O
processo político de afirmação da democracia terá que adquirir uma grandeza e
uma amplitude que não se restrinja a uma certa distribuição de renda e ao
aumento relativo do poder aquisitivo dos trabalhadores mais pobres.
Juca Ferreira - Créditos Wilson Dias - Agência Brasil
A
Crise atual
O Brasil
está vivendo um momento tenebroso da sua história. Para onde se olhe é
destruição, sofrimento, crise, retrocesso e agravamento dos problemas
estruturais da sociedade. O país
está sendo vítima de uma pilhagem e de um parasitismo grosseiro da parte das
elites econômicas. Os ativos econômicos do povo brasileiro estão sendo vendidos
por valores aviltados como, por exemplo, as reservas de petróleo do Pré-sal, as
empresas públicas etc...
Estão
pondo abaixo e abastardando o Estado nacional e suas instituições, causando a
perda de diversas políticas públicas bem sucedidas e com resultados positivos
na vida dos brasileiros e brasileiras.
Ataques
constantes a direitos sociais reconhecidos e institucionalizados, aumento
vertiginoso da destruição do meio ambiente, das nossas florestas, da Amazônia,
do Pantanal... a tolerância com o monopólio da água pelo agronegócio, deixando,
em várias regiões do país, muitas populações rurais e do interior sem acesso
satisfatório a esse bem imprescindível para a vida. Contaminação acelerada do
meio ambiente, das pessoas e dos rios, por uso indiscriminado de agrotóxicos e
mineração com uso de mercúrio.
Guerra
híbrida
O Brasil
está experimentando a forma como os golpes de Estado estão sendo produzidos nos
dias de hoje. Chamam de guerra híbrida, lawfare, crimes contra o país, contra o
povo e a democracia, praticados nas brechas da lei. Os militares não aparecem
como os responsáveis pelo processo antidemocrático, apesar de ocuparem mais de
oito mol cargos no atual governo. Mais do que na época da ditadura militar.
Essa
dolorosa experiência política vem provocando grandes sofrimentos para todo o
povo brasileiro. A fome, que tinha sido extirpada da realidade brasileira,
voltou e hoje milhões de famílias estão passando fome. Muitas estão sem
trabalho e vivendo na miséria, morando nas ruas. Pesquisa de 2020, apontou 19
milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave (fome) e, ao
todo, 117 milhões em diferentes tipos de insegurança alimentar (55,2% dos
brasileiros). O Datafolha divulgou pesquisa recente com 25% das famílias em
situação de fome. A
tragédia da pandemia no Brasil, com escandaloso número dos mortos e
contaminados, é resultado trágico do negacionismo contra o conhecimento e a
ciência. A
cultura, a ciência, o conhecimento, a razão, a inteligência e a criatividade
estão entre as vítimas de um fundamentalismo obscurantista pregado por
neoliberais autoritários e mercadores da fé, com a participação ativa do atual
governo.
Bolsonaro
e o Governo Federal declararam guerra à cultura e às artes e estão destruindo a
estrutura pública construída no decorrer da nossa história para apoiar e
incentivar o desenvolvimento cultural do país. Estão
inviabilizando as instituições da cultura, as políticas, programas e os
serviços públicos, incluindo o sistema de fomento e financiamento da cultura e das artes. Estão se
utilizando de ameaças e da intimidação de artistas, intelectuais e criadores
para tentar restabelecer a censura e reprimir o protagonismo cultural da
sociedade.
A ruptura
do processo democrático sem fundamento legal, através do impeachment da
presidenta Dilma, começou a ser urdido já em 2003, quando Lula foi eleito pela
primeira vez. O golpe contou com o apoio da grande mídia, manipulando a opinião
pública, com a cumplicidade dos partidos de direita e centro-direita e com a
participação da Justiça e de outras instituições que, paradoxalmente, são
responsáveis pela defesa e pelo bom funcionamento da República. As
limitações cognitivas da classe média e a ignorância e o primarismo político de
parcelas da nossa população permitiram que os golpistas realizassem os seus
objetivos de curto prazo: afastar a presidenta Dilma, demonizar e prender Lula
para tirá-lo da disputa eleitoral e eleger Bolsonaro, um néscio disposto a
fazer o trabalho sujo.
Guerra
cultural e disputa de valores
Os
neoliberais e toda a direita, querem fazer do Brasil um país sem soberania,
atrelado à geopolítica norte americana e aos interesses do capital financeiro global
e submetido à usura e à mesquinhez histórica das nossas elites. Um país sem
direitos, sem cidadania, sem o mínimo de distribuição da riqueza produzida, sem
cultura, sem ciência, sem o exercício da crítica, sem democracia, funcionando
como um simples entreposto comercial ou como uma grande fazenda.
