Existem
máquinas óbvias de denúncias contra quaisquer pessoas que exercem o poder.
Todas as pessoas deveriam ser
honestas. Os políticos são ainda mais cobrados porque lidam com dinheiro
alheio. As mulheres, alvo de fiscalização particular na nossa sociedade,
deveriam ser imaculadamente éticas. A mulher do político, por fim, deve ser um
cristal perfeito, transparência sem jaça e luz cristalina. Assim construímos
nossos imaginários sociais: tolerantes com o jeitinho cotidiano, irritadiços
com o roubo público e violentos no julgamento das mulheres.
Dizem que a expressão sobre o cônjuge
de César nasceu da segunda esposa do aclamado general. Pompeia Sula deu uma
festa só para mulheres. Um patrício atrevido invadiu o rega-bofe. Foi
descoberto pela sogra da anfitrioa. Júlio César tomou a decisão clássica de uma
moral masculina e pública: divorciou-se da esposa e perdoou o invasor. Surgiu o
ditado: para uma mulher casada com homem importante não basta ser, mas parecer
honesta, estar acima de quaisquer suspeitas.
Nossos jornais mostram novos
escândalos. Ainda não abarcamos a extensão dos antigos, nem todos os culpados
foram punidos e eis que uma safra fresca desponta. Você minha querida leitora
ou você, meu estimado leitor, sabe a regra absoluta e verdadeira. Tudo que se
diga de ruim do político ou partido de que eu gosto é perseguição da imprensa e
intriga da oposição. Tudo o que for dito do meu inimigo político é pouco diante
do muito mais que ele ou o partido tenham roubado. Aqui não se trata de gênero,
todavia de afinidade eletiva. Quem eu gosto é honesto. No máximo, como
concessão ao humano, meu correligionário fez algo indevido, mas imensamente
menor do que aqueles outros, os verdadeiros ladravazes.
Um argumento brasileiro clássico e
estranho: “Sim, ele fez isso, mas os outros fizeram muito mais”. Assim,
justifica-se o homicídio diante do nosso imaginário sobre o genocídio. O meu
César e a sua esposa devem ser, ao menos, um pouco menos ladrões do que o César
e a esposa alheia. Afinal, todos os césares se parecem, com exceção do meu,
que, claro, é melhor por ser o meu. A ética parece flertar com a blague de
Bernard Shaw (1856-1925): “O nacionalismo é a crença que um país é melhor que
outro pelo simples fato de você ter nascido nele”. Meu político é mais ético
simplesmente porque eu acredito nele e, um dia, a imprensa golpista vai
entender isso.
Ser e parecer é a síntese da
modernidade maquiavélica. Os outros julgam pelo que percebem externamente,
logo, a propaganda de si como luminar ético é a coisa mais importante. Emil
Cioran (1911-1995) dá o seu inevitável tom pessimista ao pensar as dualidades
do mundo: “A inconsciência é uma pátria, a consciência, um exílio”.
Podemos tratar de várias formas a
ideia do franco-romeno. Mundos bipolares provocam conforto, um gueto mental
quente e agradável. O bem ao meu lado e o mal do outro. E quem não pensa assim?
Só pode ser um sofista, pois todos que não trabalham com o absoluto devem ser
sofistas. Como sempre, sofista é uma palavra aprendida em um grupo de WhatsApp.
Lá disseram ao membro que era um insulto e o mundo pessimista helênico
submergiu no pires da internet.
Todos os políticos são iguais? Não.
Estou convencido de que há pessoas realmente honestas e há partidos que as
concentram mais do que outros. A questão que estou tratando é que a convicção
depende de fatos e não de opiniões. Não podemos ter confiança por princípio,
porém por fatos. Sempre gostei do exemplo, muito isolado na história do País,
do ministro de Itamar Franco: Henrique Hargreaves.
Sentado na instável cadeira da Casa
Civil, a grande guilhotina da Nova República, foi acusado de procedimentos não
éticos. Afastou-se e houve uma investigação. Assumiu Tarcísio Carlos de Almeida
Cunha. Feita a devassa, retornou, sem que nada fosse provado. É um modelo
interessante. Por quê? Existem máquinas óbvias de denúncias contra quaisquer
pessoas que exercem o poder.
Faz parte do jogo político. Eu quero o
poder que pertence a você, mesmo o legitimamente obtido por votos. Logo, não
querendo pagar o ônus de um golpe, eu posso derramar acusações. As acusações
podem ser falsas ou verdadeiras, sempre. Para isso, o ideal seria fazer uma
investigação e, sempre que possível, sem que o acusado exercesse cargo de
poder. Isso evitaria que, caso seja culpado, use a máquina pública a seu favor
ou que, enquanto se defende, não se concentre em seus afazeres. Trata-se de duplo
e necessário cuidado.
Toda mulher de César deveria ser a
primeira a exigir investigações amplas. A ela interessa emergir do caso com sua
reputação exaltada. Exercer cargo público em democracias tem esse ônus
terrível. O palavrão que você lançou no ensino primário volta. A entrevista de
1978 emerge. Reaparece o teste do bafômetro daquela noite fatídica. Seu filho
exterior aos laços matrimoniais desponta nas colunas sociais. Seu filho de
dentro do casamento terá a vida devassada e, não sendo santo (algum o é?), terá
os achados jogados na fogueira inquisitorial da opinião pública.
Penso três coisas distintas. Uma já
dita: a mulher de César deve querer investigação e sua insistência no
procedimento seria uma evidência da sua consciência tranquila. Segunda: devemos
buscar a ética e não a ética em uma pessoa ou partido. Devemos cobrar que quem
exerça cargos seja exemplar ao lidar com a coisa pública. Terceira: um pecado
menor do passado que já tenha sido expiado pela retratação ou que represente um
momento de raiva e não uma convicção pessoal deveria ser relevado.
Gosto de pessoas reais que têm
capacidade de errar, desde que se arrependam e melhorem. Arcanjos costumam ser
autoritários. Alguns até traem o plano divino. O mundo político é mais complexo
do que uma lista de convidados de Pompeia Sula. A mulher de César deveria ter
contratado assessores de imprensa. Bom domingo para todos nós.
Autor: Leandro
Karnal – Publicado no jornal O Estado de São Paulo
Um comentário:
Deus criou o homem à sua imagem. Inteligência ímpar. Dominou a terra, mas é incapaz de dominar a si mesmo.
Dai a Cesar, o que é de César...
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