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A formação humana não é vista como essencial no que diz respeito à educação, subordinada aos interesses econômicos, prevalecendo o investimento em atividades de profissionalização técnicas sob o argumento da “maior inserção da população vulnerável economicamente no mercado de trabalho”
A cada dia que transcorre observamos incrédulos e descontentes: aos poucos a filosofia morre. Seu valor se torna irrisório. Sua atuação é vista como infrutífera. Sua utilidade, totalmente nula. Na academia, o curso se volta ao público curioso, em sua maioria estável economicamente, sem grandes pretensões de carreira. Nas redes sociais, a filosofia se transforma num objeto “Cult”, descolado, principalmente àqueles que veem interesse nos temas abordados, entretanto preferem ficar restritos aos storys e feed das plataformas, sem outros desejos. A filosofia, como disciplina de estudo, não encontra mais espaço no âmbito educacional e na lógica construída pelo neoliberalismo, nas primeiras etapas pedagógicas dos adolescentes e jovens nas escolas, justamente por não ter “serventia” ao mercado.
O descaso e marginalização da filosofia não se deram repentinamente, mas foi resultado de uma construção que levou anos. Encontramos no período de ascensão do governo militar no Brasil uma ofensiva forte contra a disciplina, vista como ameaça ao controle político e à ordem estabelecida, sendo, portanto, excluída do currículo obrigatório. A crescente onda de repressão buscava homogeneizar o conhecimento, e a simples presença dessa disciplina nas escolas foi descartada, assim como nas instituições de ensino superior, visto como objeto transgressor da ordem disciplinar. Assim, observamos dois objetivos nessa decisão: o controle ideológico e a exclusão do pensamento crítico. Em outras palavras, excluir ou diminuir a capacidade crítica e reflexiva da realidade da vida contribui para um controle das vontades e inclinações gradativamente, pensava o grupo militar, minando qualquer possibilidade de oposição ao projeto hegemônico que estava no plantel.
Atualmente o descaso, que não é novidade, é observado sob uma nova roupagem, fincada sob a égide do capitalismo e dos interesses do mercado, revelando a subserviência do projeto educacional brasileiro aos valores econômicos. Disciplinas como a filosofia (também a Sociologia, Artes, História, etc.), são vistas como improdutíveis, pois não oferecem retorno econômico, ou seja, não qualificam uma mão-de-obra específica para o mercado de trabalho. Com isso, todas as reflexões sobre as humanidades são marginalizadas pelo próprio Estado, mesmo que seja liderado por um partido que levante a bandeira do investimento na educação, incluindo no âmago de seus projetos e decisões aquilo que é prioritário para a sociedade sob a ótica e lógica dos interesses do capital.
A formação humana não é vista como essencial no que diz respeito à educação, subordinada aos interesses econômicos, prevalecendo o investimento em atividades de profissionalização técnicas sob o argumento da “maior inserção da população vulnerável economicamente no mercado de trabalho”. A intenção em investir nas oportunidades para a população vulnerável, em especial àquelas voltadas para a especialização técnica, não é ruim, pelo contrário, porém desvela duas ideias: primeiro, que essa mesma população não é digna ou não deve seguir a carreira em áreas do pensamento humano, ou seja, uma segregação velada; segundo, que para resolver os problemas econômicos o mais importante é articular e capacitar profissionalmente quem não tem acesso imediato ao mercado de trabalho, como se essa estrutura fosse realmente competente e bem formulada. Na prática, observamos que para resolver um problema se constrói outro, ou como está no dito popular, “joga–se o bebê fora com a água suja do banho”.
Todo o arcabouço construído nesses anos nos leva ao discernimento que qualquer corrente do pensamento que nos leva à reflexão e problematização da ordem social e política não tem importância. Dessa forma, pensar nas causas primeiras, buscar as raízes das contradições que envolvem o mundo atual ou pensar perspectivas que auxiliem na formação humana dos indivíduos, é visto como supérfluo e estéril numa sociedade que visa o lucro e a mais–valia como seus fins. Na formação superior, atentamos para a hipervalorização dos profissionais de medicina, tanto nos salários quanto no prestígio social, ainda restrito às castas familiares e aristocratas da nossa sociedade, revelando o caráter utilitarista da comunidade social. Da mesma maneira, quem não possui meios para galgar tal ascensão social se vê num limbo entre aderir a profissionalização técnica ou permanecer inerte, caso prefira o caminho nas disciplinas humanas. A única escolha para sobreviver é essa: moldar–se aos interesses do mercado, de acordo com sua classe social.
Observamos um pequeno “respiro” quando um ou outro pesquisador resolve mesclar e embasar, com sabedoria, a o saber filósofo com outras áreas do conhecimento. Sublinho, por exemplo, a Dra. Evelynne Marques, médica veterinária e comunicadora, que recorre à multidisciplinaridade da filosofia na sustentação dos argumentos para responder demandas e interpretações relacionadas ao tratamento e evolução das técnicas utilizadas por seus profissionais. Da mesma maneira inúmeros pensadores e estudiosos, como fizeram os antigos pensadores, adentravam no estudo das bases filosóficas, como um tesouro, recorrendo aos seus ricos alicerces para fortificar seus argumentos.
Pois bem, a filosofia evoluiu! Sua ameaça não se reduz apenas ao que ela possibilita enquanto disciplina, ou seja, senso crítico, visão ampla sobre os movimentos na sociedade ou a capacidade de síntese diante das circunstâncias emergentes, mas nas poucas oportunidades que ela abre no mercado atual. Quem em sã consciência escolheria, nos dias atuais, passar por dificuldades financeiras em prol de uma causa? Apenas por paixão, amor ou algum desejo inconsciente de sofrimento, não é mesmo!? É mais fácil tratar o estudante ou docente das áreas do ensino de humanas com descaso, principalmente aqueles que optam por seguir a carreira acadêmica, visto que ao longo prazo serão seus críticos. Curiosamente isso não influencia num maior desenvolvimento das outras áreas do saber, pois a realidade manifesta o crescimento de profissionais com descaso e sem vocação por aquilo que escolhem. Ficamos totalmente à mercê.
No ano passado escrevi no Le Monde Diplomatique Brasil um texto chamado “Filosofia: ainda vale alguma coisa?”, em referência ao dia do filósofo, que se comemora no dia 16 de agosto. Indaguei o leitor se havia motivo para comemorar esse dia, tendo em vista a crescente marginalização da filosofia enquanto disciplina e auxílio do pensamento crítico. Minha posição continua a mesma: é contraditório perseguir quem estimula o pensamento crítico nos sujeitos e simultaneamente dedicar um dia em sua comemoração. Ao mesmo tempo, atualizo e concluo que, quanto mais manipulável e dependente for a população menos espaço a filosofia encontrará em nosso cotidiano, e por conta disso continuará tendo espaço apenas nesses recintos: nas disciplinas propedêuticas em determinados cursos de graduação, exclusivo a poucos docentes; nas formações religiosas, em especial na formação nos seminários católicos, que priorizam o estudo da filosofia escolástica e medieval; nas redes sociais, com frases de impactos de filósofos das mais variadas épocas que são retiradas do contexto.
Eu, como professor e formado nessa área maculada do conhecimento, afirmo com tristeza e lamento: o velório está sendo preparado e com ela o trágico fim da mãe de todas as áreas do saber.
Autor: Railson Barboza é Bacharel em Filosofia (PUC-Rio). Doutorando e Mestre em Política Social (UFF). Imortal da Academia Fluminense de Letras. Publicado no Site Le Monde Diplomatique Brasil.
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