é a de que “não se aprendeu nada
com a tragédia de Mariana”. Isto não se deve a um mero ato de negligência, o
que já seria grave. Mas se deve a um ato deliberado de não querer aprender com
os erros do passado, o que é gravíssimo. Não aprender com os erros do passado é
o modo de ser e de proceder das elites econômicas e políticas do país. É por
isso que naturalizamos as várias tragédias em que estamos afundados e nos
mostramos um país incapaz de sair do destino desafortunado e desgraçado em que
parecemos estar prisioneiros.
Mas essa incapacidade é uma escolha e
sempre que acontecem desastres e tragédias os atribuímos ao acaso, ao
imprevisto, ao fatal. Esta é uma forma criminosa de proceder, por trás da qual
estão emboscadas as elites em sua astúcia predadora, assassina, sanguinária.
Esta é também a fórmula secreta da impunidade comprada a peso de ouro junto a
escritórios de advocacia e postergada indefinidamente por juízes impiedosos,
que não se sensibilizam com as vidas ceifadas, com a dor e com os prejuízos dos
que ficam com a devastação ambiental e com o sacrifício do futuro.
O Brasil está moralmente morto. A
vasta corrupção que destruiu as instituições, a impunidade dos corruptores e de
muitos corruptos notórios, os privilégios dos políticos e do alto
funcionalismo, a incapacidade do Estado e dos políticos em resolver os
problemas fundamentais do país e do povo, a vandalização da Constituição pelo
Judiciário, a devastadora destruição de Mariana, as chamas que queimaram a
nossa história no Museu Nacional, a vitória de Bolsonaro e a tragédia de
Brumadinho são eventos de um único ambiente que provocou a morte moral do
Brasil.
Não há limites para os nossos
retrocessos. O Brasil está entregue ao grotesco, ao tenebroso, ao assombroso.
Os maiores invocadores da pátria não são patriotas. Os maiores invocadores de
Deus são sócios do demônio. Em nome do moralismo tosco, criminoso, anti-humano,
contrário aos direitos civis, apunhala-se a própria moral, busca-se legitimar a
violência como método de solução de conflitos, deixa-se de querer e de fazer o
bem comum. Em nome desse moralismo muitas igrejas transformaram-se em templos
do cinismo, onde os falsos profetas pregam o retrocesso civilizacional, o
conservadorismo enlouquecido, sedento de dinheiro, de poder e de sacrifícios
humanos.
O Brasil está moralmente morto porque
somos um povo incapaz de acreditar no Brasil e em nós mesmos. Temos o pior
índice de confiabilidade interpessoal. Por isso somos dominados pela ausência
de um sentido comum e não somos capazes de construir uma comunidade de destino.
No Brasil, o senso ético do bem comum
foi assassinado, seu corpo foi arrastado pelas ruas das nossas cidades e
crucificado nas praças públicas para advertir e impor o medo àqueles que lutam
por direitos, justiça e igualdade. Querem que nos curvemos à descrença e que só
acreditemos em que nada vale a pena, visando gerar o imobilismo social e
político, a impotência para a luta, a incapacidade para a virtude e a descrença
do futuro. A morte das vontades e dos desejos de mudança é a morte moral do
Brasil e de seu povo.
Um país que tem 106 milhões de pessoas
que ganham até um salário mínimo, que tem 54 milhões de pessoas pobres, mais de
15 milhões que vivem abaixo da linha da pobreza e que ocupa a nona posição
entre os mais desiguais do mundo não pode ser um país moralmente vivo. Um país
que mata 64 mil pessoas por ano pela violência, que destroça milhares de
pessoas no trânsito, que ocupa o sétimo lugar entre aqueles países que mais
matam jovens e o quinto lugar entre aqueles que mais matam mulheres é um país
moralmente morto.
O Brasil terminou de eleger um governo
que rompeu com o consenso que havia se construído após a sua redemocratização:
o de que o principal problema do país é a desigualdade social e de que só
haverá progresso e desenvolvimento se este problema for resolvido. O Brasil não
terá futuro e nem dignidade se este consenso não for restabelecido e se os
governantes não tiverem mais capacidade e eficiência para resolver este
problema.
O Brasil também não terá paz social se
não houver uma união de uma grande maioria consciente e empenhada em resolver
este problema. Sem enfrentar este problema, a decadência do Brasil continuará
de forma inapelável e a riqueza que for aqui construída com o sacrifício de
muitos será um benefício de poucos, pois será uma riqueza assaltada pelos
mecanismos legais e extralegais da exploração despudorada.
Hoje somos 212 milhões de brasileiros,
todos estranhos entre si, desconfiados uns com os outros, quase hostis. Vivemos
mergulhados na solidão das nossas angústias e dos nossos temores, sem
capacidade de transformá-los em ação e furor. Quase não temos vida associativa,
os partidos são entes ocos, os sindicatos são comitês de burocratas, a
sociedade civil não tem capacidade de reação e de mobilização.
O líder maior do povo está cada vez
mais esquecido no cárcere e os líderes que estão por aí pontificam na fraqueza,
na debilidade, na vaidade e na arrogância. Somos um povo sem um Moisés, sem uma
coluna de fogo a nos guiar, e vagamos perdidos no deserto. Sem líderes ou
movimentos que nos unam, muitos de nós fogem para saídas individuais, outros se
evadem no amargor por perceberem o absurdo da existência.
Precisamos de líderes e de movimentos
que sejam capazes de fazer convergir às múltiplas lutas, as dispersas
iniciativas, as fracas vontades. Se o momento é de debilidade, de fraqueza e de
desorientação, precisamos pressionar pela unidade, pois é dela que podem ser
forjadas novas lutas e novos líderes. Os males provenientes das atuais
condições sociais e políticas não podem nos calar e nos matar.
Se a razão tem motivos de sobra para
ser pessimista, a vontade precisa nos animar, restaurar as nossas virtudes
cívicas para as lutas e combates, pois só neles reside a esperança. Somente a
restauração das nossas qualidades e virtudes internas, dos nossos desejos e
paixões por mudanças e por justiça podem criar novas condições políticas e
morais, primeiro, para estancar a decadência e o retrocesso que estão em marcha
e, segundo, para criar um movimento comum, transformador, inovador, de sentido
universalizante. Somente a nossa vontade militante e atuante poderá restituir a
vida a um país que está moralmente morto.
Autor:
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
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