Não é por
acaso que a barbárie direitista vem atacando a cultura e o conhecimento.
A Unesco
há muitos anos passou a incluir a cultura como pauta estratégica para
sociedades humanas que almejam conquistar um patamar economicamente forte,
socialmente justo e ambientalmente equilibrado. O
desenvolvimento de uma nação está diretamente associado a idealização de um
modelo de civilização, e todo desenvolvimento material corresponde a um dado
desenvolvimento intelectual. Cultura e conhecimento são alicerces
imprescindíveis do desenvolvimento nacional. O conceito de desenvolvimento
sustentável é, por si só, uma crítica a um desenvolvimento voltado apenas para
a acumulação capitalista.
A
qualidade de vida que todo mundo deseja, enfim, dependerá sempre das ideias
predominantes sobre o valor da vida e sobre a maneira como a sociedade se
organiza para satisfazer as necessidades e as demandas humanas, da
sensibilidade desenvolvida para reconhecer e institucionalizar os direitos
sociais. A cultura
é central para o desenvolvimento do país, é parte indissociável do nosso
projeto de nação. A disputa de valores é necessária e fundamento da democracia
e do processo emancipatório capaz de sobrepor os interesses do povo brasileiro
a esse projeto mesquinho, antipopular, antidemocrático e contra nossa
soberania, voltado apenas para atender a usura e os interesses do grande
capital.
A cultura
também é relevante porque gera uma das economias mais pujantes do planeta. Uma
economia complexa, caracterizada por forte associação com o conhecimento,
movida pela criatividade e pelas ideias, com conexão com praticamente todas as
dimensões da vida humana, impulsionada por um desenvolvimento tecnológico
vertiginoso e com altos níveis de monopolização.
O
espantoso desenvolvimento dos meios de comunicação e das tecnologias digitais,
desde a segunda metade do século passado, vem modificando os processos
culturais e criou as bases para um novo ciclo de planetarização e intercâmbio
cultural entre as nações e as culturas do mundo, a cujas consequências ainda
hoje estamos a nos adaptar.
Nesse
mundo cada vez menor, mais integrado, somente a cultura pode nos distinguir e é
um ativo poderoso para o nosso desenvolvimento, para a vida democrática, para a
justiça social, para o desenvolvimento econômico e para a
sustentabilidade. Vista por
um outro lado, a cultura em sua diversidade, é a argamassa que dá liga e fundamenta
a coesão da nossa sociedade e é a base da identidade do povo brasileiro. É o
fundamento sobre o qual está assentado o sentimento de pertencimento à mesma
nação. Devemos
considerar que a cultura é uma instância, uma dimensão da vida social e um
direito de todas as pessoas reconhecido como fundamental na Declaração dos
Direitos Humanos da ONU.
A cultura
qualifica as relações sociais, dá sentido e razão à vida coletiva e estabelece
vínculos entre o passado, o presente e o futuro; satisfaz necessidades
subjetivas e faz parte das condições para a plena realização da condição
humana. A Cultura
é policêntrica, multifacética e pluridimendional e precisa ser considerada, em
sua amplitude e complexidade, como dimensão simbólica do país, como direito de
todos e como uma economia.
Destruição
de valores e racismo
A
extrema-direita representa as energias cáusticas e destrutivas que estão
emergindo com força em várias partes do mundo neste início do Século XXI, como
consequência da crise e dos impasses do capitalismo, incapaz de resolver os
grandes problemas da humanidade. Essa extrema-direita demonstra ter aversão às
liberdades conquistadas e às novas emancipações demandadas pela
humanidade.
No
Brasil, essa extrema-direita manifesta um racismo atávico e uma tendência a
aceitar como natural a desigualdade social herdada do longo período da
escravidão. Repudiam e recusam toda a rica contribuição cultural vinda da
África com os africanos que aqui chegaram nos porões dos navios negreiros como
escravizados.
Também
rechaçam e repelem a importância das contribuições dos povos originários
igualmente basilares e fundamentais, sem as quais o Brasil não existiria
enquanto nação e enquanto povo.
Diversidade
e singularidade brasileira
Esses
legados seminais foram se modificando, se misturando e se amalgamando na vivência
do dia a dia em todo o território, desde os primeiros momentos da formação do
Brasil. Estas contribuições estão presentes em todas as dimensões da vida
brasileira, em todo o território, de muitas maneiras e com diferentes
intensidades. Estão presentes e se manifestam no jeito de ser, na
sensibilidade, no comportamento. Se manifestam na alegria corporal, na
sensualidade, na criatividade, na religiosidade do povo, na gastronomia, em
praticamente toda a cultura deste país de dimensões continentais e nas artes
brasileiras, inclusive nas artes e criações contemporâneas. É essa
riqueza e essa complexidade que chamamos de diversidade cultural brasileira.
