Rodrigo Antunes - Lusa.
A Justiça portuguesa deu dois trunfos a José Sócrates. E ele, com o “instinto matador” que o caracteriza, agarrou-os e já não os larga. Um deles pode suspender o julgamento que se iniciou na semana passada. O outro tem uma natureza mais formal e menos prática. O primeiro é o do famoso “lapso de escrita”, uma expressão enigmática, para a maioria dos cidadãos, mas que procurarei traduzir nas próximas linhas. O segundo é o das declarações infelizes do procurador-geral da República, Amadeu Guerra, numa entrevista concedida poucos dias antes do início do julgamento. Finalmente, além de se agarrar aos dois trunfos que lhe foram concedidos de bandeja – o primeiro dos quais, em boa medida, como veremos, porque a Justiça não conseguiu julgá-lo em tempo mais útil… –, José Sócrates vai seguir a estratégia de disparar em todas as direções, atacando os três pilares que garantem o escrutínio dos crimes de colarinho-branco: os procuradores e os juízes, os partidos e a imprensa livre. E já começou pela comunicação social que, paradoxalmente, continua a aceitar dar-lhe palco à entrada e à saída de cada sessão de tribunal. Mas essa será a segunda reflexão que faremos neste texto. Vamos, para já, aos “trunfos” de Sócrates.
O que é o “lapso de escrita”? O lapso de escrita foi a explicação – Sócrates prefere dizer o “artifício” – que as desembargadoras da Relação de Lisboa, que reapreciaram o caso, na sequência do recurso do Ministério Público (MP), depois de o juiz de instrução, Ivo Rosa, ter feito ruir praticamente todo o edifício acusatório, encontraram para recuperar a acusação de três crimes de corrupção passiva. Inicialmente, a acusação do MP indiciava o arguido pelos crimes de corrupção passiva para o cometimento de “ato lícito”. Ora, o crime de corrupção por ato lícito tem uma moldura penal menos gravosa do que quando se trata de “ato ilícito” – e o prazo de prescrição é consideravelmente menor. Mas as desembargadoras da Relação, no seu acórdão, declaram que o ato lícito tinha sido “um lapso de escrita” porque, na verdade, Sócrates teria sido corrompido por “ato ilícito”. Esta conclusão das juízas faz sentido, se pensarmos em toda a narrativa do MP, durante o processo. Mas a verdade é que, salvo melhor opinião, essa pode ser, apenas, uma percepção.
Ora, isto mudou tudo, oito anos depois da detenção do ex-primeiro-ministro: mudou a acusação (agravando-a), terá – segundo a defesa – manipulado o processo, e alterou todos os prazos, favorecendo a acusação e permitindo o julgamento de todos os crimes. Em tese, isto permitiria à Justiça contornar os seus próprios atrasos, que conduzem, sempre, à prescrição de crimes, por culpa própria ou por manobras dilatórias da defesa – e Sócrates apresentou mais de 50 recursos, ao longo destes quase 11 anos. Se quisermos, agora, explicar a diferença entre ato lícito e ato ilícito, podemos socorrer-nos de uma imagem – necessariamente tosca, não passa de uma alegoria, mas, ainda assim, sugestiva. Imagine-se que alguém paga a uma equipa de futebol… para ganhar. O exemplo é conhecido e já foi muito discutido, em Portugal. Dois clubes defrontam-se e um terceiro clube, que é parte interessada, prefere que ganhe um deles. Se paga a determinados jogadores para que se empenhem mais, está a pedir-lhes que… cumpram a sua obrigação. Seriam, nesta imagem, corrompidos para cometerem um “ato lícito”. Mas se pagar a jogadores do outro clube para que percam, está a pedir-lhes que faltem ao seu dever. Seria um ato ilícito. O mesmo é válido quando se corrompe um autarca para que autorize a construção de uma urbanização em área de construção – ato lícito – ou em área protegida – ato ilícito. São exemplos grosseiros, mas que podem dar uma ideia mais aproximada do que estamos a falar.
O arguido queixa-se de que o Estado português alterou arbitrariamente a acusação, já depois de ela ter sido deduzida pelo MP. Se se provar que foi isto que aconteceu, ou não há julgamento ou o julgamento terá de ser muito diferente. Ora, foi isto mesmo que Sócrates foi apresentar ao Tribunal de Justiça da União Europeia, em Bruxelas: o arguido queixa-se de que o Estado português alterou arbitrariamente a acusação, já depois de ela ter sido deduzida pelo Ministério Público. Isto pode ser um imbróglio e, se se provar que foi isto que aconteceu, ou não há julgamento ou o julgamento terá de ser muito diferente.
Já as declarações de Amadeu Guerra, procurador-geral da República – que, aliás, acusando o toque, já teve necessidade de vir explicar-se… – foram insólitas. Segundo o PGR, Sócrates teria a “oportunidade” (ao contrário do que diz Sócrates, ele não usou o termo “a obrigação” …) de, em tribunal, “provar a sua inocência”. Sabemos o que ele quis dizer: é verdade que, em princípio, qualquer de nós que estivesse inocente, e tivesse disso a certeza, preferiria ser julgado rapidamente, em vez de, através de recursos, permanecer num limbo cívico e jurídico durante uma década, à espera das prescrições. Mas também é verdade, como diz, com toda a razão, José Sócrates, que cabe à Justiça provar a culpabilidade de um cidadão e não ao cidadão provar que está inocente. Com isto, Sócrates levanta um incidente, pondo em causa a equipa de acusação do MP, mas não deverá ter grande ganho de causa, porque, além de as declarações poderem ser contextualizadas, terá sempre de haver uma equipa do MP no julgamento.
Sobre o ataque cerrado à comunicação social, é extraordinário como um primeiro-ministro que dedicou boa parte do seu tempo a atacar jornais e a processar jornalistas – em processos que ou não foram para a frente ou perdeu –, que perseguiu telejornais (toda a gente se lembra do que fez ao Jornal de Sexta-Feira de Manuela Moura Guedes e do que disse desse “telejornal travestido”), que procurou usar a PT para controlar uma televisão, possa vir agora, sem se rir, dar lições de ética e de deontologia aos jornalistas. Em democracia, a denúncia dos crimes de colarinho-branco deve-se a três pilares fundamentais do Estado de direito democrático: primeiro, separação de poderes, com órgãos judiciários e judiciais independentes e a possibilidade de investigar, deter, julgar e, se for o caso, punir os titulares de cargos públicos; segundo, uma oposição livre e atuante, que fiscaliza e escrutina; terceiro, uma imprensa livre, que investiga e denúncia. Sem esses pilares, um político com as características pessoais e políticas de José Sócrates (e não me refiro ao cometimento de eventuais crimes) poderia tornar-se um líder de uma qualquer democracia dita “iliberal” – como as que conhecemos numa Hungria ou numa Turquia… – e estar ainda à frente dos destinos do País. É que, se repararmos bem, os alvos da ira de Sócrates são sempre estes três pilares: os procuradores e juízes, os partidos (“a direita”, neste caso e, até o seu PS, com o qual se zangou) e a comunicação social. Não é por acaso.
Autor: Filipe Luis – Subdiretor – Artigo publicado na Revista Visão.
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