O
futuro do brasil
A direita
autoritária e neoliberal compreendeu às avessas a importância da questão
cultural. Eles negam o País e querem apagar nossas heranças culturais e
dissolver as múltiplas identidades que compõem a nossa diversidade cultural,
nossa maneira de ser. Querem se desfazer da vitalidade e dessa riqueza cultural
brasileira e falam em passar o Brasil a limpo, apagar nossa memória e extinguir
nossa singularidade. Querem fazer do Brasil uma não-nação.
A chamada
guerra cultural tem tido um efeito devastador, naturalizando a desigualdade
social sem nenhum pudor, estimulando o individualismo, o ódio aos diferentes e
afirmando uma visão de mundo desprovida de valores, adotando os paradigmas mais
reacionários, muitos deles pré-iluministas.
Procuram
enfraquecer o Estado nacional e apagar, fazer com que deixe de existir, o
sentimento de pertencimento a uma mesma nação. Estão
tentando, como o nazismo e o fascismo fizeram no passado, produzir uma grande
inversão de valores. Onde tem vida, pregam a morte. Onde tem democracia, pregam
regimes autoritários, onde tem afeto, compreensão, diálogo, solidariedade e
integração, pregam e praticam o ódio, a violência e a destruição dos valores
construídos pela humanidade no decorrer de sua história.
Para
isso, defendem a morte, a violência, o cerceamento da liberdade de expressão.
E, por isso são contra a ciência, a inteligência e o conhecimento, praticam a
discriminação e estimulam o individualismo e os valores mais reacionários. Essa
extrema-direita é distópica por natureza e representa o instinto de morte. Se
choca com tudo que a humanidade vem conquistando, deseja conquistar ou valoriza
em termos de liberdade, qualidade de vida, alegria, prazer, paz, ternura,
afeto, convivência civilizada, comunhão etc...
O
Brasil que queremos!
Para
enfrentá-los com sucesso, os que desejam um país democrático terão o desafio de
ampliar e atualizar o conceito de política e o âmbito do diálogo com a
sociedade. O
processo político de afirmação da democracia terá que adquirir uma grandeza e
uma amplitude que não se restrinja a uma certa distribuição de renda e ao
aumento relativo do poder aquisitivo dos trabalhadores mais pobres.
O Brasil
não será historicamente bem sucedido, uma nação democrática, socialmente justa
e ambientalmente sustentável sem um compromisso com uma ampliação e equalização
das oportunidades e direitos entre todos e todas. A política deverá promover
processos de construção de uma consciência contemporânea que seja capaz de
enfrentar os grandes desafios que nos afligem como povo e a questão cultural
deverá ser tratada com a importância que tem. Só assim poderemos empoderar a
sociedade de valores, sonhos e desejos e contribuir para um grande movimento
libertador que impulsione o Brasil para frente em direção às utopias
humanas.
Além
desse processo cultural libertador, será necessário propiciar uma educação
igualmente libertadora, qualificada e contemporânea, assim como, uma
democratização da comunicação que possibilite o acesso a um outro nível de
informação. Sem essa
ampla renovação e qualificação da política não seremos capazes de avançar nas
relações sociais, na garantia de direitos e na inclusão de todo o povo
brasileiro para possibilitar a consolidação da democracia entre nós.
Para
retomar e refazer o caminho da construção do projeto coletivo no Brasil,
teremos que fortalecer no dia a dia da sociedade e no imaginário popular os
valores mais profundos de igualdade, fraternidade, solidariedade, justiça
social e a afirmação de uma só humanidade em meio a diversidade. Seres humanos
livres, conscientes e felizes, em vez de seres humanos prisioneiros de pobres
ilusões e falsas promessas de felicidade do capitalismo, vivendo vidas
medíocres enquanto escravos do capital, sem valores, nem princípios éticos e
correndo atrás das miragens como a exacerbação do consumo fútil, a acumulação
de riqueza material, o egoísmo, o narcisismo, a disputa e a concorrência com os
semelhantes.
Os
movimentos socioculturais, os intelectuais, as organizações políticas da
sociedade, os partidos do campo democrático deverão trazer as questões
culturais e a disputa de valores para o centro da ação política como expressão
da própria democracia e de um projeto de felicidade para todo o povo
brasileiro.
Como um
imperativo histórico, vamos ter como desafio no futuro próximo algo que,
embrionariamente já está em curso, uma disputa de projetos estratégicos para o
país e para a sociedade, a construção de novos paradigmas, chegando até o plano
individual, das pessoas, partindo dos direitos e necessidades materiais e
incorporando o direito à felicidade e à alegria como um conceito claro do que
seria a sociedade que queremos e que possibilita a felicidade pública e
coletiva.
Autor:
Juca Ferreira – Publicado na Revista Fórum